'Construção' de António Pires é uma dança que forma uma paisagem

'Construção', de António Pires, a partir de Gertrude Stein, é um espetáculo que explora a sonoridade das palavras e a sua dimensão coreográfica, funcionando como uma "paisagem" em palco, que se estreia quarta-feira, no Teatro do Bairro, em Lisboa.

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Lusa
21/01/2025 14:11 ‧ há 11 horas por Lusa

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'Construção' sobre 'Três Dramas Históricos', de Gertrude Stein, com tradução e adaptação de Luísa Costa Gomes, é a mais recente revisitação do trabalho da escritora norte-americana pelo encenador António Pires, uma relação duradoura, iniciada em 1997, que permitiu ao dramaturgo transcender a simples encenação e explorar a dimensão coreográfica no seu teatro.

 

É o que se passa neste espetáculo, com seis palhaços que ocupam o palco e vão desenvolvendo uma dança, coreografada e coordenada, sustentada por um texto composto por segmentos de frases que, por vezes, parecem não fazer sentido.

Gertrude Stein "dava-se muito com o Picasso, com essa gente toda, e, portanto, isto é um texto quase cubista", afirmou António Pires à Lusa, explicando que há um lado do seu trabalho que é justamente o de não saber, de tentar descobrir e fazer coisas completamente novas, dando origem a "coisas maravilhosas", como as obras de Picasso, que "têm uma técnica toda por trás, mas depois é um lançar-se dentro do desconhecido".

'Três dramas históricos' é uma trilogia escrita por Gertrude Stein em 1930 e publicada no livro 'Last Operas and Plays', que "fala muito do presente contínuo, "uma lógica de pensamento quase das crianças, de estarem sempre encantadas, estarem sempre perante coisas novas, elas estão sempre no presente".

Foi essa ideia que deu origem às personagens dos palhaços -- interpretadas por Cassiano Carneiro, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Jaime Baeta e Rita Durão - que se movimentam neste texto, em que "as coisas não têm muito passado nem muito futuro", estão ali, "estão no presente".

"Têm um pensamento fragmentado. É por isso que eles estão sempre na novidade, é por isso que eles conseguem repetir um movimento, por exemplo, que é sempre novo. E ela escreve assim, ou seja, cada frase aqui, não tem para a frente, não tem para trás, não tem consequência. E as palavras vão fazer... São segmentos. E isso dá ao espetador a possibilidade de criar, cada um, o espetáculo", acrescentou o encenador.

António Pires dá como exemplo as várias possibilidades que os espectadores têm de imaginar um edifício ou o campo, quando se fala em edifício ou campo, sem os reproduzir em cena: "É impossível duas pessoas pensarem no mesmo edifício. Quando eles dizem o campo e estabelecem um espaço ali, o campo é diferente para toda a gente que está na sala. Portanto, isto que acontece é que nós estamos aqui, vamos vendo o espetáculo e vamos tentando imaginar, quando nos perdemos, quando não tentamos perceber, porque isto não é bem para perceber".

Para António Pires, é "quase uma coreografia" inventada, a partir das pistas que o texto vai dando, uma "espécie de gramática de movimentos e de olhares e de sentimentos" que foi criando ao longo dos anos ao fazer estes espetáculos.

"A Gertrude Stein dizia que os textos dela deviam funcionar, depois quando postos em cena, como uma paisagem. Ou seja, nós vamos olhar para o pôr-do-sol, gostamos do pôr-do-sol e não percebemos porquê. E ela gostava que os espetáculos funcionassem assim, portanto é isso que nós tentamos fazer aqui, uma paisagem", afirmou.

Aqui, a tradução joga um papel importante e a escolha de Luísa Costa Gomes para o fazer é fundamental, não só porque é uma escritora que tem trabalhado teatro, mas também porque trabalhou na totalidade dos projetos da companhia sobre Stein e abdicou das rimas sonoras presentes na versão original, conferindo-lhe uma nova camada interpretativa.

"O que ela escreve... há um corpo sonoro das próprias palavras que também faz parte do espetáculo. A cadência das palavras é muito musical, o próprio texto, e a Luísa aqui reinventa isso em português", afirmou o encenador, destacando a importância do trabalho de Luísa Costa Gomes, que não faz uma "tradução pura e dura", traduz, mas sempre com "um lado de autoria, de jogo de palavras".

A escritora portuguesa admite isto mesmo, quando afirma que "traduzir a Stein é sempre um jogo, é sempre um enigma, do ponto de vista da tradução" e que aquilo que faz "são versões daquilo que ela escreve".

"No entanto, eu acho, e cada vez mais, que a escrita da Gertrude Stein é cada vez mais atual, para mim, cada vez mais interessante e inovadora, obviamente, mas cada vez mais adequada a uma nova narrativa contemporânea", considerou, em declarações à Lusa.

A justificação vem com o título desta peça que se vai estrear -- "Três Dramas Históricos" -, que é uma forma humorística de descrever uma narrativa que é "completamente diferente, ou mesmo oposta, àquilo que normalmente se chama histórico".

Uma das características deste estilo é a ausência de destaque das tradicionais figuras históricas, e em que as personagens são anónimas, pessoas no seu presente.

"No fundo, aquilo que ela faz é uma descrição cubista, diria, uma descrição em que não há hierarquia, nem causa e efeito, são como se fossem instantâneos de pequenos fragmentos em que acontece um pequeno diálogo, mas, no entanto, nós percebemos o que é que se está a passar, em geral, tudo se passa no presente".

O mesmo se passa com o tratamento do espaço, que, outra vez, é "desconstrutivista e, sobretudo, cubista", e em que "aquilo que a Stein realmente pretende é - e por isso os textos dela são extremamente teatrais - tratar o espaço de uma forma quase democrática, ou seja, em que todos são iguais, todas as histórias têm importância e não há reis e vilões, há, de facto, uma infinita sucessão destes instantâneos sobre indivíduos em diálogo".

Trata-se, pois, de uma narrativa sem hierarquia, sem uma lógica que aponte onde a história começa, sem uma intriga e um desenlace, em vez disso, há uma "linearidade" e "aquilo que a Stein procura fazer é que essa narrativa seja infinita".

A imagem que ocorre à escritora para descrever este estilo narrativo é a de uma discoteca sob o efeito da luz estroboscópica, que dá a sensação de movimento em câmara lenta: "essa luz, que apaga e acende, cria uma espécie de descontinuidade no espaço, e à medida que nós vamos procurando a narrativa, ela aparece, digamos, com pequenos 'gaps', com pequenas ausências".

A peça "Construção" funcionará como um díptico, que complementa o trabalho desenvolvido em 2008 com "Say It With Flowers, e encerra o ciclo de peças sobre a obra de Stein, que, de certa forma, é uma marca do trabalho de António Pires e da companhia de Teatro do Bairro.

A norte-americana Gertrude Stein, que assinalou 150 anos de nascimento em 2024, deixou uma vasta obra no campo teatral, compondo inúmeras peças de cariz experimental. Todavia, a maioria dessas obras permanece relegada a contextos académicos ou a eventos específicos dedicados à autora, raramente ao alcance da generalidade do público.

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