"Tolerar homossexuais não é o mesmo do que respeitá-los"
A associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero) celebra, este ano, 20 anos de existência. Numa entrevista ao Notícias ao Minuto, as duas responsáveis pela associação recordaram as conquistas das últimas duas décadas e traçaram planos para o futuro.
© Notícias ao Minuto
País ILGA
Isabel Advirta e Marta Ramos, presidente e diretora executiva da ILGA, respetivamente, conversaram com o Notícias ao Minuto e, nesta primeira parte da entrevista, falaram sobre a discriminação que ainda existe na sociedade portuguesa para com os homossexuais, bissexuais e, também, para com as pessoas transgénero.
A ILGA está a comemorar 20 anos de existência. Como foram estas duas últimas décadas?
Isabel: De 1996 para cá tudo mudou. Quando a ILGA foi fundada não havia igualdade de uma forma geral na lei. Havia, aliás, vários resquícios de um Código Civil que durante muitos anos criminalizou a homossexualidade.
A grande primeira mudança terá sido o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa que explicitou a orientação sexual como um dos motivos pelos quais ninguém pode ser discriminado.
Depois, o Código Penal que passou a prever o agravamento em função de um ódio derivado de homofobia e transfobia e o Código do Trabalho que passou a proteger as pessoas que poderiam até aí ser despedidas por serem L (lésbicas),G (gay),B (bissexuais) ou T (transgénero).
Também mudaram as questões da parentalidade… A verdade é que houve um quadro enorme de mudanças…
Marta: … e em pouco tempo. Face ao Código Penal e à situação de Portugal, quer em termos sociais, quer em termos legais, é um curto espaço de tempo para mudanças tão significativas. Mesmo em comparação com outros países na Europa, especialmente na União Europeia, que ainda não chegaram ao grau de discriminação zero, que é o que temos neste momento em Portugal.
Tolerância implica uma diferença de posição. ‘Eu tolero-te’ não é a mesma coisa do que 'eu respeito-te'Apesar de Portugal ser considerado um país conservador de grande influência católica, temos conseguido avançar socialmente e, acima de tudo, legalmente.
O que é mais importante: a mudança na lei ou na mentalidade das pessoas?
Isabel: Uma coisa traz a outra. A igualdade na lei é fundamental porque garante que não é o Estado o primeiro a discriminar. Se na lei todos são iguais então há uma legitimidade acrescida, porque o Estado está a endossar a igualdade e é o garante da proteção das pessoas.
Mas ainda não está tudo feito…
Isabel: Ainda há muito trabalho para fazer. É certo que houve uma mudança social. Portugal de 2016 não tem nada a ver com o Portugal de 1996. Mas ainda há muito trabalho a fazer, seja em termos de representação mediática ou em termos legais.
Marta: Por exemplo, não há nada, a não ser o artigo 13º da CRP, que proíba a discriminação. É preciso mais do que um único artigo para que uma pessoa vítima de discriminação se sinta apoiada para apresentar uma queixa. E não só. Existe a proibição da discriminação em algumas áreas, mas não em todas e, especialmente, no acesso a bens e serviços.
É preciso harmonizar a legislação e é preciso criar a proibição de discriminação em algumas áreas como esta e, por isso, temos trabalhado no sentido de haver uma lei-quadro anti-discriminação das várias formas de discriminação e, portanto, não só de orientação sexual e identidade do género.
Apesar das mudanças que já se verificaram ainda somos uma sociedade que discrimina?
Marta: Sim, descriminamos muito como aliás se viu no programa da SIC, ‘E se fosse consigo’. Foi um choque para a sociedade ver aquele episódio [em que um casal de homossexuais está de mãos dadas numa paragem de autocarros em Lisboa] porque as pessoas achavam que já estávamos noutra fase em termos sociais e foi um choque perceber que ainda não estamos lá.
Nós crescemos no preconceito. Crescemos no palavrão. Um dos primeiros insultos que se aprende é 'maricas'E foi em Lisboa, uma cidade que é capital e onde há um maior acesso à informação, onde há uma maior presença de associações que trabalham a não discriminação. Por tudo isto seria expetável que Lisboa fosse muito mais tolerante. Bom, não gostamos de usar a palavra tolerante!
Não gostam de usar a palavra tolerante porquê?
Isabel: Porque tolerância implica uma diferença de posição. ‘Eu tolero-te’ não é a mesma coisa do que ‘eu respeito-te’.
Marta: É uma questão de respeito, de compreender que as pessoas estão ao mesmo nível independentemente das suas características pessoais
Por que razão os jovens, que têm atualmente um acesso infinito a informação, são homofóbicos?
Isabel: Porque é que não hão-de ser? Não tiveram na escola um percurso que lhes abrisse os olhos de outra forma e à sua volta a sociedade é homofóbica. Os jovens são o reflexo da sociedade em que foram educados e em que não houve professores que desconstruíram, não houve família que ajudou a desconstruir, não houve um processo social que os ajudou a serem respeitadores das diferenças todas. Nós crescemos no preconceito. Crescemos no palavrão. Um dos primeiros insultos que se aprende é ‘maricas’.
Marta: E o pior é que não é percecionado socialmente como um insulto. O insulto homofóbico é a forma mais comum de piada socialmente aceite. Muitas vezes não é que a discriminação seja intencional, mas é apreendida, é cultural.
Como é que se explica a uma pessoa homofóbica que o amor entre duas pessoas do mesmo sexo é tão digno e tão merecedor de respeito como o amor entre heterossexuais?
Isabel: Essa é a pergunta de um milhão de euros! A homofobia é, acima de tudo, ignorância. Há que perceber que ninguém tem absolutamente nada a ver com isso e os homossexuais têm todo o direito de se amarem. O que nos distingue não é a orientação sexual, é a forma como vivemos a nossa vida. Não há que impor um modelo que é o nosso, que está muito bem para nós, mas não está bem para a outra pessoa.
*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.
Comentários
Regras de conduta dos comentários