"O que Lisboa me dá é tanto que eu quero merecer esta dádiva"

Angolano e lisboeta, é assim que Kalaf Epalanga se define. Nesta entrevista ao Vozes ao Minuto, realça a sua relação especial com a capital portuguesa e fala sobre as mudanças em curso em Angola.

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© Blas Manuel/Notícias ao Minuto

Fábio Nunes
11/12/2017 12:00 ‧ 11/12/2017 por Fábio Nunes

Cultura

Kalaf Epalanga

Lisboa desempenhou um papel fundamental no percurso de vida de Kalaf Epalanga e tem um lugar especial no seu coração. Desde 1995, ano em que chegou a Portugal vindo de Angola, a cidade mudou muito e Kalaf tem acompanhado essas mudanças com interesse.

Ao longo da entrevista ao Notícias ao Minuto, o poeta-cantor explica por que razão afirma que Lisboa “é a mais africana das cidades europeias”, bem como a importância que as viagens têm na sua vida.

Kalaf Epalanga fala ainda sobre o atual momento de Angola e sobre as mudanças que João Lourenço está a levar a cabo.

Devia ter vindo de Angola para Lisboa para tirar gestão. A cidade foi determinante para a sua autodescoberta?

Sim, por uma questão muito específica. Eu pude ter contacto com muitas pessoas que exercitam e trabalham na mesma língua. O facto de estar aqui e conviver com guineenses que era algo que não acontecia em Angola, pelo menos de forma direta, é interessante. Até com angolanos de outros pontos do país. Eu conhecia luandenses, pessoas das regiões circundantes, mas não conhecia pessoas do sul. Eu cresci no seio de uma família de militantes e até de membros do MPLA e aqui convivia com pessoas ligadas à UNITA, às quais nunca tinha tido acesso. E isso é muito rico porque fui confrontado com outra opinião. E quando estamos preocupados com as questões da humanidade, do mundo, quando queremos trazer isso para a nossa escrita, estar numa cidade que proporciona isso é excelente.

Em Lisboa é muito comum encontrar brancos portugueses que dizem que são angolanos ou moçambicanos. Isso é raro. E não acontece em Londres ou ParisCostuma dizer que Lisboa é a mais africana das cidades europeias. Em Lisboa parece haver espaço para beber de outras culturas, parece haver espaço para que outras sonoridades se desenvolvam, para que outras comunidades floresçam. Porque é que isso acontece com mais facilidade em Lisboa do que em Paris, por exemplo?

A relação é diferente. Se estiveres em Paris e andares apenas pela rua Saint-Honoré ou pelo Louvre, nesses sítios não vais encontrar uma presença tão massiva. Mas se forem para os bairros onde essa presença é massiva, encontras várias comunidades. Congoleses, senegaleses, é impressionante. É tão rica como Lisboa, de facto. Mas obviamente sendo eu lisboeta, puxo sempre a brasa à minha sardinha e digo que Lisboa é a mais africana das cidades europeias. Se calhar um parisiense vai discordar.

Acho que também tem a ver com a relação que essas comunidades têm com os países deles. Os nigerianos em Londres têm uma relação com o país deles que é diferente da relação que os angolanos em Lisboa têm com Angola. Mas o que justifica a minha afirmação é quando, como aconteceu no outro dia, entro na redação do Diário de Notícias e sou recebido por quatro africanos, todos brancos. Quando digo que é a cidade mais africana das cidades europeias isso não tem a ver só com a questão brancos-negros. Têm muito a ver com a forma como as pessoas desta cidade se sentem. Eu não encontro um francês branco que diga que é senegalês. Mas em Lisboa é muito comum encontrar brancos portugueses que dizem que são angolanos ou moçambicanos. Isso é raro. E não acontece em Londres ou Paris.

Notícias ao Minuto"Comunidade negra da cidade estar a ganhar mais voz"© Blas Manuel/ Notícias ao Minuto

Nasceu e cresceu em Benguela. Vive entre Lisboa e Berlim. Mas o que é que Lisboa tem de tão especial para si?

