"Até quando, na violência doméstica, é a vítima que tem de sair de casa?"

O primeiro livro de Joana Dias, a convidada desta quarta-feira do Vozes ao Minuto, é uma autoficção baseada numa situação de violência doméstica de que a autora foi vítima. Em entrevista, falou sobre a dureza do processo de escrita, sobre a violência doméstica em Portugal, e sobre o seu próprio processo após sair de uma relação abusiva.

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© Leonor Ribeiro

Marta Amorim
31/07/2024 08:45 ‧ 31/07/2024 por Marta Amorim

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'Nós, as Indecentes', o primeiro livro de Joana Dias, autora do podcast e da série 'A mim, Nunca', conta a história de uma mulher com uma caminhada dura, como a de tantas mulheres na vida real.

 

É um espelho de muitos percursos femininos e uma autoficção baseada numa situação de violência doméstica de que a autora foi vítima.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Joana Dias revisita o processo de escrita e a própria relação abusiva, deixando uma mensagem de esperança a quem, em casa, se senta no sofá com o abusador/a. 

"Sabia bem que o livro ia ser duro porque a vida é dura e porque eu não queria escrever nada que fosse um livro da Disney", afirma, acrescentando que a abra, "para lá do ato de libertação, é um manifesto feminista”.

Há um sem número de mulheres neste país vítimas de violência doméstica - também há homens - e eu pensei que, se eu contasse a minha história, talvez pudesse ajudar

Contar a sua história implica um ato de coragem. O que a fez querer escrever este livro? E, já antes, o podcast…

Comecei o podcast porque tinha uma série de textos que tinha escrito para me ajudar a libertar e estruturar a minha vida depois de uma realidade de violência doméstica. E, porque havia, na forma como tudo se desenrolou, uma palavra de esperança. Há um sem número de mulheres neste país vítimas de violência doméstica - sabemos que também há homens - e eu pensei que, se eu contasse a minha história, tento ela este lado de esperança, porque eu saí da realidade da violência doméstica, talvez pudesse ajudar. Trabalhando eu na RTP, esta bandeira do serviço público é natural em mim. São muitos anos... e este foi o meu móbil. Olhei para uma série de textos que tinha e, trabalhando eu na rádio, construí o podcast que estreou na Antena 1. E esse podcast foi depois transformado numa série.

Sobre o livro… Desde sempre nunca soube muito bem o que queria fazer na vida. A única coisa que eu sabia era que gostava muito de ler e de escrever, por isso perguntava-me: ‘será que um dia vou escrever ou editar um livro?”. Este sentimento sempre me acompanhou até ao dia em que eu o comecei a escrever. Lá está, mais uma vez, para me estruturar. Porque a realidade da violência doméstica, quem passa por ela, sabe que são muitas as fases para a libertação. É muito desfazer de trauma, de nós. Há aqueles traumas que estão mais visíveis e que com o tempo - e com terapia, que é muito importante - estes nós vão-se desfazendo. Mas à medida que vamos voltado à nossa vida, e ela está aparentemente tranquila, percebemos que há outros traumas mais escondidos, em camadas mais escondidas. E, mais uma vez, a escrita ajudou. Este livro, para lá do ato de libertação, é um manifesto feminista. Não é a minha história, não é uma autobiografia, mas é uma autoficção. Parte de algumas histórias que me aconteceram, principalmente a da realidade da violência doméstica.

Notícias ao Minuto © Reprodução  

Pelo meio, foi também um processo de catarse?

Completamente. 

Não queria dar esse toque ao meu livro de romantização do amor. Porque as coisas más e violentas que nos acontecem continuam sempre a ser más e violentas

Emocionalmente, como foi?

Duríssimo. Eu fechei-me e escrevi o livro em sete meses. Foi uma auto clausura porque eu precisava muito de o tirar de dentro de mim. Era uma história que eu tinha na cabeça e precisava de a tirar. Sabia bem que o livro ia ser duro porque a vida é dura e porque eu não queria escrever nada que fosse um livro da Disney. Não queria dar esse toque ao meu livro de romantização do amor. Porque as coisas más e violentas que nos acontecem continuam sempre a ser más e violentas. Não há forma de nós fugirmos a isso. Aquilo que nós podemos fazer é aprender a lidar com o que de mau e violento nos aconteceu, porque a realidade já não a posso mudar. 

