"Artistas são fação dispensável da sociedade quando se pensa em trabalho"

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Samuel Úria que lança, esta sexta-feira, dia 18 de setembro, o novo álbum ‘Canções do Pós Guerra’.

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Natacha Nunes Costa
18/09/2020 09:53 ‧ 18/09/2020 por Natacha Nunes Costa

Cultura

Samuel Úria

Samuel Úria lança, esta sexta-feira, dia 18 de setembro, o seu novo álbum de estúdio, intitulado ‘Canções do Pós-Guerra’. Pelo título, poderia ser um diário dos últimos meses, sobre uma luta contra uma pandemia que já afetou quase 30 milhões de pessoas, mas não é.

Apesar de garantir que não tem dons adivinhatórios, podemos dizer que Samuel Úria quase teve uma premonição sobre o que aí vinha. Também não é difícil. Tal como explicou em entrevista ao Notícias ao Minuto, “as crises são de facto expetáveis”.

A pandemia trocou-lhe as voltas. O lançamento do disco, que era para acontecer em abril, foi adiado. Viu todos os concertos serem cancelados. E, tal como milhares de artistas, percebeu que estava frente a um ‘inimigo’ que jogava às escondidas há muitos anos, mas que, se revelou perante esta crise sanitária: “A fragilidade da Cultura”.

Contudo, continua a ser um “miúdo maravilhado com esta oportunidade” e vai, aos 41 anos, lançar mais um álbum, de nove canções, com raízes no rock e folk. Para o fazer, convidou amigos como a cantora Catarina Falcão para o dueto ‘Cedo’ e o músico Miguel Araújo para tocar em ‘As traves’.

A esperança no futuro, tal como acontece num pós-guerra, vem de mãos dadas com a incerteza. “É difícil fazer planos”, sublinha ao Notícias ao Minuto, no entanto, Samuel Úria não se deixa abater. Tem três concertos agendados “que não estão 100% garantidos, mas que em princípio irão realizar-se”.

O primeiro está agendado para 6 de outubro, no Teatro Tivoli, em Lisboa, o segundo para dia 7 na Casa da Música, no Porto, e o terceiro para dia 24 no Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima.

Apresenta, esta sexta-feira, dia 18 de setembro, ‘Canções do Pós-Guerra’. Qual a origem do título do novo álbum? De que guerra fala?

O título é uma coisa que, geralmente, só se escolhe no fim, depois de ter as canções todas e perceber a onde é que elas nos vão levar. Desta vez apareceu quando eu tinha duas ou três canções, sobretudo porque percebi que a palavra guerra é um conceito muito amplo -  podemos estar a falar de guerra num sentido muito literal, de conflitos armados, mas também podemos falar de guerras biológicas, guerras de sexos, conflitos internos, no seio da própria pessoa  - e isso permitia-me escrever várias canções sem estar confinado a um tema só, mas podendo ter um título para todas as coisas que eu pretendia abordar. Além disso, o pós-guerra também pode levar-me para vários assuntos, na reconstrução, na esperança, mas também no rescaldo e na desesperança, numa tristeza profunda, num luto, mas também numa alegria. Foi a ambiguidade da palavra que me levou a escolher como título.

Os temas do novo trabalho falam sobre o quê? Onde vai buscar inspiração?

A minha inspiração, não é propriamente consciente, para mim é uma grande consciência, uma grande racionalidade, desenvolver as ideias que aparecem, mas quando as ideias aparecem nem sempre é fácil perceber como é que elas cá vieram ter. Aquilo que ainda não me fez focar na inspiração é o facto de não estar sempre a escrever canções. Há muita coisa que fica cá metida dentro e que só surge no período em que eu estou a conceber canções. Eu vou colando, ao longo do tempo, até ao longo dos anos que não estou fixado a escrever discos e há muitas coisas - observações, livros, filmes, músicas - que são interiorizadas. E depois passa também pelo lado da observação, do quotidiano, de eu não ser uma pessoa impermeável ao contexto social, político, a questões afetivas e emocionais e que muitas vezes só me saem em canção, não me saem em discurso direto. Quando chega à altura de escrever, todo um presente ou passado recente, todo um caudal de memórias acaba por desaguar num momento de inspiração que, não sendo determinado nem consciente, acaba por ser muito concreto e muito objetivo.

Os problemas aqui em Portugal parecem uma amostra do que se passa lá fora, mas com a globalização, de repente, percebe-se que há correntes e há tendências que são comunsE alguma dessas 'guerras' que o inspiram tem a ver com Portugal?

É verdade que tem muito a ver com o país porque é a minha atmosfera mais próxima. Os problemas aqui em Portugal parecem uma amostra do que se passa lá fora, mas com a globalização, de repente, percebe-se que há correntes e há tendências que são comuns aquilo que se passa lá fora. Isso é tão pujante, as ameaças são tão visíveis que é quase como um amargo de boca de um pessimismo que vem de uma falta de esperança sobre aquilo que já conhecemos, que são os processos mundiais.

