O candidato pelo Bloco de Esquerda à Câmara Municipal do Porto, Sérgio Aires, acredita que a cidade do Porto está a perder a sua identidade, subjugada a um modelo de “gentrificação muito forte” que afasta a população local e agrava as desigualdades. Estes pontos marcam as linhas mestras do programa que apresenta, assente na questão da habitação, no combate à pobreza, na mobilidade, na participação democrática e na preocupação com o clima.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o candidato, licenciado em Sociologia pela Universidade do Porto e consultor e perito nas áreas da pobreza, exclusão e políticas sociais, debruçou-se sobre alguns dos temas, nomeadamente a questão da habitação, afirmando que é preciso “responder à crise que já existia” e que hoje é “um problema já crónico e estrutural”.
O candidato de 52 anos de idade tece críticas ao modelo de cidade-negócio, que relaciona com a “monocultura do turismo”. “É uma ilusão que toda esta animação que o turismo nos trouxe fez rejuvenescer a cidade”, diz.
Tendo presidido à European Anti-Poverty Network, de 2012 a 2018, Sérgio Aires assume a pobreza como um tema central, propondo a construção de habitações sociais e equipas multidisciplinares de intervenção comunitária, além da criação de um mecanismo de observação do fenómeno, para atuar de modo preventivo.
O candidato garante que as pessoas em situação de pobreza “estão entregues a si próprias”, mas acredita que é possível combater o problema “ao nível municipal, ao nível de bairro, de freguesia, ao nível de rua”, sendo também possível “ter um modelo económico diferente para a cidade”. “É possível fazer e nós queremos fazer, se nos derem essa confiança”, apela.
Ao termos praticamente uma monocultura económica da cidade, levou a que a habitação seja uma das consequências sérias. Não se conseguem fixar as pessoas, não se conseguem atrair pessoas e as pessoas que se atraem não fazem parte da identidade cultural da cidade
Uma das suas principais bandeiras de campanha é “lutar por uma governação na qual se oiçam todas as pessoas, respeitando e dando prioridade às suas necessidades”. Estamos a falar de que pessoas, essencialmente, e de que necessidades?
Estamos a falar de todas as pessoas, justamente. Os últimos anos foram marcados por uma ausência de participação dos cidadãos nas decisões fundamentais que lhes dizem respeito, nomeadamente, até colocando em risco algumas das estruturas que havia de participação e levando tudo aquilo que é participação cidadã para consultas online, possibilidades de ter um gabinete municipal que funciona, para lá da pandemia naturalmente, fundamentalmente online. Mas mais do que isso foi uma governação que teve uma gestão concentrada em si própria e que não conseguiu, por querer ou não querer, que os cidadãos tivessem uma participação ativa. E dou exemplos, mesmo no desenvolvimento de projetos concretos, seja na área da cultura, seja na área da intervenção social. Todas essas iniciativas foram tidas a partir do próprio Executivo municipal e, portanto, os cidadãos são chamados a executar, não são chamados a definir nem a programar.
Ora, na nossa opinião, o Executivo executa, legitimamente, após ter sido eleito, mas deve ter outra forma de governar a cidade que permita uma participação dos cidadãos. Isto, por duas razões. Primeiro, porque é a democracia a funcionar e segundo porque, justamente, o que estamos a encontrar no terreno, junto das pessoas com quem vamos conversando por toda a cidade, um alheamento muito grande da participação porque as pessoas não têm espaços e quando tomam iniciativas não veem as suas propostas serem levadas em consideração. Isto é particularmente sério e prioritário em territórios onda há uma maior marginalização das pessoas, nomeadamente, nos bairros sociais e camarários, onde esta participação está praticamente aniquilada, porque tudo o que eram associações e coletividades estão desnutridas de apoios. A desmobilização que, entretanto, foi acontecendo faz com que nem se quer haja um conjunto de pessoas suficientes para este tipo de mobilização. Ouvir todas as pessoas é ter um processo ativo, dinâmico, de escuta - que não é apenas escuta, porque, muitas vezes, nós ouvimos as pessoas, mas isso não chega, é preciso depois ser consequente com aquilo que ouvimos.