Para um escritor chegar aqui e falar com alguém que me diz ‘Olha, eu tenho em minha casa os diários do primeiro fundador do MPLA’. Tu encontras isso em Lisboa. Esta cidade proporciona isto, a possibilidade de resgatar a minha própria história. Estou mais próximo do pensamento das pessoas que inventaram a ideologia de Angola. Aqui encontro vestígios dessa história e isso torna Lisboa um lugar especial para mim.

No próximo ano, faço 40 anos, posso já estar encostado à box. Mas o Marfox tem de ser acarinhado, abracem-no! Ele vai ser os próximos anos da música urbana no nosso paísChegou em Lisboa em 1995. Como acompanhou as mudanças da cidade desde que chegou cá? O que destaca mais?

O que eu acho interessante é o facto de a comunidade negra da cidade estar a ganhar mais voz. Viver nas periferias não é fácil. Viver na herança do Programa Especial de Realojamento não é fácil, mas estamos agora a usufruir do resultado desses programas, que não foram pacíficos de todo. O PER também deu lucro a muitas pessoas. A miséria é lucrativa. Foi um pau de dois bicos, porque tínhamos de tirar as pessoas daquela situação mas a que custo? A questão da mobilidade nas periferias é importante. Quando um indivíduo para ir trabalhar tem de apanhar três transportes é complicado. O tempo que essa pessoa vai passar nos transportes é tempo que não vai passar com a sua família. Há muitos jovens que vivem naqueles bairros e que não têm um acompanhamento tão grande dos pais. Essas pessoas partem em desvantagem. Os números ainda não são assim tão gritantes mas começa-se a ver pessoas daqueles lugares que se formaram e que têm uma voz, que têm um emprego que já não passa pela restauração, pela limpeza, pelas obras. Hoje são 20, amanhã são 30.

Desde 1995 são coisas que se começaram a materializar, que se notam. Existe uma outra forma de ver Lisboa que não tem nada a ver com o que se passa no eixo Bairro Alto-Baixa. Eu tenho amigos que quando vêm para o centro de Lisboa têm de, literalmente, viajar. Têm a necessidade de ter tudo o que precisam naquela região dae Amadora-Sintra. Ou Benfica-Sintra. Isso vai acabando também com o preconceito de que para lá de Benfica não há vida.

Há uns meses fui convidado para estar na Feira do Livro da Amadora com o Ricardo Araújo Pereira entre outros e não sabes o orgulho que senti por estar num evento daqueles ali. É preciso descentralizar, não só em termos de país mas em termos de cidade também. Há uma população tão grande a viver na periferia de Lisboa. Estou muito curioso, por exemplo, com Almada. Para ver o que a Inês de Medeiros vai fazer. É importante ter pessoas com capacidade na periferia a dialogarem com os arquitetos da capital porque fazemos todos parte desta grande Lisboa. A arte deve ser acessível a todas as pessoas.

Eu também digo sempre que sou ‘escritor angolano e lisboeta’. Fiz questão de tratar sempre Lisboa como uma nação porque realmente o que Lisboa me dá é tanto que eu quero merecer esta dádivaDá-me ideia que nos últimos anos temos vindo a desenvolver mais a cena artística em Portugal.

Tem vindo a crescer. Estou muito curioso para ver esta geração, a geração do DJ Marfox e aquilo que eles desenvolveram no subúrbio, no bairro da Quinta da Vitória. Eles estão a viajar pelo mundo. Há pouco tempo saiu um artigo sobre eles na Fader. Não imaginas a alegria que me dá ver esta geração ser bem sucedida. É a prova de que é possível! Que naqueles bairros é possível criar valores. E pergunto agora: quantos estúdios de música existem naqueles bairros, deixando de lado os quartos destas pessoas? O presidente da Câmara ou o presidente da junta de freguesia estão a olhar para o facto de um jovem daquele bairro estar a levar a bandeira da cultura da cidade de Lisboa, do país, para as páginas da Fader, que é só a Bíblia dos hipsters do mundo inteiro? Não sei se está a ser feito algo nesse sentido, mas quero saber, porque estes jovens estão a criar algo importante.

No próximo ano, faço 40 anos, posso já estar encostado à box. Mas o Marfox tem de ser acarinhado, abracem-no! Ele vai ser os próximos anos da música urbana no nosso país. Dêem-lhe ainda mais condições para que outras pessoas que o veem como um exemplo possam seguir o seu caminho.

