Aos 32 anos de idade, Zé Manel conta já com uma longa carreira na música. Confessa-nos que já se sente antigo, como uma "peça de museu", mas que isso não o impede de continuar a batalhar pelo seu percurso como artista. Tornou-se conhecido do público ainda numa fase precoce da sua vida, quando com apenas 13 anos gravou o seu primeiro disco com os Fingertips, banda que representou o auge do seu sucesso.
Agora a solo, e depois de ter aprendido com os erros, o cantor assume-se seguro daquilo que quer para a sua vida e da sua missão, que vai além de simplesmente 'dar música'.
'Pessoas Reais' é o seu mais recente lançamento. Do que é que fala esta música?
É uma das músicas que vai integrar o meu novo trabalho. Senti que depois de ter feito um disco tão intimista, egoísta, tão pessoal, estava na altura de experimentar colaborar com diferentes produtores, em vez de artistas.
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'Pessoas Reais' foi uma música que quando entramos em confinamento me fez refletir bastante na necessidade de nos unirmos enquanto comunidade e de percebermos que as nossas diferenças devem ser celebradas.
Não faz sentido haver esta segregação da direita, da esquerda, do gordo, do magro, do gay e do hetero Considera que a pandemia realçou essa necessidade de haver maior tolerância, que até ao momento estava adormecida?
Sou sincero. É com alguma tristeza que ainda vejo serem tão discutidas e problematizadas estas questões. Acho que continua, infelizmente, a ser necessário este tipo de mensagens para que as pessoas ponham a mão na consciência e percebam que somos um só e que não faz sentido haver esta segregação da direita, da esquerda, do gordo, do magro, do gay e do hetero. O meu sonho é que estas coisas deixem de ser discutidas porque significaria que já não seriam sequer assunto.
Chegou a sentir na pele o preconceito?
Claro que sim. Basta estarmos na escola para percebermos que todos, invariavelmente, somos gozados. Todos nós temos características diferenciadoras e isso não deveria ser um inibidor para que as pessoas se relacionassem entre si. Deveria antes ser um motivo de celebração, porque aprendemos muitos mais com quem é diferente de nós. Tenho amigos muito diferentes uns dos outros e quando chega o meu aniversário sentam-se todos na mesma mesa e comunicam.
E essa foi uma questão que teve de trabalhar em si já em adulto ou na infância foram-lhe passados esses valores?
Felizmente em casa sempre tive uma educação que me ensinou a não olhar para esse tipo de fatores e a aceitar os outros como são. Mas, invariavelmente - por isso é que eu digo que é uma questão patriarcal que está enraizada, mesmo as pessoas que não o fazem por mal, muitas vezes têm comentários infelizes. Por exemplo, quando relatam com alguém uma discussão num espaço público muitas vezes dizem a gorda, a preta ou o maricas. Utilizam este tipo de adjetivação quando na realidade para mim não existe casamento gay, existe casamento, não existe homicida preto é um homicida, ponto.
Não era uma pessoa com muitos amigos, sempre gostei de vestir roupa diferente, de ouvir música diferente Por outro lado, naturalmente tendo crescido em Viseu, porque a minha mãe mudou-se para lá quando eu tinha seis anos, o meu percurso escolar não foi muito fácil. Não era uma pessoa com muitos amigos, sempre gostei de vestir roupa diferente, de ouvir música diferente. Chamaram-me muitas coisas desagradáveis, mas felizmente deram-me a estrutura necessária em casa para ter a inteligência de tomar uma opção, que foi não retribuir na mesma moeda e não odiar as pessoas só porque não gostavam de mim ou não me compreendiam. Percebi antes que queria uma plataforma que me permitisse de certa forma educá-las e mostrar-lhes que não é por não sermos iguais à maioria que somos um alvo a abater. Hoje em dia há muitas pessoas que me fizeram a vida negra na escola a serem meus amigos e a receberem-me lindamente cada vez que volto a Viseu. Isso deixa-me muito mais feliz, ter conseguido transformar esse pedaço de ódio em amor e não retribuir na mesma moeda.
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Podemos dizer que apesar de todos esses momentos teve uma infância feliz?
Tive. Seria uma infância infeliz se eu tivesse adotado o papel de vítima e se me tivesse deixado ficar refém disso. Aproveitei todos os obstáculos do meu caminho como degraus de evolução e como ferramentas para me tornar mais forte. Naturalmente que leva algum tempo até nós próprios nos perdoarmos pelas nossas diferenças, mas ao longo destes anos tenho-me pacificado, tenho construído um caminho do qual me orgulho a todos os níveis. Hoje em dia olho ao espelho e agradeço tudo o que aquilo que não me torna comum, porque gosto de mim como eu sou e é precisamente nas minhas diferenças que reside o meu valor.
