Ao longo das últimas semanas, temos assistido a uma acesa discussão pública em torno de determinado tipo de contratos celebrados entre sociedades desportivas (Clubes), com especial incidência naqueles alegadamente celebrados entre o Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD (Benfica), o Clube Desportivo das Aves - Futebol SAD (CD Aves) e alguns jogadores de futebol, na sequência de uma investigação (notícia) merecedora de manchete no jornal Público, publicada no dia 6 de Junho.
Desde já sublinhando desconhecer a existência e, por consequência, o conteúdo dos referidos contratos, encontro-me limitado à análise dos factos noticiados, sendo de todo impossível pronunciar-me de forma assertiva sobre os casos em concreto. Não obstante, estranho (ou não) e lamento assistir a comentários reveladores de um invejável poder de adivinhação, o qual, não raramente, caminha lado a lado com uma gritante falta de formação jurídica.
Na verdade, à primeira vista e enquanto mero cidadão, consigo perfeitamente compreender a indignação que tal notícia possa gerar, partilhando da opinião quanto à necessidade de se reformular o futebol, a nível mundial, e no que toca a diversas matérias, incluindo algumas subjacentes à notícia. De resto, quem não concorda com a necessidade de tornar o futebol e a sua indústria mais transparente, melhor regulado e, claro está, muito melhor supervisionado, em prol da verdade desportiva?
Importa assim, sem sombra de dúvida, acautelar devidamente determinadas práticas e, se for caso disso, sancionar aquelas que impliquem, por exemplo, graves conflitos de interesse ou eventuais limitações à liberdade contractual do praticante desportivo. Matérias cinzentas que possam colocar em causa a verdade desportiva devem ser desencorajadas, ainda que não violem diretamente qualquer preceito legal. Digamos que mesmo que determinada conduta seja legal, não bastará sê-lo. Terá também que parecê-lo.
Ora, não obstante o meu alerta para a referida necessidade de mudança, julgo que sendo este um artigo de opinião, de natureza essencialmente jurídica, ser prioritário abordar os contornos legais de alguns factos noticiados, com a intenção, uma vez mais e sempre, de contribuir positivamente para uma discussão saudável e enriquecedora. Tal discussão, com respeito pela pluralidade de opiniões, pode e deve pautar-se pelo civismo e respeito, recusando-me como tal, a (des)classificar o “futebol” de uns e de outros, sejam eles Advogados ou Jornalistas, consoante a opinião que cada qual, legitimamente, tem.
Assim, tentando restringir-me a uma análise estritamente jurídica e, repito, atendendo a que desconheço sequer a existência, e bem assim, o conteúdo dos contratos mencionados na notícia, proponho-me abordar os factos desde um ponto de vista legal mais abstrato, em consonância até com a minha intervenção no Programa 360 da RTP 3, precisamente no passado dia 6 de junho.
Ora, de acordo com a notícia, terão o Benfica e o CD Aves, desde o regresso deste último à I Liga, transferido diversos jogadores de futebol para os Avenses e incluído nos respetivos contratos de transferência definitiva, cláusulas de recompra por valores bastante reduzidos, assim como a inclusão de cláusulas comummente denominadas de “anti-rivais”, cláusulas essas que alegadamente estabelecem o pagamento ao Benfica de valores elevados em caso de transferência, presume-se, para o Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD ou para o Futebol Clube do Porto – Futebol, SAD, ou então, simplesmente de valores superiores aos exigidos em caso de transferência para os demais clubes. A notícia alude ainda a promessas de contratos de trabalho desportivos celebrados entre o Benfica e os jogadores transferidos para o CD Aves, alegadamente vinculando-os a um retorno à casa-mãe na eventualidade do clube da Luz exercer a referida opção de recompra. Por último, faz-se referência a contas correntes entre os clubes, nomeadamente a dívidas resultantes de tais contratos de transferência, alegadamente ainda por saldar pelo CD Aves ao Benfica.
No que diz respeito às cláusulas de recompra, importa desde logo esclarecer que estas constituem, bem ou mal, uma prática generalizada em Portugal, assim como em muitos outros países (veja-se o exemplo do Real Madrid CF ou do FC Barcelona, aqui ao lado), e a que recorrem normalmente os clubes com maior poderio financeiro, com o intuito de readquirirem jogadores que entretanto confirmam o seu potencial, por um valor previamente acordado e, claro está, inferior a um desejável futuro valor de mercado. Nesse contexto, salvo melhor opinião, não me parece existir qualquer preceito legal contrariando tal tipo de acordos, nem tão pouco me parece, ainda que numa análise mais abrangente, que tal direito de recompra possa ser questionado em função do princípio da proibição da influência de terceiros enunciado no Artigo 18bis do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA (“Third-party influence on clubs”), transposto para o ordenamento nacional por aplicação do Artigo 34º do atual (época 2019/2020) Regulamento do Estatuto, da Categoria, da Inscrição e Transferência de Jogadores da Federação Portuguesa de Futebol, pura e simplesmente na medida em que as condições exatas de tal recompra foram livremente negociadas e previamente aceites, constando do contrato de transferência original, e não deixadas à mercê de um futuro e livre arbítrio do clube que recompra.
Quanto às denominadas “cláusulas anti-rivais”, estas encontram previsão no regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo (Lei n.º 54/2017), que estipula serem nulas as cláusulas inseridas em contrato de trabalho desportivo que condicionem ou limitem a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo de um vínculo contratual. Sucede que a notícia faz menção à inserção deste tipo de cláusulas não em contratos de trabalho desportivos, mas sim em contratos de transferência definitiva de jogadores, constituindo assim uma condição a respeitar, mas para o novo clube e não para o jogador em apreço. Com efeito, tal condição de natureza limitativa é estabelecida apenas na relação entre clubes, uma vez que os jogadores não fazem parte de tais acordos. Neste sentido, ainda que se defenda ser uma forma de contornar a referida previsão normativa, se analisarmos o assunto desde um ponto de vista estritamente jurídico, tal mecanismo não se encontra proibido na lei.