É esta a diferença que sinto desde que cheguei cá em 1995. Nessa altura era o rap, com o General D, com o Boss AC e Microlandia. Esses eram os arquitetos da cultura daquelas zonas da periferia. Hoje temos pessoas que são fruto dessa geração mais antiga. É isso que está a acontecer com esta geração da Príncipe com o Marfox, o King Kong e o Dotorado Pro. Acho isso impressionante. É inspirador. É por isso que escrevo sobre estes temas. Quando escrevo sobre kuduro provavelmente o mundo literário não vai ter interesse, mas garanto-te que esse é o elo de ligação com um norueguês que eu não teria de outra forma.

Pode-se dizer que o kuduro já faz parte da cultura portuguesa ou pelo menos da lisboeta?

Eu não tenho dúvida nenhuma disso. Se perguntares ao Marfox como é que ele se sente, ele vai dizer lisboeta. Embora os pais tenham vindo de São Tomé. Mas o que ele está a fazer não é cultura são-tomense. Eu também digo sempre que sou ‘escritor angolano e lisboeta’. Fiz questão de tratar sempre Lisboa como uma nação porque realmente o que Lisboa me dá é tanto que eu quero merecer esta dádiva.

Eu não tenho orgulho nenhum que, quando se pensa em Angola, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas seja ‘cambada de corruptos’Adora viajar. Conhecer e estar em contacto com diferentes culturas é uma das suas principais motivações? Ajuda-o a inspirar-se para escrever. 

É um privilégio. Viajar para mim, que sempre tive questões com a mobilidade com os passaportes, vistos, é o maior dos privilégios. Para mim isso abre uma oportunidade para as atividades que escolhi, a literatura, e tudo o resto que ainda não revelei mas que gosto de explorar, e também o facto de esse ato de poder viajar poder inspirar outras pessoas a saírem da sua zona de conforto, independentemente de terem a sua situação regularizada ou não.

As minhas estórias com vistos e embaixadas não têm fim. Podia dedicar só este livro a isso. Mas isso não me demovia, aliás motivava-me ainda mais. Eu saía de manhã com o meu dossier de apresentação para requerer um visto, que não lembra a ninguém. Ia a todas as entrevistas, com cartas de pessoas que explicavam a importância do meu trabalho. Tinha de ir e nunca desisti. E tive a sorte de partilhar com o grupo que me é mais próximo que são os meus colegas de Buraka o mesmo desejo, a mesma vontade, a mesma necessidade de não nos limitarmos só porque somos de uma cidade periférica como Lisboa, e mostrar que temos argumentos para estar em Nova Iorque de igual para igual com outras bandas. Mostrar a pessoas de outros países que o mundo é rico e que todos temos oportunidade de influenciar-nos uns aos outros e de re-influenciar. Isso para mim é o ato de viajar. Viajar é uma vontade que nasce dentro de nós.

Como tem acompanhado as políticas e as recentes mudanças que estão a ser implementadas por João Lourenço em Angola?

Com otimismo. Temos aqui realmente uma oportunidade para mudar a narrativa. Eu não tenho orgulho nenhum que, quando se pensa em Angola, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas seja ‘cambada de corruptos’. Não quero acreditar que o país é gerido por corruptos. Seria um desfavor muito grande que estamos a fazer para as gerações que vierem a seguir. Um miúdo de 18 anos que estiver a entrar na faculdade a primeira coisa que vai pensar é que quando for a vez dele vai fazer como quem está no poder faz. ‘Vou olhar para o meu bolso, vou olhar para os meus e que se lixe o resto’. Eu não quero acreditar nisso.

Desejo coragem ao presidente João Lourenço porque se a ideia dele for virar a página de facto, não vai ser fácil. Vai ser pressionado por todos os lados. Espero é que não seja uma troca de cadeiras e vira o disco e toca o mesmo. Mas se for para mudar, no que puder quero contribuir porque isto é inspirador. Temos de nos preocupar com as áreas que são deficitárias. A situação social, a justiça, a distribuição de rendimentos. São os nossos enormes calcanhares de Aquiles. Se ele pretende mudar isso, eu vou apoiar.

* Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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