Sente que teve uma premonição? Visto que, fez o álbum ainda em 2019, na época pré-Covid...

Escrevi este disco antes de sonhar que ia haver uma pandemia. Foi quase uma premonição, mas não sou dotado de nenhum dom profético. O que acontece é que, não prevendo a pandemia, em algumas das situações em que estava a escrever, que era sobre o que me rodeava, mas também eram sobre mim, percebia que, face a uma crise, não ia ser só o melhor de nós que viria ao de cima. As crises são de facto expectáveis, não esta pela qual passamos, mas este contexto de pandemia, onde há pessoas a remar para um lado só. Coisas como negacionismos e até tumultos raciais e ideológicos foram impulsionadas pelo que estávamos a viver e eu não sabia o que se iria passar, também não era fácil prever uma coisa que abala-se assim o mundo... Mas, de facto, havia já vários sintomas dessa patologia que agora tem erupções tão visíveis então, não fui propriamente um profeta, fui um mero observador do que se estava a passar.

Quase parece que somos pessoas pagas para desenvolver atividades lúdicas e que, agora que a crise chegou, temos é de arrepiar caminho e arranjar uma pá ou uma sachola e cavar terraOs artistas foram das classes mais afetadas pela pandemia em Portugal e no mundo. Sente que sempre foram pouco considerados e a pandemia apenas tornou a situação mais visível?

Isso foi notório. Ficou claro que nós somos trabalhadores precários. Isso não era tão claro porque íamos tendo algum trabalho e havia sempre a esperança de podermos ter concertos, a venda de discos, já nem tanto. Os artistas são uma fação dispensável da sociedade quando se pensa em trabalho. Quase parece que somos pessoas pagas para desenvolver atividades lúdicas e que, agora que a crise chegou, temos é de arrepiar caminho e arranjar uma pá ou uma sachola e cavar terra. Quase que parece isso. Sinto que o discurso laboral de quem tradicionalmente apoia trabalhadores continua a contemplar essa ideia de que o trabalhador é só o operário e só o agricultor e o agente da cultura, das artes, está excluído dessa panóplia de características que determinam o que é que é um trabalhador em Portugal, o que é que é um trabalhador em dificuldades. Quem está a passar por dificuldades, fora do mundo das artes, é de facto um trabalhador a ter em conta. Já as pessoas das artes que estão a passar por dificuldades têm de pensar em arranjar uma alternativa e mudar o percurso de vida. Isso era uma suspeita, mas ficou absolutamente claro [com a Covid-19]. É sempre muito bom para qualquer instituição de poder, câmaras, instituições, Governo mostrarem que apoiam as artes de alguma forma. Aproveitam-se desse espírito que eleva a ideia de que são preocupados com as artes, que faz parte de o tecido de um país, mas essa preocupação esfuma-se rapidamente quando chegam as dificuldades e quando chega a altura de apoiar e mobilizar.

Mas acha que o Governo e a ministra da Cultura estão a implementar as medidas certas para ajudar os artistas?

O que fica notório aqui é que a inação do ministério da Cultura não tem tanto a ver com o contexto da pandemia, tem a ver com uma quase inexistência prévia. Agora percebemos que não conseguem fazer nada porque já não vinham a fazer nada. É difícil construir uma rede de apoios em cima do nada. A fragilidade da Cultura agora está exposta, mas vem de trás.

Além de ter adiado a apresentação deste novo álbum, em que aspetos é que a pandemia da Covid-19 afetou a sua vida profissional?

Foi frustrante, embora, a revolução do quotidiano e da normalidade era tão grande que, de alguma maneira, distraiu-me do quanto frustrante era não poder estar a trabalhar porque, de repente, as preocupações imediatas tinham a ver com com o mundo, com a família. Agora claro, mais do que acabrunhamento há uma grande incerteza. Posso estar com alguma preguiça, a empurrá-la com a barriga, mas como estou agora a lançar um disco, estou completamente concentrado no projeto e ainda não fiz planos para o que vem a seguir, porque é tão incerto que é difícil fazer planos. É mesmo muito complicado. Face à incerteza, eu escolho concentrar-me a 100% naquilo que é certeza, aquilo que está próximo e também valorizar, pelo menos, os concertos que sei que vou dar, porque não sei quando é que vou dar uma série de concertos como os que tenho agora no orçamento. Nem estes estão 100% garantidos, mas, em princípio, irão realizar-se. Havendo estes três ou quatro palcos que eu sei que vou pisar, vou pisar como se fossem os últimos, vai ser ser especial, pelos piores motivos, mas especial. Não é que desvaloriza-se os palcos antes, mas acho que agora, mais do que esta questão de gostar muito de estar em palco e de estar a exercer a minha profissão, há quase uma necessidade louca de adorar cada palco e usá-lo como se fosse último.

