"O filme é o fechar de um ciclo. Não faço mais nada com o 'Dragon Ball'"

Foram muitos os trabalhos que fez no mundo artístico, mas sem dúvida que dar voz à personagem Vegeta em 'Dragon Ball' foi um dos maiores destaques da sua carreira. Após 25 anos neste projeto, João Loy despede-se agora da série que foi uma referência para várias gerações.

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Marina Gonçalves e Miguel Patinha Dias
25/03/2019 09:30 ‧ 25/03/2019 por Marina Gonçalves e Miguel Patinha Dias

Fama

João Loy

Descreve-se como uma pessoa muito ativa e tenta ser sempre o melhor naquilo que faz. João Loy sempre teve um gosto especial pelo mundo das artes e cedo decidiu que este seria o seu futuro. 

Deu vida ao guerreiro Vegeta, uma das principais personagens da série de animação japonesa  'Dragon Ball Z', um trabalho do qual se despediu agora após o lançamento do último filme que se estreou recentemente.

Hoje é o entrevistado do Vozes ao Minuto - cuja segunda parte pode ler aqui - falando abertamente sobre todo este percurso como Vegeta e as razões que o levaram a abandonar as dobragens. Além disso, abre o coração para confessar que irá dizer um adeus não definitivo à capital para regressar ao seu cantinho no Alentejo, um refúgio da vida agitada imposta pelos trabalhos na representação, dobragens e fado. 

Acho vergonhoso que os nomes dos atores apareçam no final dos créditos em jeito de ‘flash’. É o contrário do que acontece a nível mundialO que mais gostou no filme ‘Dragon Ball Super: Broly’?

Ao princípio até me assustei, achei aqueles 10 minutos iniciais um pouco moles porque eu tenho muita energia e sou acelerado Devo ser o único alentejano que é acelerado. Mas depois percebi que era um enquadramento sobre o que foi ‘Dragon Ball ao longo destes anos todos. Foi quase como ir buscar a história desde o início para mostrar como aparece o Broly. E depois fiquei muito contente porque acho que todos nos empenhámos imenso na dobragem e, ao contrário do que as pessoas podiam pensar, a dobragem está perfeita. Mesmo os novos atores que substituíram o Henrique [Feist] e o Ricardo [Spínola]. Senti que os fãs ao início estranharam mas… é como se diz, primeiro estranha-se e depois entranha-se.

Houve algum aspeto que o tenha deixado mais incomodado?

Sim, extremamente incomodado e chateado. Acho vergonhoso que os nomes dos atores apareçam no final dos créditos em jeito de ‘flash’. É exatamente o contrário do que acontece a nível mundial, quer seja animação ou não, onde os nomes dos atores aparecem em grande e no princípio. O que é um projeto de animação com dobragem se não tiver os atores? ‘Dragon Ball’ são os atores, as vozes. Não faz sentido absolutamente nenhum. Mas isso é o desrespeito que esta gentalha tem por nós.

Sente que este filme é o encerrar de um ciclo?

O filme é mesmo o fechar de um ciclo porque eu não faço mais nada com o ‘Dragon Ball’.

De todo?

A não ser que as coisas mudem a muitos níveis. A maneira como foi conduzido o ‘Dragon Ball Super’… aliás, assumo aqui que nem a série vou acabar. Faltam gravar vinte e poucos episódios mas eu nem os vou acabar. Acho que a falta de respeito pelos atores chega a uma altura em que nos salta a tampa. Não é por acaso que o Henrique [Feist] já desistiu, não acaba a série nem fez o filme. O Ricardo [Spínola] a mesma coisa. Eu também vou desandar porque acho uma falta de respeito.

Nós habituamo-nos muito mal com um senhor chamado António Semedo, quando começámos a gravar o ‘Dragon Ball’. O Tó Semedo, enquanto diretor de atores, teve a responsabilidade de saber tudo aquilo que se passa, quais são as características psicológicas das personagens, o que temos de fazer mais brincado ou menos brincado, mais sério ou menos sério, mais irritado menos irritado… o Tó Semedo tinha como responsabilidade fazer a adaptação.