Aliás, caso o objetivo fosse unicamente o de (poder) impossibilitar uma futura contratação por parte de um clube rival, existem outras formas de se alcançar tal resultado, nomeadamente por intermédio de cláusulas consagrando direitos de preferência, algo que o próprio Benfica fez recentemente aquando do regresso do jogador Francisco Machado “Chiquinho” à Luz. Razão pela qual, julgo que o verdadeiro propósito das “cláusulas anti-rivais”, quando analisadas de forma isolada, será o de obter uma maior compensação financeira e simultaneamente onerar os clubes rivais.
É igualmente certo que tais cláusulas poderão dificultar ou mesmo inviabilizar a possibilidade de um jogador prosseguir a sua carreira desportiva ao serviço de outro clube que lhe ofereça condições desportivas e financeiras mais vantajosas, mas que não esteja disposto a pagar uma soma avultada pela sua transferência. Sucede que até a própria natureza do contrato de trabalho desportivo, sujeita às especificidades do Desporto, já por si limita bastante a liberdade contratual do jogador, comparativamente à de um trabalhador comum, não podendo ser transferido sem o acordo do clube ao qual se encontra contratualmente vinculado. Numa discussão igualmente mais abrangente, poder-se-iam também questionar as limitações implícitas às cláusulas de rescisão, cláusulas essas que concedem ao jogador o direito (algo aparentemente contraditório) a ser transferido para um outro clube mediante o simples pagamento de um valor astronómico previamente estipulado e que, per se, inviabiliza muitas transferências. Em boa verdade, não será igualmente gritante assistirmos recorrentemente à inserção de cláusulas penais, na ordem das várias dezenas de milhões de Euros, em meros contratos de formação desportiva, i.e. de jovens jogadores (menores de idade, na sua esmagadora maioria) que recebem ajudas de custo muito aquém do salário mínimo nacional?
Bem sei que se tratam de temas distintos, mas igualmente interessantes, pertinentes e merecedores da nossa atenção precisamente no âmbito da limitação da liberdade contratual, pois tal como previamente referido, não basta ser legal, torna-se exigível que também seja moralmente aceitável. E o facto de se tratar de uma prática comum, tão pouco afasta o seu desaconselhamento ou, inclusive, a sua censurabilidade.
Já no que respeita a promessas de contrato de trabalho desportivo com o propósito de acautelar ou “obrigar” jogadores a regressarem ao clube de origem na eventualidade das referidas cláusulas de recompra serem acionadas, tal mecanismo parece-me ser desconforme com a própria essência da relação laboral desportiva. Com efeito, o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo impõe que a promessa de contrato de trabalho desportivo apenas seja válida na eventualidade de ter natureza bilateral e contiver o início e o termo do contrato prometido. Se assim for, nada a opor numa perspetiva legal ou sequer moral. Contudo, no caso de tal promessa ter natureza unilateral, ou seja, sujeita apenas à vontade de uma das partes (no caso da noticia, a do Benfica), podendo apenas o clube acionar tal promessa, então, parece-me claro que tal cláusula é nula, não produzindo efeitos jurídicos. Nesse cenário hipotético e que resta comprovar, caso o Benfica exercesse a alegada cláusula de recompra e acionasse um eventual contrato promessa de natureza unilateral, o jogador em questão não seria obrigado a regressar à Luz, sem que tal posição implicasse alguma quebra contratual legalmente sancionável. Atendendo às limitações de espaço do presente artigo, isento-me de analisar esta questão do ponto de vista do Direito Internacional do Futebol, aproveitando ainda assim para ressalvar que a jurisprudência da Câmara de Resolução de Litígios da FIFA, assim como a do Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne, nem sempre caminham nesse sentido, existindo inúmeras decisões excecionando tal princípio, numa análise deveras casuística.
Por último, a notícia aborda ainda um alegado montante devido pelo CD Aves ao Benfica. Ora, é sabido que os Clubes que participam nas competições profissionais de futebol em Portugal, obedecem a um processo de licenciamento instruído pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, o qual, entre outros aspetos, afere se possuem dívidas e qual a sua natureza, constituindo a inexistência de algumas, nomeadamente de dívidas para com outros clubes, um requisito essencial para se completar tal processo com sucesso. Uma eventual falsa declaração de não dívida do CD Aves poderia assim acarretar graves consequências para a SAD, algo que seria perfeitamente evitado com uma simples celebração prévia e atempada de um qualquer plano de pagamentos com o Benfica. Em comunicado datado de 9 de Junho, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol anunciou a abertura de um processo de inquérito a este respeito, pelo que o assunto encontra-se, aparentemente, em aberto.
Enfim, em jeito de conclusão e porque este artigo já vai longo, ressalvo que independentemente do juízo moral que estes mecanismos, de um modo geral, possam merecer, ainda que fazendo fé apenas nas notícias veiculadas na comunicação social (e que se presume serem independentes e rigorosas), a sua análise jurídica tem o propósito essencial (embora não limitado) de aferir acerca da sua conformidade com a Lei. Mas isso não obsta a que possam e devam suscitar questões de outra natureza a seu respeito, sendo que para tal, existem outros profissionais, de igual independência e dignidade, quanto os Advogados.