Costuma dizer-se que a morte é a única certeza na vida. Contudo, perder alguém querido é, provavelmente, a pior etapa da existência humana, marcada por uma dor visceral e crua. Numa sociedade em que o positivismo reina, os enlutados acabam por ser postos de lado, pertencendo a um clube do qual ninguém quer ser membro. Nesse clube, aprendem que nem sempre tudo ficará bem, vendo-se frente a frente com a mortalidade e todas as suas camadas. Enquanto procuram navegar a perda, a comunidade não perdoa e apressa-os a voltar ao 'normal', – seja o que isso for –, em detrimento do seu processo de luto.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, José Eduardo Rebelo, presidente da associação Apoio à Pessoa em Luto (APELO), defilhado e viúvo à data da sua fundação, abriu o véu à realidade deste processo no seio da sociedade ocidental, desmistificando a noção de que existem fases a seguir, tal e qual um manual de instruções.
Nessa linha, salientou o quão nocivas podem ser as afirmações de que o ente querido ‘está num lugar melhor’, ‘já não está a sofrer’, ou até que ‘foi na sua hora’, proferidas, normalmente, com as melhores das intenções. Isto para dizer que o enlutado necessita, acima de tudo, de falar e de expressar aquilo que sente, sem qualquer tipo de julgamento, naquela que é a sua procura individual de recuperar o equilíbrio após uma perda debilitante e profunda.O nosso corpo é muito resiliente e, automaticamente, cria um processo que se desenrola no tempo – o luto – para preencher e organizar esse vazio que, entretanto, se criou
Ainda que o luto e a morte sejam, talvez, dos únicos processos pelos quais todos passarão, vivemos numa sociedade com pressa de os ultrapassar, e com medo de encarar a tristeza, o choro, e os sentimentos associados à perda de alguém que nos é querido. Qual é o impacto que afirmações como 'já passou tanto tempo', 'a tua pessoa está num lugar melhor', 'chegou a hora da tua pessoa', ou 'a tua pessoa já não está a sofrer' podem ter para o enlutado, apesar de serem ditas com as melhores das intenções?
O impacto é profundamente negativo. Mas o que é o luto? Aquilo que encontrei sempre na bibliografia a nível mundial é uma resposta à questão ‘como fazemos o luto?’, que explica todo o processo na reação à morte de um ente querido. No entanto, esta questão não era suficiente para explicar a uma defilhada que o seu processo será eterno enquanto, por exemplo, a pessoa que perde o cônjuge ou os pais supera e aceita essa mesma perda. Não fazemos o luto por quem morre; fazemos o luto pelo que perdemos em relação à pessoa com quem tínhamos um laço afetivo. Portanto, o luto é exclusivamente pessoal, íntimo, e não é em função do outro. Essa reação é de procura de equilíbrio.
A vida ‘escravizou-nos’ de duas formas. Em primeiro lugar, temos de sobreviver e, em segundo lugar, temos de nos perpetuar. Quando falamos da morte, falamos da interrupção desta essência da própria vida. Os tipos de laços afetivos fundamentais para assegurar a essência da vida são três: a ligação com a mãe, porque necessitamos dela para alimento, para cuidar da nossa saúde, e para educação. Em adulto, os pais, que eram a garantia da sobrevivência, passam a constituir o passado. Vamos, por isso, procurar essa segurança no presente, entre os pares, através de uma ligação conjugal. Há, depois, o laço afetivo parental, que estabelecemos com os nossos filhos.
Nos laços afetivos de um filho em relação aos pais e ao cônjuge há uma perda expectável. O filho admite que, um dia, se despedirá dos pais – e o mesmo para um cônjuge. A perda de um filho é uma perda não expectável e inaceitável. Nas perdas expectáveis, superamo-las por aceitação. Na perda de um filho, defino-o como conformação, uma forma de nos habituarmos a viver com a ausência daquela pessoa.
A reação à perda vai manifestar-se através de um conjunto de emoções que catalisam determinados comportamentos. Quais são as principais emoções sentidas ao longo deste processo? Associada ao choque está a surpresa, que nos vai induzir num balancear entre a negação e a verificação. Como é que alguém que ama aquela pessoa aceita abdicar dela? Enterrando-a. Mas a despedida emocional dura, às vezes, anos.
