O jantar servido a 30 de junho de 2018 foi de difícil digestão para todos os portugueses. Nesse dia, por volta das 21 horas (de Portugal Continental), a seleção nacional terminava a participação no Mundial'2018, após ser derrotada, por 1-2, diante do... Uruguai.
Pepe ainda nos devolveu a esperança, com o empate (1-1), ao minuto 55, mas dois golos de Cavani abriram a 'tumba' ao conjunto das quinas. Agora, quatro anos volvidos, a história volta a cruzar estas duas congéneres, desta feita, no Qatar.
O Desporto ao Minuto decidiu, então, partir à conversa com Sergio Gorzy, jornalista uruguaio, que está a presenciar o seu 12.º Campeoanto do Mundo, agora ao serviço de Canal 4, Sport 890 e Tenfield. Já leva 11 certames na bagagem, numa história que começou no Mundial de 1978, na Argentina. Das lágrimas de emoção, após ver a sua celeste chegar a uma meia-final, em 2010, até ter a terrível ideia de juntar o Mundial de 1990 a uma lua de mel , a vida deste profissional da comunicação, já sexagenário, é um livro de memórias e de conhecimento.
Das múltiplas viagens que já realizou e dos milhares de encontros que já presenciou, Sergio Gorzy estabelece várias comparações entre portugueses e uruguaios, não duvida que Ronaldo seria titular na seleção de Diego Alonso e defende que o nosso país é um dos favoritos a alcançar a glória no Qatar.
Portugal-Uruguai é o prato mais apetecível deste Grupo H. Como se está vendo este ‘partidazo’ em solo uruguaio?
O nome de Portugal gera sempre um enorme respeito. Mas, para o Uruguai nunca há jogos fáceis. Para nós, o Gana também não é um adversário fácil, basta ver o que sucedeu da última vez. Um encontro agoniante [quartos-de-final do Mundial’2010]. Agora, jogar também contra Portugal, que defrontámos no último Mundial, faz-nos olhar para este grupo como uma enorme montanha. Este tipo de encontros, diante da seleção portuguesa, são daqueles jogos que nós ganhamos cinco e eles outras cinco. E, talvez, alguns empates pelo meio. Todavia, quiçá, Portugal chegue melhor a este encontro.
O que o leva a dizer isso?
Portugal tem muitos jogadores que, neste momento, estão a brilhar ao mais alto nível. No Uruguai, muitas vezes, riem-se de eu prestar demasiada atenção aos valores de mercado de cada jogador. Mas, a verdade é que, se olharmos para esta variante, Portugal tem um valor de mercado muito acima do Uruguai. A seleção celeste tem grandes nomes, porém, vários deles já não têm valor económico, como são os casos de Cavani, Suárez ou Godín. E, nesta soma de quotizações, Portugal desequilibra muito a balança. Desde aqui, da América Sul, olha-se para a formação de Fernando Santos com muito respeito e cientes do enorme poderio que há do outro lado. Todavia, esta imagem, já temos de há muito. Aqui, todos conhecem e sabem o que representou Eusébio, Figo e Ronaldo nos seus tempos áureos. O futebol não começou há dois dias.
Coloca, então, Portugal naquele lote de países candidatos a ganhar o Mundial?
Não digo que seja o grande favorito, porque, aí, quase por consenso e algumas vezes por teimosia, teimamos a colocar sempre os mesmos na ‘pole position’. A verdade é que todos falam do Brasil, mas há 20 anos que não ganham o troféu. Todos falam da Argentina, e a albiceleste ganhou o último Mundial em 1986. A mim, também me entusiasma Inglaterra, mas, na fase final destes torneios, costuma desiludir. A Croácia chegou à final do último Mundial e provou que, afinal, é possível um não favorito chegar lá. Acredito que Portugal pode chegar bem longe neste Mundial. Oxalá, Uruguai e Portugal passem esta fase de grupos…
A verdade é que Portugal parece um país pequeno ao lado dos seus vizinhos europeus, mas, ao pé, de nós tem o triplo da populaçãoMas esse não seria o cenário normal?
[Risos] Já vi várias vezes a normalidade acabar derrotada em Mundiais. Em 2014, todos pensavam que ia passar Inglaterra e Itália. Surpresa de todos, eles ficaram pelo caminho e quem passou aos ‘oitavos’ foi Uruguai e Costa Rica. Foi algo de loucos o que sucedeu. Acredito na lógica, mas, às vezes, a irracionalidade impera.
E olhando para o campo dos selecionadores. Quem tem melhor treinador? Uruguai ou Portugal?
Não conheço a realidade interna de Portugal, nesse sentido. Mas posso dizer-te que, do lado uruguaio, Diego Alonso é um treinador em observação. É preciso relembrar que ele chegou há pouco tempo, depois de um longo reinado de Óscar Tabárez. Alonso ganhou os últimos quatro encontros, numa qualificação que se tinha posto difícil, pese embora tenha ganho a equipas de qualidade inferior, por isso, isto é uma prova de fogo para o nosso selecionador. Não posso dar uma grande nota a Alonso, e a que tem pode perder rapidamente. Mas, direi que, nestas fases finais, os jogadores têm quase 85% das decisões nas mãos, apenas o remanescente está a cargo do selecionador ou outro factor externo que possa existir.