Então não mudaria nada no seu percurso?
Naturalmente que haveria coisas que eu mudaria, que adulto é que não mudaria coisas na sua adolescência? Nem sempre acertamos à primeira em tudo. Se calhar entrevistas que não teria dado, coisas que não teria exposto, programas em que não teria participado, mas acho que faz tudo parte. Acho que só pode saber o que quer quem já teve o que não quer.
Qual era o conselho que daria ao Zé Manel da altura em que tinha 14 anos?
Não te envaideças, resguarda-te, protege-te mais, não confies em toda a gente. Mas o Zé Manel sempre foi uma pessoa um bocadinho incauta e se calhar honesta demais. As pessoas passam a vida a dizer que querem um mundo de verdade, onde as pessoas se assumam como são e digam o que pensam, mas na realidade quando isso acontece não gostam muito disso. Acho que continuo a manter essa inconsequência. Não sei quanto tempo por cá vou andar, nem sei como vai ser a minha vida, mas quero que quando as pessoas se lembrarem de mim se lembrem que eu era um gajo de verdade e que dizia as coisas como elas são ou pelo menos como elas são para mim.
Não quero criar um artista fictício, não quero simular uma vida Não quero criar um artista fictício, não quero simular uma vida, não quero que a minha vida seja como o Instagram, sou uma série de coisas para além de ser artista, tenho coisas boas, coisas más, problemas como toda a gente, a única diferença é que não sou de fingir que tenho a vida perfeita. Costumo dizer que nasci para o que faço, mas não tenho a certeza se nasci para a vida inerente. Dizem que isto é um jogo e eu não tenho jeito nenhum para jogos. Prefiro levar a coisa para o realismo.
Esse jogo ainda acontece no mundo artístico?
Tudo depende daquilo a que cada um de nós dá importância e acredito que muitas vezes para nós singrarmos ou termos a apreciação de certo decisores convém que sejamos apelativos para sermos a cara de uma marca ou irmos a certo tipo de sítios. As pessoas querem quem representa o protótipo de uma vida perfeita. [Mas] Sou a mesma pessoa que vai com uma roupa de criador aos Globos de Ouro e que no dia a seguir acordo e limpo o cocó dos meus cães, porque não tenho empregada.
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Sempre precisei muito da aprovação das pessoas e quando o deixei de fazer comecei a perceber que o que importa é a minha consciência e a forma como eu vejo a minha vida, se sou feliz com as escolhas que faço, se sou íntegro nas coisas que partilho. A arte que eu faço é de verdade, sou eu que a pago, não dependo de ninguém, sou eu que sacrifico muitas coisas na minha vida pessoal para poder continuar a fazer música.
Estive quase 10 anos no primeiro lugar dos Fingertips, foi a altura de maior sucesso e exposição da minha vida e posso dizer que não foi a mais feliz E não acaba por perder muito com isso?
Depende. O que é que eu perco? Dinheiro, exposição, palmadinhas nas costas. Já vivi isso tudo entre os meus 14 e os meus 20 anos. Estive quase 10 anos no primeiro lugar dos Fingertips, foi a altura de maior sucesso e exposição da minha vida e posso dizer que não foi a mais feliz, portando se for isso que eu perco, acho que perdia isso outra vez.
Estava a deixar-me deslumbrar e a envaidecer-me para depois dar comigo, como acontece com a maior parte das pessoas, num grande buraco vazio Mas porque é que não foi a mais feliz?
Era só um miúdo do Interior que as pessoas achavam estranho e que queria fazer música. Se calhar toda a exposição que isso me proporcionou, todo o sucesso, o foco virado para mim, os meios em que me envolvia, as festas onde fui, as pessoas conhecidas, as brigadas do croquete... foram uma série de experiências que eu se calhar não soube gerir, porque não estava preparado para isso. Estava a deixar-me deslumbrar e a envaidecer-me para depois dar comigo, como acontece com a maior parte das pessoas, num grande buraco vazio. Isso não nos traz nada para a nossa vida prática, é fútil, é superficial, é falso até. Percebi muito cedo que não era esse tipo de artista que queria ser, não era por isso que queria fazer música. Quando as pessoas me dizem que eu apareço menos ou vou a menos sítios, se calhar não sabem que é uma opção. Para fazer música preciso de ser feliz e para ser feliz preciso de outro tipo de coisas na minha vida. Coisas reais porque sou uma pessoa real.