Cada um fá-lo da forma que consegue, mas, aquilo que eu fiz, foi transformar essa dor numa expressão artística. A palavra não é bonita, mas aquilo foi um vómito. 

Se eu preferia ter escrito um primeiro livro sobre outra coisa qualquer? Provavelmente, sim, mas depois também há uma certa beleza na transformação da dor. 

Uma purga…

Isso mesmo. Tirei aquilo de dentro de mim. Porque nós, ao escrevermos, entramos num processo. O meu foi duríssimo, porque tive de recordar muita coisa, tive de me colocar no momento em que as passei. Principalmente nas situações de violência doméstica. Escrevi essas cenas com conhecimento de causa. Se eu preferia ter escrito um primeiro livro sobre outra coisa qualquer? Provavelmente, sim, mas depois também há uma certa beleza na transformação da dor. Porque passei de viver em medo, para escrever sobre isso sem uma única vez me passar pela cabeça o medo de 'o que é que ele me pode fazer'. Desapareceu. Ganhei esta capacidade de colocar o agressor no lugar dele. 

E é preciso colocar os agressores nos seus lugares. Eu acho que a inteligência emocional, se fosse trabalhada nas escolas como é a inteligência institucional é, as coisas seriam diferentes. Se nós nos conhecessemos desde pequenos, se nos fosse ensinando a conhecermo-nos, talvez as coisas fossem diferentes. 

Mesmo nós, que nos dizemos mulheres feministas, temos o machismo entranhado em nós

Falou sobre as escolas... Enquanto mulheres, e enquanto adultas e adultos, o que é que podemos fazer pelas nossas crianças para evitar que esta violência se perpetue?

Enquanto nós continuarmos a dizer aos rapazes ‘estás a chorar, pareces uma menina’, ou perguntar quantas namoradas tem, e dizer às meninas que 'jogar à bola é para rapazes', o que é que nós estamos a fazer? Isto é já violência de género. Estamos a dizer aos rapazes que os traços ditos, entre aspas, femininos, são maus e mais fracos e que lhes tiram a virilidade, e estamos a dizer às meninas qe determinados comportamentos são só dedicados aos homens. Isto é um erro absoluto e estrutural. 

Estamos no século XXI e como assim a escola ainda não tem uma disciplina de inteligência emocional para falar de sentimentos e que qualquer emoção é válida de existir. O machismo e o patriarcado estão entranhados na sociedade a tal ponto que mesmo nós, que nos dizemos mulheres feministas, temos o machismo entranhado em nós. Eu aprendi imenso com a minha irmã, bem mais nova do que eu, e com o meu filho. Ao meu filho perguntavam, tinha ele dois anos, se ele já tinha namorada. Não se faz essa pergunta a um bebé. Estamos a sexualizar as crianças. E não me digam que estou a exagerar. 

Quando, mais tarde, lhe perguntavam se tinha namorada, eu corrigia: ‘ou namorado’. E o meu filho cresceu assim, com essa normalização e respeito pelo outro. E é essa a mensagem que temos de passar.

 Até quando é que, por exemplo, também, numa situação de violência doméstica, é a vítima quem tem de desaparecer, de sair de casa?

Os números de violência doméstica em Portugal continuam elevadíssimos, muitas vezes ditando o fim de muitas vidas. Estes casos abrem muitos jornais, mas continuam a aumentar.  Ainda fazemos muito pouco, enquanto sociedade? 