A habitação está no topo das suas prioridades. O que está a falhar no Porto nesta área e de que forma pretende melhorar isso?
O problema da habitação é uma consequência do modelo de cidade que se escolheu desenvolver, acelerando um processo de gentrificação muito forte, comparado com outras cidades que já o sofreram e outras cidades que conseguiram fazer-lhe frente. Tem a ver com o modelo de ‘cidade-negócio’, como o chamamos, relacionado com o turismo e a monocultura do turismo. É sabido, e está agora à vista de uma forma muito violenta, que o tipo de instalação de uma indústria do turismo tem dois problemas: um é este de se apropriar do território e do espaço – e no Porto é quase totalmente do espaço, particularmente em algumas zonas - e, por outro lado, é uma indústria que tem um problema sério, que é o problema da precariedade que ela própria gera, porque é justamente a indústria onde há baixos salários, onde as condições de trabalho são muito precárias.
Portanto, ao termos praticamente uma monocultura económica da cidade, levou a que a habitação seja uma das consequências sérias. Não se conseguem fixar as pessoas, não se conseguem atrair pessoas e as pessoas que se atraem não fazem parte da identidade cultural da cidade. Mesmo que consigamos ter revertido alguma, nós continuamos a perder habitantes e os últimos Censos dizem-nos isso mesmo, ao contrário do que tem sido veiculado. Nós continuamos a perder cidadãos, independentemente de termos atraído alguns. E, sobretudo, estamos a impedir que, aquilo que a mim, pessoalmente, mais me agrada na cidade, que é a sua cultura identitária. As pessoas que cá vivem e que são da cidade não podem cá viver. O que, ainda por cima, tem provocado um efeito bumerangue, uma espécie de tsunami, porque os concelhos ao redor do Porto sofrem do mesmo problema e já nem sequer os concelhos ao redor do Porto mais próximos, já vai até Vila do Conde e Viana do Castelo. É um fenómeno de tsunami completo e, portanto, onde os preços da habitação vão subir.
Aliás, tem falado muito da saída dos jovens da cidade, desse fenómeno que está a impactar as cidades onde se vê esse efeito de uma monocultura do turismo. Quais são as soluções que oferece para fixar a população mais jovem na cidade?
Em princípio, ter um outro modelo económico para a cidade. E é muito bom que se sublinhe isto, porque muitas vezes somos acusados ou de ser contra o turismo ou de que não gostamos de estrangeiros ou outra coisa qualquer do género, o que é uma falácia completa para tentar destruir um argumento que se torna totalmente óbvio, que é o de que se tornou impossível para as pessoas viver na cidade. Aquilo que é preciso é habitação. Desde logo responder à crise de habitação que já existia e que já era patente nas pessoas com maiores necessidades e, portanto, nos pedidos de habitação social que continuam por responder completamente. Falamos de mais de 3 mil pessoas, portanto, temos um problema já crónico e estrutural.
Mas depois temos um outro problema, que é o não ter oferta de habitação acessível, ou seja, de valores que não são acessíveis, independentemente de corresponderem àquilo que a lei determina do ponto de vista dessa acessibilidade em termos económicos. O problema é que os salários que as pessoas auferem - e precisamente na indústria principal em que a cidade resolveu apostar - não são capazes de fazer face a isso. Não são capazes de fazer no Porto, como não são capazes de fazer nos concelhos vizinhos e nos outros todos, porque os valores da habitação explodiram.
É uma ilusão que toda esta animação que o turismo nos trouxe fez rejuvenescer a cidade
E alastra-se, o fenómeno?
Exatamente, a especulação imobiliária que nós temos é impeditiva de ter habitação e a habitação é um ponto absolutamente crucial para a vida de qualquer pessoa e para a sua estabilidade. Ainda por cima, sim, muitos deles são jovens. E esse é outro problema, é uma cidade cada vez mais envelhecida, como outras, e com esta agravante, de que o seu rejuvenescimento está a ser muito difícil, não só por uma dimensão demográfica - porque se torna difícil para as pessoas terem filhos, terem famílias que possam fazer face à reposição da crise demográfica - e porque não há condições nenhumas para a habitação. E mesmo quando a habitação acessível é oferecida, além do preço, ela não é propriamente uma habitação que favoreça uma criação de famílias porque, basicamente, são pequenas casas.