Como por exemplo…
Poder ter a minha privacidade, poder andar mal vestido no meu bairro a passear os meus cães, poder beijar quem quero na discoteca sem ter alguém a tirar-me uma fotografia com o telemóvel e a achar que a vai vender porque isso tem algum valor, esse tipo de coisas. Achei que o preço a pagar para ter aquele nível na cadeia alimentar da indústria para mim não compensava e deixei de o querer pagar.
Porque é que se separou dos Fingertips?
Foi uma consequência de muitas coisas. A gestão pessoal do sucesso avassalador que a banda teve, algumas diferenças de ideologia em relação aquilo que queríamos partilhar e como queríamos partilhar. Chegou ali a uma altura de saturação em que ambos sentimos a necessidade de fazer outras coisas que não seriam possíveis com a banda. Fez parte da nossa aprendizagem social, ter percorrido esse caminho sozinhos, para que depois, quase 10 anos depois, nos juntássemos novamente para celebrar 15 anos de carreira. Tenho orgulho em todas as fases que vivi e acho que tanto Fingertips, como o Darko foram essenciais para que agora aos 32 anos eu consiga discernir como é que quero gerir a minha carreira.
Ver esta publicação no Instagram(2018) - 15 @fingertips.band - Inclui My everyday e Love is the weapon
Vivemos num país muito divorciado da sua cultura onde os artistas são vistos como uma coisa acessória Chegou a pensar alguma vez em desistir?
Acho que qualquer artista deste país já pensou nisto. Vivemos num país muito divorciado da sua cultura onde os artistas são vistos como uma coisa acessória. Habituamo-nos a oferecer o que fazemos, a que a arte seja gratuita e isso acabou por trazer uma desvalorização enorme a quem produz cultura. Se eu já pensei em desistir? Quantas vezes… já pensei em arranjar outro emprego, em emigrar, mas depois chego a casa, olho ao espelho e tenho aquela certeza que eu nunca seria feliz a fazer outra coisa que não esta.
Como não se dispõe a jogar esse jogo de que me falou as pessoas acabam por subvalorizá-lo?
Haverá quem o faça, quem não o faça, a sensibilidade das pessoas são diferentes. Sinto que quem ouve as minhas músicas e gosta delas, percebe o quanto está lá de mim. Acho que me conhece muito melhor quem lê as minhas músicas do que quem esteja comigo numa circunstância social. Sou um falso extrovertido, falo pelos cotovelos, pareço uma pessoa desprotegida nesse aspeto, mas eu sou bicho do mato. Não tenho muitos amigos, não gosto de estar rodeado de muita gente, tenho uma vida bastante pacata.
Chegou a sentir o interesse de algumas pessoas que se aproximaram de si?
Percebi que na altura de maior exposição tinha mais 'amigos', mais gente a querer falar comigo e a querer conhecer-me mas sempre fui uma pessoa perspicaz e isso nunca durou muito. Foi mais a puxar a minha bolha e a minha concha. Nos primeiros anos que vivi em Lisboa - mudei-me aos 19 anos - todos os fins de semana tinha jantares em minha casa, com 20, 30 pessoas, depois passado um tempo percebi que nunca tinha ido a casa delas, ou que nunca tinha-me oferecido um jantar. Resguardei-me muito mais.
Nunca tomei um ansiolítico, nunca fui a um psicólogo, sempre que sentia uma coisa menos fácil de digerir foi na música que me refugieiQuais são os seus planos?
Continuar a fazer música e a ter as pessoas do outro lado para a ouvir, para que isso mude alguma coisa na vida delas. Quero que as pessoas sintam que a minha música as abraça quando precisam. É isso que a música sempre foi para mim, uma terapia. Nunca tomei um ansiolítico, nunca fui a um psicólogo, sempre que sentia uma coisa menos fácil de digerir foi na música que me refugiei. Quero trabalhar no meu projeto a solo, escrever em português, quero aproveitar esta fase de partilha com as pessoas mais jovens. É um bocado estanho pensar que já lá vão 17 anos de carreira, às vezes já me sinto um bocadinho uma peça de museu. Mas ainda sou o futuro e tenho tudo por fazer, por isso é só aproveitar o percurso que tive para continuar a trabalhar.
E está pronto para a exposição novamente?
Acho que sim, porque neste momento tenho outra forma de a gerir. Já sei dizer que não, que era uma coisa que não fazia, queria tanto que gostassem de mim que tudo o que me pediam ou diziam encarava como um privilégio. Hoje em dia tenho outra noção do meu valor, daquilo que quero para a minha carreira.