Falou num ponto muito importante. Estes casos continuam a abrir jornais, é um facto. Mas eu acho que a forma como a comunicação social trata a realidade da violência doméstica é errada. Porque, claro que nós temos de saber esses números, mas nós temos de passar a dar a força a quem é vítima. ‘Morreu mais uma mulher’, escreve-se e ouve-se. Isto, para as mulheres que estão em casa com os seus agressores, é arrasador. E é um tirar de esperança. Até quando é que, por exemplo, também, numa situação de violência doméstica, é a vítima quem tem de desaparecer, de sair de casa? Foi uma das coisas que me perguntaram, se queria ir para uma casa descaracterizada. Seria a última estocada na minha pouca estrutura. Teria de me esconder, esconder o meu filho. Perder o último bocadinho que me sobrava da minha rotina. Isto enquanto o agressor faz a sua vida normal. Vai para o trabalho se o tiver, passa pela minha casa, vai beber copos com os amigos… Então, acho que podemos começar por aí.

Por outro lado, é assustador também a violência no namoro. É assustador como os jovens têm tanta informação, como é que se permitem estar em situações de violência em tão tenra idade. Há invasão de privacidade, raparigas e rapazes que acham normal que se mexa no telemóvel, que saibam os códigos, entrem nas redes sociais… O que é que nós estamos a fazer para não conseguirmos passar aos nossos adolescentes que isto é errado? É de facto imperativo explicar aos jovens a importância da individualidade e como ela deve e te de ser respeitada e defendida. Ninguém tem o direito de invadir a nossa privacidade. Como é que nós não ensinamos que estes comportamentos de controlo vêm de uma insegurança brutal da parte de quem os pratica? Temos de ensinar as nossas crianças a desenvolver a sua inteligência emocional. Porque, até lá, os rapazes crescem a achar que são superiores à mulher e que têm se controlar a sua liberdade, garantindo que a mulher anda nos eixos. E a mulher cresce a achar que deve viver submissa. Tudo isto é uma generalização, claro, porque nem todos crescerão assim. Mas isto deve-se à religião, à cultura, à vivência do pecado e do castigo. 

Muitas vezes, como no seu caso, e no do livro, o fim da relação dita o início de um outro inferno, o da perseguição. É um dos fatores que nos faz, enquanto mulheres, protelar o fim?

Sim, muito, mas não só. A realidade da violência doméstica coloca as vítimas numa bolha, numa engrenagem. E o processo e o agressor fazem com que a vítima nunca consiga sair. É uma roda, um ciclo, em que a vítima é agredida, seja de que forma for, fica aflita, o agressor pede desculpa, diz coisas como ‘onde é que eu estava com a cabeça, amo-te tanto, perdoa-me’. Depois vem a comizeração, e a vítima perdoa, porque vê que ele se arrependeu. Depois volta tudo à estaca zero, nova agressão. Depois a mulher chega, invariavelemnte a um ponto em que percebe que não está bem e quer sair. Mas aí chega a vergonha, porque pensa que está naquela situação porque se ‘deixou’ ali chegar e ficar. Depois, arrasta e acaba por se convencer que merece ficar naquela realidade. Porque falou com aquele rapaz, porque usou batom vermelho, porque chegou mais tarde a casa. E essa culpa e essa vergonha fazem com que a vítima fique. 

Depois, sim, há o medo de sair, de que o agressor exponha, conte a sua versão a família e amigo. Quer persiga. 

Portanto, é agarrar no telefone - que foi o que eu fiz - e ligar à APAV. (...) Ninguém vai dizer ‘não me diga que está nisto há 10 anos e só agora ligou’. Não!

A sociedade falha também com estas mulheres que precisam de ajuda para sair de relações?