Não são pensadas para longo prazo?
Ter um T2 a 600 ou 700 euros não é propriamente a resposta que a habitação precisa, muito menos para os salários que temos. Há todo um lado, digamos, lunar deste crescimento da cidade, que parece ser fantástico. A riqueza que é produzida não fica na cidade, porque os grandes grupos económicos que estão a investir na cidade não têm cá dinheiro. São fundos imobiliários, são coisas que não distribuem a riqueza dentro da cidade, nem do país. É uma ilusão que toda esta animação que o turismo nos trouxe fez rejuvenescer a cidade, fez a cidade ser muito mais capaz de fazer face às necessidades dos seus cidadãos, acontece precisamente o contrário. Dito isto, é possível ter turismo. A cidade pode ser rica e generosa, mas não precisa, necessariamente, de ser uma cidade exclusiva e que só tem uma monocultura. Há tantos exemplos de outras cidades que caíram no mesmo erro e estão a tentar controlar.
Ainda por cima há uma coisa muito interessante no turismo do Porto. Uma parte parte substancial dos turistas que vêm ao Porto vem ver o Porto, aquele Porto, onde viviam as pessoas, onde estavam os cidadãos mais tradicionais da cidade, nomeadamente na zona do centro histórico e não só. E nós arriscamo-nos, daqui a uns quantos anos, a ter aquilo que outras cidades tiveram de fazer, a contratar atores a fazer de conta que são de determinadas profissões. E eu assisti a isso, estive em cidades em que isso acontece, porque nestes locais, nos centros históricos, particularmente, não há habitantes e a única maneira de mostrar profissões tradicionais e outras coisas do género é através disso. Qualquer dia temos feiras medievais para representar aquilo que a cidade era, deveria ser e não é.
Mas de que forma é que poderíamos melhorar isso? Qual seria a solução para este problema?
A solução é, desde logo, por exemplo, a proposta que o Bloco de Esquerda sempre fez e defendeu: o controlo do alojamento local e a regulamentação deste ser feita e obedecermos a ela, mesmo o próprio Executivo. De vez em quando, o Dr. Rui Moreira tem uns laivos de reconhecimento de algumas coisas e ele próprio reconheceu que fomos um pouco ultrapassados pela dimensão da coisa. Infelizmente, não reage em consequência disso. Regulamentar o turismo e, particularmente, a construção de novos equipamentos hoteleiros é absolutamente fundamental. Há regras e normas internacionais para isso, ou seja, nós estamos a desobedecer as muitas coisas, nomeadamente no que diz respeito à concentração de hotéis em algumas zonas da cidade.
Outra questão é a habitação pública, que não existe e que não está disponibilizada pela cidade e que, curiosamente, ou de forma irónica, o Dr. Rui Moreira gosta de dizer que o Porto tem a maior taxa de habitação pública do país. Tem 9% e o país tem 2%, portanto, o Porto está ótimo mesmo que ele não tenha construído habitação publica nenhuma e que ela já existisse antes. A construção de habitação pública e, sobretudo, preservar os espaços de habitação pública que existem ainda seria uma das propostas. Mas ao mesmo tempo tem de parar este processo de gentrificação associado ao turismo e de parar o turismo, que, repito, não traz riqueza para a cidade, traz riqueza para algumas pessoas, mas não traz riqueza para a cidade.
Ficaria bem ao Porto que reconhecesse o problema, ao invés de varrer para baixo do tapete ou ao invés de apenas o acolchoar com algumas medidas de puro assistencialismo
Desde cedo que se dedicou ao combate à pobreza, seja a nível voluntário seja profissional. O que é que tem falhado, nesse âmbito, na cidade do Porto?
Na cidade do Porto tem falhado o mesmo que tem falhado no país, na Europa e no mundo. Primeiro, reconhecer o problema em si e o que é que ele significa. O problema da pobreza material está relacionado à partida com uma desigualdade de rendimentos. Antes de mais nada, está relacionado com o modelo económico sob o qual temos vivido e que é um modelo macroeconómico, que regulamenta de alguma maneira a própria União Europeia. Tem de se sair do nível local para ir para o nível mais global, porque não seria fácil uma cidade, por si só, contrariar um movimento económico global como este, que tem um credo, uma fé extraordinária numa coisa que nunca acontece, que é primeiro temos de crescer para depois distribuir.