Como vê este regresso aos palcos em estado de contingência? Acha que é seguro? Como acha que deve ser feito de forma a evitar surtos e, ao mesmo tempo, ser vantajoso a nível monetário para os artistas?

Há uma redução drástica de lugares na sala, menos possibilidade de ter gente pagante nos concertos. Além dessa redução, vamos ter uma crise económica, que já se faz sentir, mas que acho que se vai sentir ainda mais. Essa crise vai reduzir o poder de compra e limitar a possibilidade das pessoas irem a espetáculos a pagar e irá reduzir, por exemplo, os orçamentos das autarquias que, ainda assim, continuam a ser um dos focos proporcionadores de trabalho para os artistas. Esse vai ser um problema muito grande e não há assim muitas alternativas. Pode haver mais patrocínios e criar essa função de publicidade alicerçada com arte, mas ainda está muito no ar.

Está quase a fazer 20 anos de carreira, o Samuel Úria dessa altura ainda é o mesmo?

De alguma maneira é, porque eu nunca fui muito ambicioso em relação à música. Sou ambicioso na música que faço, nas canções, nas exibições, que elas corram de determinada maneira. Sou muito cioso na maneira como escrevo, mas nunca sonhei na minha adolescência fazer música. Não era uma questão de ter um grande sonho, que eu não esperava que se concretiza-se. Era mesmo não ter sequer sonhos para achar que era algo tão agradável, algo que se tornava às vezes tão necessário para a minha saúde mental, espiritual e emocional que eu não imaginava sequer que poderia alguma vez ser músico profissional. Esse espanto e essa gratidão pelas oportunidades que eu tenho não mudou nos últimos 20 anos, não mudou absolutamente. Até por causa disso é que eu acho que não estou tão esmorecido como as condições atuais me podiam fazer esmorecer. Continuo a sentir-me muito grato pelas, agora poucas, oportunidades que vou tendo. Muito grato a poder continuar a lançar discos, a ter gente que se interessa por eles, que falam sobre eles, que têm a generosidade de ouvir a minha música e generosidade ainda maior de tentar entendê-la. Isso para mim continua a ser uma novidade. Continuo a ser um miúdo maravilhado com esta oportunidade que me estão a dar.

E ainda consegue rever-se nos primeiros trabalhos?

Sim, consigo. Há um tipo de simplicidade que se vai desaprendendo e é um tipo de simplicidade que eu acho que é boa. A maneira de não perder contacto com essa simplicidade, muitas vezes, é continuar a cantar canções, mesmo que algumas coisas nos embaracem, porque são expressões de uma adolescência tardia, ou 'chique espertice' que nós queremos anular. Acho que, por outro lado, manter esse contacto com o passado, mesmo que às vezes nos dê um bocadinho de coceira com essas partes que já não nos revemos, mantém uma ponte com esse deslumbramento. Acho que esse deslumbramento é bom. Pelo menos para mim, favorece-me. O facto de poder estar a fazer música e não o deslumbramento com outras coisas como fama, ou estatuto. O deslumbramento com a descoberta das canções isso sim é muito bom.

De regresso ao ‘Canções do Pós Guerra’. O que é que este disco tem de diferentes dos outros?

Foi um disco planeado para ser diferente do outro disco. Eu lancei o 'Carga de Ombro' em 2016 e toquei muito, durante quatro anos e não foi por não querer fazer discos novos, foi porque havia públicos a serem desbravados. Foi um disco que teve uma validade muito, mas muito mais longa do que eu estava a contar. Passados dois anos, deixa-se de marcar concertos em torno dos discos e esta vez isso aconteceu porque havia pessoas novas a descobrir o disco. Eu tocava numa terra e passados dois anos havia publico novo. Foi um disco que teve uma fase de crescimento lenta, mas estável e duradoura. Nesse sentido, eu fui colocando este disco de parte. Eu queria fazer um disco naturalmente diferente para também não cristalizar a minha carreira, ou a minha identidade musical daquilo que tinha sido um disco duradouro anterior. O processo de origem teve de ser diferente. Este é um disco muito mais contido. É mais acústico. Ilumina algumas características pop e contemporâneo. que o outro também contemplava. Há trejeitos de escrita que acho que são meus e que vão ser transversais a toda a minha discografia, apesar da sobriedade ser diferente, apesar dos temas serem diferentes. Há trejeitos na forma como escrevo e na melodia que acho que acabam por ser transversais.

Quando e onde é que o público poderá assistir ao vivo à apresentação do álbum?

Os dois concertos de apresentação que estão marcados e, que creio, estão seguros são no dia 6 de outubro, no Teatro Tivoli, em Lisboa, e depois, no dia a seguir, dia 7, no Porto, na Casa da Música.

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