Não sou obrigado a saber as características das personagens. Não sou obrigado a saber que, 25 anos depois, as personagens mudaram completamente. Portanto, chego para começar a fazer a série e pergunto o que se passa e de que modo faço a dobragem, dizem-me que é igual ao que aconteceu há 25 anos. E depois comecei a perceber que não é bem assim, que mudou tudo.

Fui percebendo até por alguns fãs que as coisas tinham mudado um bocadinho e é quando peço a um grande amigo meu – que é quem gere as minhas páginas, é um realizador de cinema, faz os meus videoclipes de fado e também tem a paixão do ‘Dragon Ball' – e que eu trago à minha custa para me dizer tudo sobre o comportamento das minhas personagens. Foi ele que me dirigiu sem ter de o fazer, e tudo às minhas custas porque ele mora em Castelo Branco e, portanto, eu é que tive de pagar o quarto para ele poder vir fazer a assessoria para eu não falhar. Não ganho para isso.

Ficámos calados por muito tempo, a deixar que nos usassem de uma maneira extremamente cruel

As questões que estão a surgir agora depois do filme começaram então com a série?

Começaram. Nós é que ficámos calados por muito tempo, a deixar que nos usassem de uma maneira extremamente cruel. Agora, a SIC resolveu não passar o resto da série, vá-se lá saber porquê. Acho que a SIC também falhou um bocadinho porque passou a série a horas impróprias. Acertámos uma verba com a SIC que concordámos que era justa para o trabalho que iamos ter e agora foi-nos sugerido mudar para outro canal por metade do preço. Era só o que me faltava.

Quer eu, quer os meus dois colegas que saíram, achamos que não seria justo para a SIC. Se exigimos que a SIC chegasse a um determinado valor, não me parece de todo honesto ir para outro canal a ganhar metade do valor. Nem era educado nem profissional da nossa parte.

Todas estas situações me deixaram incomodado. Um dos maiores prazeres que tenho é gravar o ‘Dragon Ball’. Todos os fãs sabem que me desloco a todo o lado para beber café, para me conhecerem pessoalmente, para dar autógrafos… Mesmo nas novelas ou no teatro, nunca meti o dinheiro à frente da qualidade do trabalho mas, quando sinto que o trabalho começa a não ter a qualidade que exijo e que o próprio trabalho exige, então a partir daí prefiro sair.

Sente que de alguma forma que o novo canal menosprezou os atores que durante estes anos todos deram voz a ‘Dragon Ball’?

Não sei se foi o novo canal, porque o novo canal parece-me que é o menos responsável aqui: sugeriu um orçamento à produtora ou ao estúdio onde estamos a gravar – que é com eles que nos entendemos em termos financeiros – e eles aceitaram sem nos consultarem. O estúdio aceitou o orçamento que o novo canal deu, por isso não tenho de os culpar. O estúdio é que não tem o direito de decidir por mim.

A voz do Vegeta é a minha voz natural porque eu já tinha emprestado cinco ou seis registos para outras personagens. Lixei-me porque agora não posso abrir a boca em lado nenhum [risos] Recuando um pouco ao início disto tudo. Lembra-se de como foi ao início, quando lhe fizeram o convite para ‘Dragon Ball’?

Não me lembro, muito sinceramente. Já estava a fazer outras séries no mesmo estúdio e depois surgiu a hipótese de se formar a equipa do ‘Dragon Ball’. Mas estava um pouco longe daquilo e mais tarde quando começam a gravar, o Tó Semedo percebe que vinham mais e mais personagens e que a série não acabava e que teriam necessidade de meter mais um ator, que é quando ele me faz o convite para eu começar a gravar mais algumas personagens de ‘Dragon Ball’. Mas o Vegeta ainda não aparecia aí, só aparece mais tarde. Daí ter acontecido a história de a voz do Vegeta ser a minha voz natural, porque eu já tinha emprestado cinco ou seis registos para outras personagens.