A verdade é que, mesmo quando há crescimento, esse crescimento nunca é distribuído e os índices mostram, justamente, que quanto mais riqueza se produz mais ela se concentra. Portanto, temos um problema endémico. Isso reflete-se numa cidade, como se reflete no país ou numa União Europeia, que é marginalizar um conjunto cada vez maior de cidadãos, sobretudo, com níveis de pobreza que cada vez são mais intensos. É evidente que tivemos uma crise económica e financeira e depois tivemos uma pandemia e tudo isso ajudou a que as coisas piorassem bastante, mas isso também são consequências do modelo económico que decidimos adotar. Podíamos agora concluir que não podemos fazer nada a nível local, mas não é verdade. Ao nível municipal, ao nível de bairro, de freguesia, ao nível de rua podem combater a pobreza.
Ficaria bem ao Porto que reconhecesse o problema, ao invés de varrer para baixo do tapete ou ao invés de apenas o acolchoar com algumas medidas de puro assistencialismo, que é necessário, particularmente em situações de emergência como a que estamos a viver, mas era necessário uma estratégia de combate à pobreza a nível local. Passa por muitas coisas, nomeadamente, esta que este Executivo se recusou a querer ter, que é um mecanismo de conhecimento do fenómeno. Nós não temos dados a nível local sobre a pobreza, porque eles não são produzidos do ponto de vista da estatística, não descem a esse nível do município, mas de qualquer maneira sabemos perfeitamente que a pobreza no Porto é muito grande e está à vista. A observação que é preciso fazer é uma observação quotidiana e contínua deste fenómeno para perceber que medidas, a nível local, são necessárias para o alterar. É possível e nós temos recursos. Esta autarquia já não é uma autarquia endividada e muito bem, ótimo, tem recursos, tem um orçamento que permitiria ir muito mais longe, desde logo na pandemia, mas muito mais longe numa atividade estratégica como a da pobreza.
Uma das propostas que temos é justamente a da cidade se dotar de um plano municipal de combate à pobreza. É possível ter um modelo económico diferente para a cidade e esse modelo, seguramente, terá imediatamente um impacto naquilo que são as condições de vida das pessoas. Reflete-se na habitação, na cultura e em muitas outras áreas. É possível fazer e nós queremos fazer, se nos derem essa confiança.
Mesmo antes do PRR e dos fundos estruturais, o município do Porto podia fazer mais, tem recursos para fazer mais e se não fez mais foi porque não quis
Como especialista nesta área e em exclusão social, o que é necessário fazer já para que os níveis de pobreza não aumentem com a crise que se avizinha, devido à pandemia da Covid-19?
Tenho toda a confiança - sendo uma pessoa com 52 anos e com 30 anos de trabalho no combate à pobreza, e portanto, não necessariamente ‘naif’ - que os recursos que nos estão a ser disponibilizados, seja no Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), seja nos novos fundos comunitários que teremos até 2027, sejam postos à disponibilidade de uma intervenção que é, em primeira instância, de curto prazo, de emergência, e que depois sejam concretizados a longo prazo para financiar muitas das coisas que eu disse até agora. O que me está a preocupar é que, por exemplo, ainda não foi esboçado por parte do Executivo quais são as intenções da cidade do Porto, do executivo municipal atual, para o PRR, ou seja, o que é que pretendem fazer com aquele investimento que reclamam e bem. Não vi ainda, posso estar enganado, algumas propostas para isso.
