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"O conflito no Médio Oriente pode colocar problemas sérios a Putin"

José Milhazes, jornalista e historiador, é o entrevistado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

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Teresa Banha
03/11/2023 08:39 ‧ 03/11/2023 por Teresa Banha

País

José Milhazes

Mais de um ano e meio depois da invasão das tropas russas na Ucrânia começarem, a 24 de fevereiro de 2022, o historiador José Milhazes publicou 'A Mais Breve História da Ucrânia', em parceria com o historiador ucraniano Vladimir Dolin.

Numa publicação que explica a história deste país desde o início dos povos eslavos, os dois autores falam de vários episódios marcantes neste percurso turbulento do país. José Milhazes falou com o Notícias ao Minuto para fazer um balanço sobre o tema, numa aproximação com a obra. 

O também jornalista, que foi correspondente em Moscovo,  na Rússia, e colaborou com publicações como a BBC e a RFI, fala não só sobre o livro e a "resistência" ucraniana que tem vindo a ser fundamental para este conflito, como também da influência da mais recente guerra no Médio Oriente - e na importância que esta poderá ter no conflito no leste europeu.
 

[A política de Putin] é um pouco a política de Hitler, que ia avançando aos bocados e depois quando viu que tinha perante si um Ocidente impotente, decidiu conquistar tudo - mas perdeu.

O livro fala sobre as batalhas constantes que os ucranianos tiveram de travar interna e externamente. Fala, nomeadamente, que “Ucrânia” significa “terra de fronteiras” em eslavo antigo. Milénios depois, o país quer fazer jus ao seu nome, mas esta ideia ainda não está bem assente em Moscovo. Aponta não só o apoio internacional como “vital” para esta guerra, mas também o do povo. Acredita que esta resistência se vai manter ao longo do tempo, ou vai esmorecer? E tal como se lê no poema ‘Testamento’, de Taras Shevchenko, que inicia a publicação, a Ucrânia vai sempre acreditar que “o sangue vil, inimigo” será levado “para o fundo do mar”?

Tendo em conta a força e a insistência com que os ucranianos combateram ao longo da sua História, tenho razões para acreditar que a Ucrânia se vai manter como um Estado independente soberano na Europa. Claro que há muitas incógnitas. Houve, no início da guerra, quem esperasse que a Ucrânia completamente, o que não aconteceu. Os ucranianos mostraram que sabem combater e sabem defender a sua terra. Daí que penso que a Ucrânia tem futuro. A verdade é que a história da Ucrânia – daqueles povos e países – ficam nos chamados “lugares complicados” da geografia. São países que ficam nos corredores de passagem de povos. Esse fator desempenhou um grande papel na História do país e continua a ser ainda hoje.

O chefe das Forças Armadas Ucranianas, Valery Zaluzhny, disse, esta semana, num artigo publicado na publicação The Economist, que "provavelmente não haverá nenhum profundo nem bonito avanço” no que diz respeito à contraofensiva. Haverá uma altura em que Kyiv não terá outra alternativa a não ser fazer cedências?

Acho que o artigo do general Zaluzhny é um artigo realista, em que ele desenha a situação real das coisas. Nós sabemos que a Ucrânia, tendo de conta a desproporcionalidade em homens ou armamento, não poderia vencer esta guerra. Nem poderá, se pensarmos que uma vitória significa a derrota total do inimigo.

Como ele disse, é uma guerra de exaustão e claro que esta guerra não vai ser possível vencer pela força das armas. Aqui é procurar uma saída que permita que a Ucrânia saia com dignidade deste conflito. Sabemos que a Ucrânia não vence a Rússia exatamente pelas dimensões – em número de soldados –, mas também não foi vencida nem batida. Resistiu, recuperou uma parte do seu território e, por isso, também não se pode dizer que a Ucrânia perdeu a guerra. 

Eu receio muito que uma troca de pacto por terra, por território - como muitos defendem - vai ser um erro muito grande.

Porquê?

Porque se [Vladimir] Putin conseguir ficar com partes do território ucraniano, não demorará muito tempo a vir a apresentar novas exigências – que, se não for à Ucrânia, é a outros países vizinhos da NATO [Organização do Tratado do Atlântico Norte].

No fim de contas, a Ucrânia é a primeira trincheira da Europa

No livro parece fazer referência a essa ideia. Escreve que Napoleão foi aconselhado a invadir a Rússia a partir de território ucraniano. Este é um território estratégico para, futuramente, e num pior cenário, Moscovo alargar os seus combates? Ou seja, tomando controlo da Ucrânia, não há nada que o posso parar, como Napoleão poderá ter pensado na altura?

O que estou a dizer é, mais ou menos, isso. Putin irá até onde o deixarem ir. E, nesse sentido, vai sempre depender das condições existentes - e da forma como a Rússia vai utilizar ou não essas condições.