Se perdemos a fonte da nossa sobrevivência, há uma reação de medo, que vai ocasionar descrença, em que vamos andar, do ponto de vista emocional, numa busca desenfreada daquilo que a pessoa nos dava, para tentar normalizar as expectativas emocionais em caos. Cada busca corresponde a um desencontro, que nos vai provocar ou frustração, ou desespero, que vão desencadear outras emoções complicadas, como a raiva, a tristeza, a depressão, e a culpa. É tudo episódico, senão ficávamos doentes e o luto não é uma doença. Finalmente, vem a superação, que é feita com conformação ou aceitação.
Se as pessoas estão em negação, para elas a pessoa não morreu. Se lhe vamos dizer o que quer que seja que confirme a morte da pessoa, obviamente que haverá uma reação violenta. É visceral. Se fosse racional, carregávamos no interruptor, desligávamos a luz, e partíamos para outra.
Vivemos bem, gostamos de viver e, então, afastamos tudo o que sejam ameaças a essa vida, nomeadamente a tristeza. Não queremos confrontar-nos com a tristeza das pessoas amadas, porque é uma ameaça à nossa própria sobrevivência
Considera que há uma tentativa de florear o luto que acabou por se enraizar na nossa sociedade? E devemos, de facto, deixar a pessoa sentir a tristeza, a raiva, a frustração, a ansiedade, e todos os sentimentos tidos como negativos?
Quando falamos de luto, estamos a falar de pesar, que é o desarranjo das expectativas emocionais e que se simbolizam por um vazio dentro de nós. Cria solidão e um conjunto de fatores destrutivos e horríveis de sentir. O nosso corpo é muito resiliente e, automaticamente, cria um processo que se desenrola no tempo – o luto – para preencher e organizar esse vazio que, entretanto, se criou. O luto é um processo individual.
Criei um curso de Conselheiros do Luto, que já vai na 11.ª edição. Mas digo-lhes sempre que não são especialistas no luto da pessoa, porque o único especialista é o próprio enlutado – são especialistas em apoiar a pessoa no seu luto. O que acontece é que esse caminho individual e solitário confronta-se com a sociedade, que cria estruturas para a pessoa ser aceite. Chamo a isso o nojo, – a licença de nojo, a missa, as exéquias –, tudo aquilo que a sociedade inventou para confortar a pessoa em luto.
A sociedade ocidental tem evoluído muito no sentido de uma perspetiva de grande conforto, o que é muito bom. Olho para o que foram os meus 20 anos e o que são os 20 anos do meu filho, e digo que é conforto a mais. Os jovens são, hoje em dia, bens escassos. Os pais andam numa grande ansiedade para que sejam bem adaptados à sociedade, e criam um hiperprotecionismo em relação a esta realidade, o que faz com que haja uma menor resiliência àquilo que é natural. É natural a morte, é natural os rituais. Vivemos bem, gostamos de viver e, então, afastamos tudo o que sejam ameaças a essa vida, nomeadamente a tristeza. Não queremos confrontar-nos com a tristeza das pessoas amadas, porque é uma ameaça à nossa própria sobrevivência.
É possível criarmos condições para que o tal nojo seja realizado de forma mais humanista, em que as pessoas tenham maior disponibilidade para a dor alheia
Antigamente, a morte era um momento público. A pessoa estava para morrer e chamava-se a família toda, em casa. Agora, a morte é privada. ‘Atiramos’ a pessoa para um hospital, os médicos admitem a derrota porque já não podem fazer mais nada por aquela pessoa, correm a cortina, e a pessoa passa os últimos momentos numa profunda solidão. O paradigma está completamente alterado. Mas vamos alterar isto tudo? É impossível.