Julgo que, justamente, algumas das propostas deviam ir para o combate à pobreza, sobretudo, para a prevenção porque, no combate à pobreza temos sempre a tentação de correr atrás do problema - muitas das vezes, numa dimensão apenas assistencial, que é necessária, mas a questão da prevenção é importante. Por exemplo, a pobreza infantil. Nesta pandemia, colocamos em risco, fortemente, alguns índices, ainda não verificados, de risco para a pobreza infantil que são muito sérios. Se a União Europeia e o país estão tão focados em combater a pobreza infantil era importante que nós tivéssemos medidas muito concretas para atuar nesse domínio. E isso chama-se de prevenir a pobreza. A dimensão da prevenção é muito importante, porque temos problemas crónicos de pobreza, como são os da pobreza mais extrema e das pessoas sem-abrigo, onde é preciso atuar de outra maneira, que não aquela que temos atuado exclusivamente, embora reconhecendo todos os progressos que têm sido feitos neste domínio, mas que claramente não são suficientes.
O que temos de fazer no imediato é questionar que recursos temos. Temos recursos porque, primeiro, mesmo antes do PRR e dos fundos estruturais, o município do Porto podia fazer mais, tem recursos para fazer mais e se não fez mais foi porque não quis. Isso tem de ser muito claro e lamento que imenso que o Dr. Rui Moreira - tenho de falar dele porque é o atual Executivo - não quer reconhecer que podia ter feito muito mais e sempre que é acusado disso ele anuncia 45 coisas que fez. Algumas delas, evidentemente, são importantes, mas, comparativamente com outras cidades do país, vemos que o Porto tinha recursos, acabou de fechar contas com um saldo positivíssimo, num momento de pandemia. Não é nesses momentos que os recursos devem ser postos ao serviço dos cidadãos?
A principal preocupação terá sido manter as contas a ‘verde’?
As boas contas à moda do Porto têm um lado lunar. Do que nos adianta ter contas com saldo positivo se não é para investir esses saldos no bem estar dos cidadãos? Se é para ter uma conta gorda no banco, enfim, não vale a pena, ainda mais quando vemos que outros investimentos são favorecidos. Não é só o dinheiro que não se gasta, é também o dinheiro que se gasta também, os investimentos que são feitos e não necessariamente no bem das pessoas.
Utilizando então palavras já ditas pelo candidato, era necessário “promover a economia que serve todas as pessoas em vez do negócio que serve apenas alguns”?
Sim, é isso que queria dizer e que tenho dito muitas vezes. É possível ter uma economia local que respeite as pessoas, que remunere as pessoas e que, inclusivamente, faça do Porto aquilo que sempre se afirmou ser e que até o próprio Dr. Rui Moreira gosta de dizer: o Porto é uma cidade de comércio, é conhecida por isso, mas o comércio não é, necessariamente, este negócio. Aliás, uma parte substancial dos comerciantes da cidade estão desesperados e não foi só por causa da pandemia. A pandemia não justifica tudo. Muita da crise no económico no Porto - e não é só no comércio tradicional - já vem antes da pandemia, os comerciantes já viviam aflitos e, portanto, a cidade do comércio – essa, sim, vale a pena conservar e reforçar - também está ameaçada.
É possível ter uma economia local que tenha preocupações do ponto de vista ambiental, por exemplo, e, portanto, que esteja em linha com as outras preocupações que temos e que respeite um outro modelo que não aquele que a cidade privilegia. Quando a cidade for precisamente igual a Riga, na Estónia, e já não falta muito... Nós estamos perto da Disneylândia, apesar de ainda termos algum património histórico que, de resto, está em risco. Agora, temos a UNESCO a dizer que se encontra muito preocupada da forma como a cidade está a ser tratada e que, inclusivamente, começa a dizer – veladamente, ainda - que se calhar temos de rever esta possibilidade de manter a cidade como Património da Humanidade.
O Dr. Rui Moreira, enquanto presidente da Câmara, tem uma dificuldade enorme de reconhecer os problemas e admitir os fracassos da sua governação
Em junho, durante um discurso na Campanhã, aconselhou Rui Moreira a “deixar de tentar ser rei”. O que queria dizer com isso?
Era uma brincadeira, no sentido figurado, para dizer que o Dr. Rui Moreira deve deixar de ser rei e ser mais real, foi isso que eu disse. Era precisamente para tentar aproximar-se mais dos problemas de uma forma saudável. Tentando conhecer os problemas e reconhece-los, porque o Dr. Rui Moreira, enquanto presidente da Câmara, tem uma dificuldade enorme de reconhecer os problemas e admitir os fracassos da sua governação. Para cada coisa que lhe é apontada, ele desata, imediatamente, num exercício de irritação em tom de propaganda terrível para tentar contrariar aquilo que se torna evidente à maior parte das pessoas. Portanto, deixar de ser rei é deixar de estar no trono, sair para a rua, ouvir as pessoas e ser consequente com isso. Não era nenhum insulto, espero eu.