Quando aparece o Vegeta tínhamos de gravar rapidamente e eu pergunto, ‘Tó, o que é que faço a este? Que voz é que meto a este?’ e diz-me ele 'Faz mesmo a tua que este deve ser daqueles que entra pouco. Se calhar é daqueles que aparece em dois ou três episódios e depois vai desaparecer’. E olhem, lixei-me porque agora não posso abrir a boca em lado nenhum [risos]. Mas é a ideia que tenho do princípio. O Tó Semedo tinha uma coisa muito boa. Obrigava-nos a fazer castings para as coisas. Por muito que gostasse de mim e dos outros atores, se não servíssemos para aquilo que ele pretendia não havia amizades. E isso para mim é fundamental no trabalho.

Depois de todos estes anos e agora com a saída anunciada, tem recebido muitas mensagens emotivas dos fãs?

Fiz um direto no Facebook e fiz, em público, aquilo que normalmente não faço, que é mostrar o meu lado frágil. Isso e falar da minha vida privada. Foram no mínimo 400 mensagens num direito que fiz, onde os [meus seguidores] revelaram tudo aquilo que já sabia. Acabei por chorar baba e ranho, que é uma coisa que me incomoda, mostrar esse meu lado frágil. Mesmo nas minhas mensagens privadas eles começam a dizer a mesma coisa: que a minha despedida os fez chorar como crianças.

Em todo este trajeto que fiz em ‘Dragon Ball’ sempre pus os fãs em primeiro lugar. Vivo do público. Foi uma coisa que me aconteceu no final da ante-estreia do filme, quando o dono do estúdio me diz de uma forma quase acusatória que eu dava mais importância aos fãs que ao estúdio. E dou. O estúdio para mim não tem importância nenhuma. É dos fãs que eu vivo, foram os fãs que me projetaram há 25 anos, foram os fãs que me deram uma importância vital. Ganhei muito dinheiro com outros trabalhos à conta deles.

Falou abertamente nesse direto do facto de receber por vezes comentários desagradáveis… Como é que lida com esse tipo de abordagem?

Lido muitíssimo bem. Lido mal é com a má educação. Não posso admitir que uma 'criança' me diga: ‘os atores não têm vergonha de fazer uma dobragem péssima… isto não é para brincar...’.. Quando lhe perguntei que idade tinha, ele disse que tinha 18 anos e eu tenho mais anos de carreira do que ele tem de vida. Perguntei-lhe quantas séries já tinha dobrado e ele disse nenhuma. Então para que é que me estava a dar indicações? Aceito as críticas, só não aceito as agressivas ou ordinárias. Aí respondo da mesma maneira. 

Por outro lado, o ‘Dragon Ball’ tem um universo de 50, 60 mil fãs. Não são aqueles 50 ou 100 que me incomodam, quando nós sabemos de antemão que a maior parte deles está nas nossas costas. Eles esquecem-se de que nos estúdios mostram-nos os e-mails deles com os nomes a dizer que gostavam de fazer a minha personagem ou a do Henrique Feist e que até podem ir lá de borla.

Existe esse tipo de abordagem?

Ui! Não imaginam. E depois chegamos à conclusão que são estes 50 ou 60 que estão a fazer estes comentários de uma forma extremamente agressiva porque depois é muito fácil juntarmos os nomes. Quando eles muitas vezes não sabem que o ator é um bocado como a plasticina: tem de se moldar. Tem se ter as indicações do diretor de atores, não pode ir contra a entidade patronal. Se a entidade patronal disser que quer o ‘Dragon Ball’ a fazer o pino, nós temos de fazer o pino ou então saímos. Há alguém que manda, que exige. E muitos dos fãs acham que chegamos ali e podemos fazer o que quisermos. Esses não me interessam nada.

Não quero que me vejam como o bonzinho, só quero que percebam que dou tudo quando sinto honestidade nas coisas. Caso contrário não dou

Foi esse tipo de situações que levou à saída do Henrique Feist?

