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"A Igreja ocultou muitas situações. Todas as instituições o fazem"

O psiquiatra e membro da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Daniel Sampaio é o entrevistado desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

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© Global Imagens

Marta Ferreira
19/07/2022 08:04 ‧ 19/07/2022 por Marta Ferreira

País

Daniel Sampaio

A Comissão Independente criada para investigar abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa já recolheu 352 testemunhos de vítimas desde que foi criada, há seis meses. Destes testemunhos, 17 seguiram para o Ministério Público. 

Numa altura em que esta Comissão luta para que o silêncio deixe de ser a cortina que esconde estes casos, o Notícias ao Minuto falou com o psiquiatra e membro da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Daniel Sampaio sobre o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, o que falta fazer e as questões de saúde mental que estão associadas a estas vítimas. 

Abordamos, ainda, os abusos sexuais ocultos na Igreja e as consequências que os mesmos têm nas vítimas ao longo da sua vida. Daniel Sampaio debruçou-se, também, sobre o silêncio - muitas vezes por medo ou por vergonha -, que se torna trunfo dos agressores, e sobre necessidade de uma investigação aprofundada por parte do Ministério Público (MP) e Polícia Judiciária (PJ).

Refira-se que o último balanço da CI foi feito a 30 de junho.

A Igreja Católica foi a única instituição portuguesa que decidiu encarar o problema do abuso sexual contra crianças

Já foram recolhidos mais de 350 testemunhos de abusos sexuais no seio da Igreja, 17 dos quais seguiram para o MP, de acordo com o último balanço. Que avaliação faz do que tem sido descoberto através do trabalho da Comissão e porquê uma percentagem tão mais baixa de casos que seguem para o MP?

Em primeiro lugar, devemos lembrar que a Igreja Católica foi a única instituição portuguesa que decidiu encarar o problema do abuso sexual (AS) contra crianças. Muitos outros grupos que acolhem e lidam com crianças, incluindo as famílias, deveriam ter a mesma preocupação e atitude. Porque o AS é uma situação muito mais frequente do que se possa imaginar: o conjunto dos estudos de prevalência indica que o AS contra rapazes está entre 66 e 88/1000 e contra raparigas está entre 164 e 197/1000.

Este problema merece toda a atenção, por isso espero que o trabalho da Comissão Independente seja o ponto de partida para que este tema nunca seja esquecido.

O número reduzido de casos enviados para o MP é fácil de explicar: a maioria dos testemunhos não é muito recente e as situações têm mais tempo do que o prazo de prescrição previsto. Pessoalmente espero que o MP e a PJ estejam à altura das suas responsabilidades, porque há muito para investigar.

As vítimas não são levadas a sério e o abusador é protegido

A cultura do silêncio é, para si, uma forma destes abusos se perpetuarem?

A ocultação deste problema existe em todos os casos e também ocorreu na Igreja Católica. As vítimas não são levadas a sério e o abusador é protegido, ou porque se receia acusá-lo ou porque ele fez erguer uma atmosfera de silêncio, com constrangimento e coação sobre a vítima. Os nossos testemunhos demonstram que pode haver décadas de silêncio e ocultação.

Como é que se faz a destrinça entre os casos reais e aqueles que tentem “preencher o inquérito a brincar”, como referido por si numa entrevista em maio?

Temos mais de 350 testemunhos validados, mas 29 excluídos. A exclusão é fácil, porque o nosso inquérito online tem coerência interna nas perguntas, e quem o preenche de forma pouco séria depressa é detetado.

Por outro lado, as respostas validadas são de tal modo intensas que não deixam dúvidas sobre a sua veracidade.

A Igreja ocultou muitas situações. Mas como expliquei acima, todas as instituições, grupos e, sobretudo, famílias o fazem

A Igreja tenta calar, de alguma forma, as vítimas? Ou seja, há relatos de ameaças ou represálias para quem denunciar os abusos?

A Igreja ocultou muitas situações. Mas como expliquei acima, todas as instituições, grupos e, sobretudo, famílias o fazem. É muito difícil de aceitar que um adulto, muito conhecido da criança, a possa agredir sexualmente. Na Igreja Católica impressiona verificar como aquela criança abusada, em muitos casos, tinha laços de união espiritual com um membro da Igreja, que estava lá para a acolher, proteger e dirigir espiritualmente.

Não falamos de ameaças ou represálias, que podem ter havido. Limitamo-nos a descrever situações de constrangimento, dado o poder do abusador sobre a vítima.

As vítimas dos abusos sexuais acabam por ficar com questões de saúde mental e não existe, em Portugal, resposta a este nível, como já referiu anteriormente. Que resposta acha que deveria ser criada e em que moldes?

De notar que 60% das crianças abusadas vêm a revelar, ao longo da vida, sintomas graves de psicopatologia, nomeadamente perturbações de stress pós-traumático, perturbações de ansiedade e perturbações depressivas, num contexto de alterações mantidas da sua vida afetiva e sexual.

Sabemos que o acesso a consultas de Psiquiatria e de Psicologia no SNS não é fácil no nosso país. Por isso defendo, a nível pessoal, prioridade para este problema, com a criação de uma 'Via Verde' de acesso para todas as vítimas de AS, nas consultas externas de Psiquiatria de todo o país.

Quanto à Igreja Católica, a minha ideia - falo também pessoalmente - é de que deveriam  ser disponibilizadas consultas de Psicologia  para  as vítimas, em todas as dioceses.

Relembramos o número de telefone da CI, para testemunhos - 917110000 - e o endereço da página oficial para mais informações - darvozaosilencio.org.

Leia Também: Arquidiocese afasta padre de Samora Correia por esconder alegados abusos

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