Dentro das críticas que tem feito à autarquia do Porto, à governação de Rui Moreira durante a pandemia, a mais recente está relacionada a com a questão da Unilabs no Queimódromo. Que leitura faz dessa situação?
Independentemente da necessidade de termos respostas céleres, suficientes para aquilo que foi a pandemia, neste caso em concreto, para a questão da vacinação, não deixa de ser curioso que foi precisamente no Porto, na tal ‘cidade-negócio’, onde abriu um centro que é gerido por uma empresa privada. Tem isso algum problema de raiz? Não, não tem. Não sou contra a iniciativa privada, nem pouco mais nem menos, mas não deixa de ser curioso que foi logo aqui que aconteceu e que correu mal, com um incidente que podia ter sido muito sério e que não aconteceu em mais lado nenhum e, se aconteceu, foi a tempo de evitar que as pessoas fossem vacinadas.
Aqui é que se colocou o problema central, da Unilabs não ter reagido a tempo para evitar que as pessoas fossem vacinadas com vacinas que podiam não estar bem, felizmente, agora sabe-se que não. Infelizmente, tive pessoas, bem próximas, que foram vacinadas naquele dia, portanto, estava pessoalmente bastante preocupado com o assunto.
Podia ter acontecido em qualquer lado. Acho péssimo que se faça política à custa do risco de vida das pessoas, não é disso que se trata e longe de mim querer fazer qualquer crítica fácil do ponto de vista político, mas o que me chama a atenção é que mais uma vez é uma coincidência que não é coincidência, é a forma como o Dr. Rui Moreira privilegia a visão que tem do mundo e da cidade, neste caso. Aquele espaço, que é municipal, podia ter sido utilizado de outra forma, como foram outros.
Explanou as várias críticas que faz ao atual presidente da Câmara. Reconhece alguns sucessos?
Sim. Há um problema com a governação do Dr. Rui Moreira e com aquilo que é, aparentemente, o seu sucesso, que é uma imagem que não é necessariamente totalmente verdadeira, de que a cidade do Porto se transformou na melhor cidade do mundo. Para mim, será sempre a melhor cidade do mundo [risos].
Mas é uma ilusão?
Olhe, muitos dos prémios que são atribuídos à cidade - e que são hasteados em todas as bandeiras possíveis e imaginárias - são prémios financiados por fundos imobiliários, por empresas que têm interesses num investimento na cidade. Mas os cidadãos não sabem disso. Nós, portuenses, que somos muito ciosos e orgulhosos da nossa cidade, temos aqui alguma dificuldade em separar aquilo que possa ser muita propaganda daquilo que é a realidade.
Evidentemente, há coisas que o Dr. Rui Moreira fez coisas bem, coisas pelas quais, curiosamente, o Bloco também se bateu. Nomeadamente, a questão do Cinema Batalha, o Mercado do Bulhão, o Rivoli, apesar deste ter passado por uma gestão municipal que sofre de um problema. É verdade que passou a estar sob disponibilidade do interesse público e isso foi bom, mas depois a sua utilização e a sua municipalização corresponde um bocadinho àquele modelo que falei: a programação é toda feita sem a participação das pessoas. Há coisas, e algumas bastante importantes, que o Dr. Rui Moreira fez bem. O problema é que elas entram em contradição umas com as outras. É como a questão das contas, ter boas contas e depois não fazer um bom exercício a favor dos cidadãos, acaba por não resultar.
Não tenho medo do resultado seja de que eleições for. As eleições em democracia são a expressão da vontade das pessoas
Tem receio do resultado das eleições, tendo em conta o já tradicional 'mau desempenho' bloquista nas eleições autárquicas?