Em que medida?

Se o chamado Ocidente sair enfraquecido, também, da guerra do Médio Oriente - que é outra guerra que está muito ligada à Ucrânia -, se a Rússia se apresentar como uma grande vencedora, e o Ocidente não tomar as medidas necessárias para garantir a sua segurança, então aí Putin pode voltar a atacar.

Fez isso em 2008, em 2014 e está a fazer isso agora. No fundo, é um pouco a política de Hitler, que ia avançando aos bocados e depois quando viu que tinha perante si um Ocidente impotente, decidiu conquistar tudo - mas perdeu.

E, nessa altura, o apoio internacional foi vital.

Exato.

Quando falamos em apoio internacional, falamos no apoio incondicional da União Europeia, NATO, Estados Unidos?

Há uma coisa que nós temos de ter presente. Esta guerra não é só uma guerra pela Ucrânia. Esta guerra é uma guerra pela Ucrânia e pela Europa. Porque, volto a repetir: se Putin ocupar a parte da Ucrânia, ele depois pode lançar-se noutras aventuras. No fim de contas, a Ucrânia é a primeira trincheira da Europa. Daí que é pena que o chamado Ocidente não tenha dado atempadamente o apoio necessário à Ucrânia. A Ucrânia deveria ter tido um apoio muito maior e um apoio muito mais atempado. Vemos no artigo do general Zaluzhny, ele escreve sobre o porquê de não se conseguir avançar – um dos motivos é a falta de armamentos, nomeadamente, a aviação. O Ocidente, aqui, deveria concluir que tem que se preocupar mais com a sua segurança e ajudar os vizinhos que estão do lado do Ocidente.

Estamos a falar não só dos sistemas de defesa Patriot, como também dos caças F-16, por exemplo?

Isso e muito mais – estamos a falar de armamentos modernos. Porque, em termos de homens, o desequilíbrio é muito grande a favor da Rússia – que tem muito mais potencial humano para uma guerra. E isso só pode ser compensado através de equipamentos modernos do outro lado - e que a Ucrânia tem vindo a necessitar. E se a Ucrânia não tem mais êxito essa é uma das principais razões. Porque o espírito combativo dos ucranianos não falta.

Referiu que a “Ucrânia tem futuro”. Acredita num futuro próximo no qual a Ucrânia faça parte da União Europeia ou na NATO?

Essa é uma questão a que eu não daria tanta atenção como está a ser dada e como se deu - e que se resume, muitas vezes, só a palavras. 

Porquê?

Para mim, é muito mais importante que, neste momento, a Ucrânia consiga, pelo menos, alguns dos seus objetivos e depois abordarmos a questão da entrada da Ucrânia na União Europeia e na NATO. Isto irá acontecer - penso que será um processo longo. Deverá ser mais rápida para a União Europeia do que para a NATO. Estas metas da NATO e da União Europeia são importantes para os ucranianos, mas, como se costuma dizer, primeiro vamos ver como é que isto vai acabar. E, depois, já falamos o resto a seguir.

Não é a entrada ou não adesão que está a impedir a comunidade internacional de dar apoio a Kyiv.

Exatamente. É que, se não derem apoio e continuarem a discussão, depois, quando disserem “podem entrar para a NATO”, a Ucrânia pode estar a 10% do seu território. Por isso é que, muito mais importante, é primeiro garantir a segurança do território ucraniano e, depois, termos estas discussões todas.

O que aconteceu no Daguestão pode ser um sinal tão forte, ou mais forte, do que o levantamento [motim] de [Yevgeny] Prigozhin. 

Jens Stoltenberg deixará a liderança da NATO, se tudo correr como previsto, em outubro do próximo ano. Falou-se de Robert Fico, da Eslováquia, para seu sucessor. O agora primeiro-ministro eslovaco ganhou as legislativas com uma campanha pró-Rússia e antiamericana. Caso suceda a Stoltenberg, esta pode ser mais uma batalha que Kyiv – e todos os estados envolvidos na NATO - terá de travar?

É por isso que eu digo que é prematuro estarmos a perder tanto tempo com essa discussão. Porque nós não sabemos o que é que nos espera no futuro. Estamos num período de convulsões muito rápidas. E qualquer fator pode mudar completamente a disposição das forças. Por exemplo, estávamos a falar da guerra na Ucrânia e acontece o ataque terrorista em Israel - esse é um dos fatores Que veio a mudar muito esta situação.

Em que medida?

Primeiro, na medida em que esse conflito no Médio Oriente está a desviar as atenções daquilo que se passa na Ucrânia. Segundo, os apoiantes da Ucrânia têm, também, uma parte deles, significativamente, apoiantes também de Israel. Por exemplo, os Estados Unidos, que agora têm que dividir a ajuda por dois.