No entanto, é possível criarmos condições para que o tal nojo seja realizado de forma mais humanista, em que as pessoas tenham maior disponibilidade para a dor alheia. Se a morte acontece nos hospitais, é comunicada por telefone, quando deveria de ser presencialmente. Em casos terminais, no qual a família é chamada a despedir-se, não há condições para que exprimam os seus sentimentos e as reações emotivas do seu próprio luto, nomeadamente gritos e choro. As pedras basilares do apoio ao luto são ouvir e não julgar.
Não podemos falar da pressa da sociedade no que toca ao luto sem falarmos da chamada licença de nojo, que determina um período de ausência laboral de 20 dias para a perda de filhos (biológicos ou adotivos), enteados, genros e noras, de cinco dias para parceiros, pais, e sogros, e de dois dias para irmãos, cunhados, avós, bisavós, netos e bisnetos. Como é que a sociedade espera que o enlutado regresse às suas funções num tão curto espaço de tempo?
O luto, não sendo uma doença, é um problema quase de saúde pública. Temos de criar condições para quem está em luto. Do ponto de vista empresarial, temos uma licença de determinados dias e, quando voltamos, é esperado que realizemos as nossas funções como se nada tivesse acontecido, com o mesmo rendimento de antes. É impossível. Seria extremamente útil que as empresas estudassem o rendimento do enlutado durante o período do luto, antes, e depois. Se está a render menos, significa que está a dar prejuízo, e é necessário encontrar uma solução. Fazia sentido que houvesse uma estrutura de apoio, os Conselheiros do Luto, por exemplo, para tornar o luto mais rápido e menos doloroso. Se uma pessoa falar sobre a sua perda, ser ouvida, e não ser julgada, é o suficiente para fazer um luto mais rápido e menos doloroso.
A finalidade do luto é chegarmos a um estádio de equilíbrio, depois de termos passado por uma perda pessoal profunda. Quanto tempo é que vai demorar? Depende do que é que perdemos
Considera que o enlutado voltará alguma vez ao 'normal' ou aprenderá apenas a lidar com a dor?
Cada um de nós vive num chamado equilíbrio. Quando perdemos um ente querido, as emoções que controlam a nossa relação com o que está à nossa volta entram em desequilíbrio, que se vai manifestar de diferentes formas. O luto tem a finalidade de, ao longo do tempo, nos fazer encontrar o nosso equilíbrio. No luto, vivem-se comportamentos episódicos que não são da pessoa ‘saudável’, sadia. Significa que pomos o passado para trás? Não, é uma experiência. Embora muito dolorosa e horrível, a experiência da perda enriquece-nos.
Existem, de facto, fases definidas para o luto, ou está o enlutado apenas a tentar navegar um trauma que, infelizmente, faz parte da natureza humana?
É terminologia. Para fugir a essa questão, falo em vivências, e não fases. Uma pessoa não pode ser adulto sem ter sido bebé, nem pode ser adolescente sem ter sido criança. Há uma sequência lógica e estádios de desenvolvimento que se desenrolam no tempo. No luto, há vivências que, às vezes, misturam-se e oscilam – daí não serem fases. O conceito de fases é antigo.
Este ano, o luto prolongado (mínimo de seis meses) passou a ser considerado um transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Considera que esta definição é correta?
Mais uma vez, é terminologia. O que é o luto prolongado? O luto pela perda de filhos é luto prolongado? O luto de mais de um ano é doença? Não concordo e rejeito em absoluto. Têm a necessidade de categorizar as coisas e de definir, mas não é assim. A finalidade do luto é chegarmos a um estádio de equilíbrio, depois de termos passado por uma perda pessoal profunda. Quanto tempo é que vai demorar? Depende do que é que perdemos.
Era fundamental que a sociedade fosse criando estruturas de bem-estar, de normalização daquilo que é normal – que é o luto e as expressões do luto. As pessoas só precisam de ser ouvidas, porque não têm capacidade para ouvir, e não podem ser julgadas por isso
As doenças terminais, como é o caso das doenças oncológicas, podem originar sentimentos de ‘luto antecipado’. De que modo é que este processo afeta o enlutado, tanto antes, como depois da morte da pessoa querida?