Não tenho medo do resultado seja de que eleições for. As eleições em democracia são a expressão da vontade das pessoas, qualquer resultado é aquele que tem de ser. Portanto, receio não tenho nenhum. Eu sou um candidato independente, pelo Bloco de Esquerda, mas independente. O esforço em que estou e em que estamos e, precisamente, tentar fazer duas coisas: uma delas é animar as pessoas e fazê-las acreditar que é possível uma alternativa, porque o que encontramos no terreno é um desânimo daqueles que não estão satisfeitos - evidentemente, há pessoas satisfeitas, senão o Dr. Rui Moreira não ganharia as eleições os dois mandatos. Francamente, sentimos que há muito mais pessoas insatisfeitas atualmente, porque as coisas começam-nos a chegar à pele, já não é só o vizinho, é a mim. A outra é explicar às pessoas o que está a correr mal, porque, muitas vezes, como disse, algumas das coisas são invisíveis.
E isso não é difícil, fazendo um périplo pela cidade. Veja-se o caso da reabilitação urbana nos bairros sociais. Eu próprio confesso-me surpreendido com aquilo que encontrei. De facto, a gente passa por fora e vê alguns bairros em concreto e parece que está uma coisa decente, mas entra-se nos prédios e vê-se coisas absolutamente inacreditáveis. Não só não melhoraram do ponto de vista das infraestruturas internas das casas, como, em alguns casos, aquilo foi feito piorou as condições de vida das pessoas.
É assustador. Estive em casas de pessoas, no Monte da Bela, por exemplo, em que aquilo que fizeram “para inglês ver” mais valia não terem feito, porque prejudicou a habitabilidade: muito menos circulação de ar, casas que não tinham humidade nenhuma estão todas pretas. Portanto, é isto que nós estamos a tentar fazer, que as pessoas percebam que, enfim, que há problemas e que estes têm de ser conhecidos e é pena que o Dr. Rui Moreira não os queira reconhecer. Quando isto foi denunciado, por exemplo, disse que as pessoas não abrem as janelas.
Além dos desafios que já falámos, que outros problemas enfrenta o Porto? E que vantagens traria um presidente bloquista à cidade?
Nós queremos atuar, como é lógico, em todas as vertentes. Uma das coisas que eu ainda não disse e que faz todo o sentido dizê-lo neste momento é que, se nós queremos, de facto, combater a pobreza e a desigualdade nas cidades, vamos ter de atuar em todas as áreas e essa é uma das mensagens diferentes dos outros candidatos. A pobreza não se combate no pelouro da coesão social ou da assistência social. A pobreza combate-se prevenindo-se com um modelo económico diferente, com uma intervenção na habitação, na saúde, na educação, na cultura, muito diferente daquela que temos.
A dimensão da crise climática e o seu impacto numa cidade como o Porto: a questão do controlo da qualidade do ar, que no Porto é muito deficiente, precisa de ser monitorizado e esse é um assunto para o qual o cidadãos não têm nenhuma sensibilidade porque aparentemente, ainda nem se coloca a questão, mas daqui a muito pouco tempo, se calhar, vai passar a ser uma coisa preocupante, quando as pessoas descobrirem o impacto que isto tem na saúde e na longevidade.
A questão da mobilidade, do reforço dos transportes públicos e da redução das emissões. Continuamos a insistir em termos mais parques de estacionamento - e mais parques de estacionamento no centro da cidade - facilitando a circulação automóvel, queremos contrariar essa tendência. Também a questão das ciclovias, que são um desastre na cidade do Porto, uma vergonha, porque qualquer ciclista, por mais amador que seja, percebe que é um perigo circular nas vias circuláveis do Porto.
Não me querendo repetir, mas quero sublinhar que aquilo que nós encontramos nos bairros sociais e bairros de responsabilidade pública na cidade do Porto é desolador. As pessoas estão abandonadas, estão entregues a si próprias. Aquilo que me parece acontecer, sem querer lançar aqui nenhuma polémica, é que quanto pior, melhor. A sensação que dá é que parece que se quer que os bairros se deteriorem o mais possível para que uma parte das pessoas acabe por sair dali e as que ficam… Implode-se aquilo no fim, como já se fez noutros bairros. Estou a falar no Aleixo, em concreto, deixa-se as coisas chegarem a um ponto de deterioração tal que depois é inevitável.
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