Para si, neste momento, quais são os três maiores ativos do Uruguai?
De Uruguai, claramente, Fede Valverde, Rodrigo Betancur e Darwin Núnez.
Ainda vê Cristiano Ronaldo como um dos grandes ativos da seleção lusa?
Sem sombra de dúvida, bem acima do que valem Suárez e Cavani para o Uruguai. E explico-te o porquê. É verdade que Ronaldo é mais velho, mas pode dar muito mais do que estes dois, devido aos níveis físicos que apresenta. Níveis bastante altos e que ainda permitem ao luso apresentar bons índices de produtividade. O mesmo se passa com Messi.
Acredita, então, que Ronaldo seria titular na seleção do Uruguai?
Sim, sim, não tenho qualquer dúvida, nem a mais pequena dúvida. Quiçá, se te perguntasse se Valverde podia ser titular de Portugal a coisa já se punha mais complicada [risos]. Portugal tem uma constelação de estrelas. Pode cair uma e aparece logo outra. A verdade é que Portugal parece um país pequeno ao lado dos seus vizinhos europeus, mas, ao pé de nós, tem o triplo da população.
Há dois jogadores da lista de convocados de Diego Alonso que moram aqui em Portugal: Coates e Ugarte, ambos no Sporting. O que dão estes dois elementos à seleção do Uruguai?
Claramente, Coates, para mim, é um indiscutível titular no centro da defesa, ao lado de José María Giménez. E há muito tempo que devia ser, pese embora Coates tenha herdado um testemunho pesado, que passa por substituir a Diego Godín. Porém, esta pode ser a oportunidade de Coates. Falamos de um jogador único. Com uma altura e um cabedal impróprios para o típico uruguaio. Falamos também de um dos atletas com mais experiência internacional da celeste. Já o Ugarte, é um futebolista jovem, com muitíssima qualidade. Além da confiança que traz à equipa, aqui, no Uruguai, já muitos defendem a sua titularidade.
Ronaldo seria titular no Uruguai? Não tenho qualquer dúvidaO outro jogador que passou recentemente por Portugal foi Darwin Núñez. Acredita que ele pode vir a ser a grande estrela do país?
Eu tenho muita fé no Darwin. E o Uruguai costuma ser um país de fé, e mantém sempre a esperança mesmo naqueles avançados que falham golos incríveis à boca da baliza. Isso sucedeu com Darwin. Quando chegou a Portugal, esteve meio intermitente, acabando depois por estabilizar o seu jogo. Chegou ao Liverpool, depois de os reds pagarem por ele quase 100 milhões de euros, por isso... uma qualidade incrível tem de ter. Alguns compatriotas riram-se do valor pago por Darwin, mas, hoje, mesmo este avançado já calou a boca a quase todos os críticos. E eu tenho muita esperança nesta seleção, em geral. Basta recordar que as três grandes estrelas – Betancur, Darwin e Valverde – são três estreantes em Mundiais. Onze contra onze podemos ganhar a Portugal, agora se olharmos para a lista de convocados, no seu todo, aí a seleção de Fernando Santos leva clara vantagem.
Não teme um ‘acordo de cavalheiros’ entre Portugal e Uruguai? Assinaria o empate?
Não acredito nisso. Todos querem ser primeiro, afinal, ninguém se quer cruzar com Brasil nos ‘oitavos’. Portugal é favorito contra o Uruguai, agora, Diego Alonso não lhe vai vender a tarefa fácil. Falamos de um treinador que apela muito à fortaleza anímica e à garra tradicional do futebolista uruguaio. Temos um espírito de luta fora do normal. Importa relembrar que estamos entre a Argentina e o Brasil, e, se fizermos uma suma de toda a história, foram várias as vezes em que tivemos de despertar para dar luta a esses dois monstros. Qualidade sempre sobrou a Argentina e Brasil, como também sobra a Portugal, por isso, o Uruguai tem de puxar para fora todo esse sacrifício que nos caracteriza.
Como definiria esta seleção do Uruguai?
É uma seleção que tem uma nova geração, que ainda não está pronta a 100%, e, simultaneamente, outra geração que está demasiado saturada para jogar os 90 minutos de todos os encontros, olhando para os exemplos de Suárez, Cavani, Muslera, Cáceres ou Godín. Cinco exemplos são demasiados. Portanto, por um lado, temos falta de experiência, e, por outro, demasiado peso nas pernas. Em 2026, seremos um dos candidatos a ganhar o Mundial, já neste Campeonato do Mundo, estaremos apenas para lutar.
Agora, gostava que puxasse da ‘bola de cristal’ e me dissesse o possível onze do Uruguai contra Portugal?