Não gosto do termo ‘luto antecipado’, e sou frontalmente contra. Não há lutos antecipados. Há o luto por morte anunciada, e o luto por morte ocorrida. Voltando à minha definição, fazemos o luto pelo que perdemos. Temos um laço afetivo e um conjunto de expectativas emocionais. Quando os entes queridos estão doentes, já estamos a fazer o luto por aquilo que estamos a perder, mas há sempre uma expectativa de cura. O mesmo acontece quando nasce um filho deficiente – há sempre a expectativa de que recupere e passe a ser uma criança autossuficiente, que é a ambição dos pais. Há reações semelhantes à do luto. Agora, o luto dá-se quando a perda é irreversível.
Todos têm uma forma pessoal de lidar com o luto; se uns se isolam, outros 'agarram-se' à vida. No entanto, qual é a importância da comunidade neste processo?
A sociedade é fundamental. O homem é um animal social. É a partir dos três anos que nos sociabilizamos, e a sociedade é determinante para a nossa sobrevivência, daí que tenhamos necessidade de sermos aceites pelos outros. O que acontece é que, às vezes, a sociedade não é permissiva em relação a manifestações de tristeza que ponham em causa a sua reflexão sobre a própria vida.
Era fundamental que a sociedade fosse criando estruturas de bem-estar, de normalização daquilo que é normal – que é o luto e as expressões do luto. As pessoas só precisam de ser ouvidas, porque não têm capacidade para ouvir, e não podem ser julgadas por isso.
Quando é um médico a assinar uma certidão de óbito, acreditamos. Quando recebemos essa notícia, nem que não vejamos a pessoa, o luto começa
Agora que já não estamos no auge da pandemia, qual é o balanço que faz da forma como o luto foi encarado e em que medida é que as restrições em vigor impactaram este processo?
Agora que já podemos falar com alguma distância da pandemia, o que é que acontecia? As pessoas entravam no hospital e saiam mortas. Não havia visitas aos hospitais, os funerais eram realizados com um número muito restrito de pessoas. [Mas] o luto faz-se sempre. Temos capacidade e resiliência para fazer o luto pela morte de entes queridos.
Quando há uma ocorrência em que desaparece uma pessoa e nunca mais aparece, passado uns anos é declarada morta. Quem é que declara a pessoa morta? É um escrivão ou um juiz, um indivíduo num tribunal que assina um papel. Do ponto de vista jurídico, aquela pessoa está morta. Se for perguntar à pessoa que não sabe do ente querido, estará em luto? Não, porque não sabe dela, e não é um juiz que tem capacidade para decretar a morte face à ausência.
Por outro lado, quando alguém entra num hospital, a própria pessoa e os familiares sabem que só há três saídas: ou sai curado, ou doente, mas medicado, ou morto. Quando é um médico a assinar uma certidão de óbito, acreditamos. Quando recebemos essa notícia, nem que não vejamos a pessoa, o luto começa. Do ponto de vista do nojo, dos rituais, sentimos necessidade que seja assim, mas não é intrínseco, é social e superficial. Não é traumatizante, porque o luto faz-se. A pessoa poderá ter de se confrontar com mais dúvidas, mas vai fazer o seu luto e superá-lo. Se for um juiz [a declarar a morte], a pessoa começa a fazer o luto e paralisa o processo na negação.
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A APELO promove o apoio ao luto à distância, através da plataforma Zoom, e conta ainda com espaços físicos em Aveiro, Coimbra, Estremoz e Lisboa. Tem, também, formação para Conselheiros do Luto, que são especialistas no apoio deste processo.
Se necessitar de falar com alguém, poderá também recorrer a um psiquiatra, psicólogo ou clínico geral, além de qualquer uma destas entidades:
- SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 213 544 545 (Número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660
- Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159
- SOS Estudante (entre as 20h e a 1h) - 239 484 020 - 915246060 - 969554545
- Telefone da Esperança (entre as 20h e as 23h) - 222 080 707
- Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535
Todos estes contactos garantem anonimato tanto a quem liga, como a quem atende. No caso do SNS24 (808 24 24 24 - deve selecionar a opção 4), o contacto é assumido por profissionais de saúde, funcionando 24 horas por dia.
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