A primeira estreia portuguesa da 40.ª edição do Festival de Almada acontece ao segundo dia, no Teatro Municipal Joaquim Benite, pela companhia anfitriã, com um texto centrado num velho ator que foi a última escolha para desempenhar o papel de protagonista na peça do escritor austríaco.
"Calvário", com texto e encenação do diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada (CTA), Rodrigo Francisco, passa-se numa noite de passagem de ano, num hotel em Ostende, tal como a peça de Bernhard, e tem por protagonista um ator de caráter mitómano e arrogante.
Calvário é o termo com que antigos atores designavam as falas de que se esqueciam nos ensaios e na peça.
Na entrada daquele hotel, o protagonista da peça aguarda pelo diretor do teatro de Flensburg que, alegadamente, lhe terá prometido o papel de Rei Lear. Orgulhando-se de ser um ator 'batido' em papéis de primeira relevância da grande dramaturgia, acaba porém por embirrar com todos os que por si passam, alguns dos quais atores da peça que irá interpretar e que também estão descontentes com os papéis que lhe forma distribuídos.
Num texto em que apenas o assistente pessoal do velho ator defende o seu "mestre com unhas e dentes", a peça que iria interpretar acaba por se tornar numa ameaça de naufrágio de todo o grupo.
Rodrigo Francisco inspirou-se em "Minetti", que Bernhard escreveu para ser protagonizada pelo ator alemão Bernhard Minetti (1905-1998), numa única récita numa noite de passagem de ano, por ser um admirador confesso do autor austríaco (1931-1989), como confessou à agência Lusa, no final de um ensaio.
"Minetti: Retrato do artista quando velho", escrita em 1975, é "um dos textos mais bonitos que conheço sobre o teatro", acrescentou o diretor da CTA, lamentando não ter assistido à encenação protagonizada por Ruy de Carvalho em 1990, no Teatro Nacional D. Maria II, dirigida por Ricardo Pais com cenografia do arquiteto Nuno Lacerda Lopes.
"Uma coisa que nos faz muita falta é o espírito de provocação e irreverência que Thomas Bernhard tem de dizer aquilo que mais ninguém tem coragem para dizer", observou Rodrigo Francisco.
Um espírito de provocação que é ainda mais necessário nos dias de hoje marcados por "um ambiente tão conformado com a realidade, que às vezes nos parece tão absurda", garante o encenador. Thomas Bernhard tinha "essa capacidade" e o que é ainda "mais preocupante é que vozes como a dele tendem a ser cada vez mais silenciadas".
Atualmente vive-se "numa espécie de autocensura", afirma Rodrigo Francisco. Não se dizem certas coisas, "ou porque é inconveniente ou porque se tem medo de ofender alguém".
"Dá que pensar como é que as coisas mudam em tão pouco tempo. Thomas Bernhard morreu em 1989 e hoje em dia praticamente desapareceu da programação da maioria dos teatros europeus", acrescentou Rodrigo Francisco, admitindo a possibilidade de tal se passar porque o autor austríaco dizia coisas que "hoje em dia seriam muito problemáticas".
Carlos Pereira, João Cabral, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter, Teresa Mónica e a estagiária da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) Maria Velez Araújo completam o elenco da peça, que tem cenografia de Céline Demars.
Com figurinos de Ana Paula Rocha e luz de Guilherme Frazão, "Calvário" terá mais cinco récitas -- nos dias 07, 08, 11, 15 e 16 - na sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite.
Vinte espetáculos, oito dos quais portugueses e doze estrangeiros, preenchem o programa de teatro da 40.ª edição do Festival de Almada, que se distribuem por nove palcos da cidade (Teatro Municipal Joaquim Benite, Escola D. António da Costa, Fórum Romeu Correia, Incrível Almadense, Academia Almadense) e pelo Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
O festival encerra no próximo dia 18. A programação pode ser consultada em https://festival.ctalmada.pt/.
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