É de facto muito importante que as vítimas que estão fechadas com os seus agressores saberem que a primeira coisa que podem e devem fazer é sair do silêncio. Essa é a mensagem que temos que passar e que é imprescindível. Porque um agressor quer é que a vítima fique no silêncio e faz a vítima sentir-se culpada. ‘Então, já constaste às tuas amigas, já andas a dizer à tua família que eu sou muito mau? Já lhes contaste o que tu fazes?’ - isto são tudo manipulações diárias que visam o silêncio da vítima e o seu isolamento. E para isso, a vítima precisa de saber que há muitas pessoas que a podem ajudar. Normalmente, família e amigos não conseguem. As vítimas devem dirigir-se a associações e polícia. A mim ajudaram-me a Corações com Coroa e a APAV. E foi num momento em que a minha vida estava tão de pantanas, porque a minha vida era um inferno dentro de casa e, quando o agressor saiu, passou a ser um inferno diferente. Passei a ser perseguida. Tinha medo de entrar em casa, tinha medi de sair. Não sabia se ele estava a 5 metros de distância ou a 5 mil quilómetros. Isto coloca-nos em desespero porque já não controlamos a nossa vida, já não somos os realizadores. 

Parece que está uma pessoa dentro da nossa cabeça a comandar as nossas ações. Se lá em casa alguém sentir isto, não está a ficar louca. É uma das vertentes destes agressores, que normalmente são muito manipuladores, ao ponto de nos confundir. Mas nós não estamos a ficar loucas, estamos até muito alerta. Portanto, é agarrar no telefone - que foi o que eu fiz - e ligar à APAV. São pessoas muito qualificadas que estão à nossa espera e garantidamente que não vão fazer uma coisa que é muito dolorosa e que é julgar. Ninguém vai dizer ‘não me diga que está nisto há 10 anos e só agora ligou’. Não! Vão simplesmente ajudar-nos e dar-nos as ferramentas e acompanhamento necessário. 

É esse o conselho que deixaria a quem vive uma situação de violência doméstica?

Sim. É muto importante sabermos que as associações estão lá. O agressor está em casa? Vá à mercearia e de caminho ligue à APAV. Eles vão ajudar. A polícia é outro meio de ajuda, embora diferente. Hoje a violência doméstica é um crime público, e na minha altura não era. Qualquer pessoa que veja ou saiba de algum tipo de violência doméstica tem o dever de denunciar à polícia. É preciso lembrar também que a violência doméstica não é só uma violência física. Não é só olho negro ou sinais de agressão fisica. A violência doméstica é, logo à partida, uma violência psicológica. E se a mim me tiram a liberdade de ser quem eu sou, independentemente do que seja, é logo violência. É violência verbal, psicológica, sexual, física. Eu não tenho de ter uma relação sexual com a pessoa com quem estou só porque estou com aquela pessoa. Só porque a pessoa quer, só porque a pessoa vai ficar chateada se não acontecer. Só tenho se eu quiser e o não é não. 

O livro é um discorrer de muitas realidades que são as que pertencem a uma sociedade patriarcal, uma sociedade onde a mulher, por nascer mulher, é, à partida, histérica, descompensada, desviada, indecente.

O livro aborda todos esses níveis de violência, até a sexual. Foi consciente?

Sim. Foi consciente e é muito alegórico. É a história de alguém que tem muita liberdade, que a ganhou ao longo da sua vida e que a foi perdendo. Ela passa por tantas privações ao longo da vida. O livro é um discorrer de muitas realidades que são as que pertencem a uma sociedade patriarcal, uma sociedade onde a mulher, por nascer mulher, é, à partida, histérica, descompensada, desviada, indecente. E nós ainda vivemos nesta sociedade. E é assustador. 

No livro, finalmente, quando ela consegue olhar-se ao espelho, ela transforma-se. E é esse ato de libertação.

Que feedback tem tido do livro? Recebe mensagens de muitas mulheres?

O livro saiu há pouco mais de um mês e as mulheres que me têm mandado mensagens, principalmente mensagens, entendem essa mensagem libertadora. E tenho pensado que tenho conseguido o meu objetivo. É um livro duro e cru que chama as coisas pelos nomes. Não é uma fábula, não é um filme da Disney, mas ela encontra o amor.

Quero que este livro seja um balão de oxigénio e tenho sentido isso, das mensagens que recebo. E queria só deixar esta mensagem, de que há muita força dentro de nós, e que pedir ajuda é sinoniomo de força e nao de fraqueza. 

Leia Também: PSP de Lisboa deteve 14 homens por violência doméstica em dois meses

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