Na baliza Sergio Rochet, depois, na defesa, Guillermo Varela, José María Giménez, Sebastián Coates e Mathías Olivera. O meio-campo com Valverde, Betancur e Arrascaeta, já na frente, Suárez e Darwin Núñez. Não te disse ainda quem jogaria na posição 6, uma vez que, aí, estamos a falar de uma luta acesa para três ‘galos’: Lucas Torreira, Matías Vecino e Ugarte. Os três dão-me as mesmas garantias.
Acredita que este Uruguai-Portugal de 2022 será muito diferente do que se passou há quatro anos no Mundial da Rússia?
Completamente diferente. É uma outra história e acredito que estas equipas, semelhantes, mas com Portugal por cima, decidem-se nos detalhes. Basta olhar para a Copa América e a Argentina de Scaloni. Contra o Uruguai, eles fizeram um golo aos 20 minutos e o jogo ‘acabou’. Nestas grandes competições, um golo pode acabar com um encontro. O tempo de duração desta prova acaba muito rapidamente. E penso que o Portugal-Uruguai pode ficar decidido nos primeiros 20 minutos.
Num país onde não reina a liberdade tenho de andar com muito cuidado, porque um erro ou um desvio à norma pode levar-me para a prisão, ou sabe-se lá… até piorFalamos de dois países em que se veem mais semelhanças do que diferenças…
Completamente de acordo. Costumo dizer que Portugal e os Países Baixos são o espelho do Uruguai na Europa. Se pudéssemos ficar com os jogadores nacionais dentro das nossas fronteiras, e se fossemos ricos para trazer um ou outro jogador, então, todas as Champions e Libertadores rumariam para estes três países. Basta olhar para os anos em que Benfica e FC Porto ganhavam troféus europeus [no século XX] era a mesma altura que Peñarol e Nacional estavam na ribalta, aqui, na América do Sul. Às vezes, falam do Uruguai como se fosse uma ilha, mas a verdade é que nós deixámos de ganhar por causa do dinheiro. Imaginem o que Benfica, FC Porto, Ajax ou PSV, clubes históricos na Europa, fariam na Liga dos Campeões, se tivessem mais cifrões na conta bancária. Se Valverde nunca tivesse saído do Peñarol ou Suárez do Nacional, muito provavelmente, alguma Libertadores ficasse por cá.
Este é o 12.º Mundial que vai entrar para o seu arquivo de histórias. Já se considera parte da mobília deste evento?
[Risos] Fazendo referência a um jornalista uruguaio que conheci, agora já com mais de 80 anos, e que cada vez que falava da sua carreira dizia: “É o triste privilégio dos anos”. Afinal, é sempre melhor estar no primeiro Mundial do que no 12.º. Significaria que era mais jovem e havia muito mais para viver. O importante, agora, é pensar na dúzia de Mundiais em que estive e nas memórias que tive o privilégio de viver. Poder cruzar-me com vários ídolos do futebol de outros tempos é emocionante. Figuras que vi dentro dos relvados e que, agora, muitos deles, são companheiros de profissão. Agora, também te digo.. a força nas pernas também já não é a mesma… [risos].
Felizmente, agora, no Qatar, já não tem de ser preocupar com a distância entre os estádios…
[Risos] Felizmente. Nos últimos Mundiais, foi uma tortura. Basta recordar o que sucedeu na África do Sul, no Brasil ou na Rússia. Autênticos continentes, em que estamos sempre de mala às costas, de jogo para jogo. Uma vez, tivemos uma Copa América nos Estados Unidos e nunca mais chegávamos…
Uma história que não esqueça e que tenha vivido durante um Mundial…
Vivi várias. Para mim, a emoção de ter regressado às meias-finais de um Mundial [de 2010, na África do Sul] foi especial. Sem o Uruguai em prova, a final do Brasil-Itália de 1982, em que Paolo Rossi calou a canarinha com três golos e uma exibição magistral.
E a nível pessoal?
Eu casei em maio de 1990 e fui de lua-mel com a minha antiga esposa ao Campeonato do Mundo. Foi um verdadeiro pesadelo e não desejo isso a ninguém, misturar mulheres com assuntos profissionais [risos].
Li também que ía ser distinguido pela FIFA pelos 12 Mundiais em que já marcou presença...
Sim, mas não apenas eu. A FIFA vai distinguir todos aqueles que já têm, pelo menos, oito Mundiais. Do Uruguai, somos quatro jornalistas… na verdade, um deles trabalha na Argentina.
O seu primeiro Mundial foi em 1978, altura em que a Argentina, sede do certame, estava mergulhada numa ditadura. Curiosamente, também o Qatar não prima por ser nem uma democracia, nem um regime onde se cumpram alguns dos mais elementos direitos humanos. Sente a diferença entre estar a trabalhar num país democrático ou ditatorial?
Num país democrático, sinto que posso condenar e filmar cada injustiça que vejo. Posso equivocar-me, sem me preocupar com as consequências dos meus erros. Num país onde não reina a liberdade, tenho de andar com muito cuidado, porque um erro ou um desvio à norma pode levar-me para a prisão, ou sabe-se lá… até pior. Cada Mundial tem uma história. Sempre a tentei escrever da melhor forma, mas sabendo de antemão que as fronteiras da minha liberdade mudam de Mundial para Mundial.
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