E, depois, é o próprio apoio internacional à Ucrânia, porque a configuração anterior é uma, hoje é outra. Por exemplo, Israel, que em relação à Ucrânia tinha uma atitude um tanto ou quanto limitada Ou, digamos, neutra entre a Rússia e a Ucrânia e neste momento é um aliado da Ucrânia – que, se conseguir os objetivos do Médio Oriente, poderá esta situação ajudar a resolver a situação na Ucrânia a favor dos ucranianos.

Há aqui muitas coisas que nós não sabemos como vão acontecer. E, por isso, quanto ao cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas (até lá podem aparecer novos nomes, novas personalidades), neste momento, é preciso prestar atenção e centrar-se nos objetivos mais imediatos, que são travar as guerras e, depois falar então em nova estrutura mundial.

A situação na Ucrânia poderá ter sido um rastilho para a situação no Médio Oriente se desenrolar?

Um dos cenários possíveis é o alargamento do conflito no Médio Oriente a novas regiões – e isso aí é um perigo muito grande. Eu diria até que, num sentido, poderia até ajudar a Ucrânia, mas, por outro lado, poderia ter consequências enormes para toda a humanidade. Não só ao Médio Oriente, mas por exemplo: Putin tem mostrado toda a sua incompetência, mais do que uma vez, com os acontecimentos recentes no Cáucaso, onde nós vemos grupos de jovens extremistas islâmicos a tomar um aeroporto, incendiar um centro cultural hebraico. E isto passa-se numa região da Rússia muito sensível e muito explosiva, que é o Cáucaso, onde existe uma maioria da população muçulmana. E o conflito no Médio Oriente pode alargar-se até ali e colocar sérios problemas ao próprio Putin.

Como?

Porque serão movimentos, a aparecer nessa região, que vão contestar a política de Putin. E, nesse sentido, não imaginem, nem acreditem, quando Putin diz que “está tudo calmo e não há problemas religiosos nem coisa nenhuma na Rússia”. Isso é o que ele diz. Outra coisa é o que pode vir a acontecer. O que aconteceu no Daguestão pode ser um sinal tão forte, ou mais forte, do que o levantamento [motim] de [Yevgeny] Prigozhin. Ou seja, num país como a Rússia, onde vivem numerosíssimos povos - incluindo muçulmanos e judeus -, este tipo de acontecimento é muito perigoso. Nesse sentido, nós não sabemos para onde vai a guerra no Médio Oriente e quais serão as consequências - não só para Israel, mas para outros países daquela região.

É nesse sentido que diz que pode ser mau para a humanidade, mas bom para a Ucrânia? No sentido em que poderá gerar um conflito interno e resultar em algo contra Putin?

Sim. Aí Putin vai ter que combater em várias frentes – e uma delas, as frentes internas, são extremamente perigosas para Putin. 

Porquê?

Porque não se sabe como é que vão reagir as forças armadas e a polícia - quem é que vai apoiar. Uma coisa é Putin controlar a situação em geral, e depois ver que, no Daguestão, entra um bando de malfeitores pelo aeroporto aeroporto e a polícia não faz nada. Isso é mau sinal para Putin. É que Putin diz que manda em tudo e pode tudo, mas há coisas em que vemos que não é assim. Uma delas é essa.

Tanto mais em regiões como o Daguestão, onde uma parte significativa da polícia são locais - e poderão não entrar na onda de violência se for necessário reprimir algum levantamento.

No livro ‘aproxima’ ainda a Ucrânia a Portugal, na medida em que faz referência a judeus sefarditas portugueses ou mesmo à independência de Timor-Leste. Julga que a história da Ucrânia é um tema em falta nas escolas em Portugal?

Eu ando muito em escolas, faço palestras para os jovens e fico surpreendido exatamente pela pobreza dos nossos manuais de História em termos de relações internacionais. É importante estudar a História de Portugal - não há dúvida nenhuma - mas não é só o que importa. Portugal vive num meio geográfico determinado, vive no mundo. E as pessoas têm de saber que problemas há neste mundo que podem vir ou não a afetar Portugal. O nosso futuro de história nas escolas devia ser mais alargado e ligado, claro, a temas importantes, como são aqueles que vão acontecendo nos últimos anos. É preciso que os jovens tomem consciência de que estamos a caminhar para um mundo muito incerto e que serão eles que terão de resolver os problemas. A juventude tem de ter consciência do mundo difícil em que vive e de que as crises que vamos atravessar irão ser também muito difíceis - e participar na vida social e política de forma a minimizar os perigos que nos esperam.

Leia Também: UE condena saída da Rússia de tratado Nuclear após meses de "ameaças"

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