A saída do Henrique Feist e do Ricardo Spínola foi pelos mesmos motivos do que a minha. Não admitimos que nos baixem o cachet, e nem é só por isso. Prefiro que as pessoas me digam que não têm hipótese de pagar aquele salário e eu até fazia de borla para o estúdio se fosse o caso. Mas falem comigo, sejam honestos. Não me importo de me deslocar… Ainda hoje tive uma série de convites, entre eles uma mãe de um menino com a doença de Asperger que pediu-me se eu gravava um vídeo para o filho que vai fazer anos. E eu ofereci-me para estar presente na festa de aniversário… Não quero que me vejam como o bonzinho, só quero que percebam que dou tudo quando sinto honestidade nas coisas. Caso contrário não dou.

Nós precisamos do dinheiro, mas há sempre outros valores que se levantam, e isso a comunidade ‘Dragon Ball’ trouxe-nos: o valor famíliaSente que esta ligação de proximidade com os fãs foi o que o manteve durante estes 25 anos?

A mim e aos meus colegas. Começou por ser um trabalho. Começámos por ter o reconhecimento pelo trabalho que fizemos e depois tornámo-nos uma família. Mais do que tudo gostava que percebessem que os fãs do ‘Dragon Ball’ tornaram-se uma família. Organizam almoços e nós vamos. Organizam festas e nós vamos…

E esse são os melhores momentos que ficam?

Claro que são! É claro que nós precisamos do dinheiro, mas há sempre outros valores que se levantam, e isso a comunidade ‘Dragon Ball’ trouxe-nos: o valor família.

Vim a saber na véspera do filme que para tentarem recuperar alguns atores ofereceram-lhe mais um aumento. Não me chateia nada que alguém ganhe mais um bocadinho do que eu. Não acho é justo

Além de ter dito que o valor dos cachets foi um dos motivos para a sua saída, referiu também que os atores tinham acordado o mesmo valor salarial, uma condição que não iria permanecer no novo canal. Sente que estando toda a equipa reunida a lutar por isso é muito mais fácil?

Tudo o que fizemos no ‘Dragon Ball’ foi sempre muito em função dos quatro mosqueteiros (como nós lhe chamamos). Não porque temos mais importância, mas porque fomos os que resistimos desde há 25 anos. Vim a saber na véspera do filme que para tentarem recuperar alguns atores ofereceram-lhe mais um aumento. Não me chateia nada que alguém ganhe mais um bocadinho do que eu. Não acho é justo.

E é deitar por terra tudo aquilo pelo qual tinham lutado…

E como continuamos a lutar da mesma maneira, por isso é que saímos.

Foi uma iniciativa do próprio estúdio? O estúdio sabia dessa posição e mesmo assim tentou fazer isso nas costas de alguns atores?

Exatamente.

Disse também no Facebook que estão habituados a que os artistas façam borlas. Sente que isso prejudica o trabalho do artista ou sente que esta profissão ainda não é devidamente reconhecida em Portugal?

Não digo que não seja reconhecida. Tanto é que eles precisam dos artistas para essas coisas todas. O que acho é que os próprios artistas muitas vezes não se sabem defender ou não se querem defender. Vou dar um exemplo com o fado. Os guitarristas de fado têm quase como código de honra não fazerem borlas. Não quer dizer que não façam uma ou outra, mas muito pouco e bem. A maior parte dos fadistas aceita constantemente estar a fazer borlas.

Não posso dar aquilo que é o meu ganha pão. Claro que faço borlas com alguns amigos. Agora, o público não se pode habituar a esta história das borlasSente que isso deixa as pessoas mal habituadas?

Claro que deixa. E é um não reconhecimento do meu valor enquanto profissional. Isto é o meu trabalho. Não posso dar aquilo que é o meu ganha pão. Claro que faço borlas com alguns amigos. Por exemplo: tenho muitas permutas com lojas que me patrocinam e é evidente que aquilo que eles me pedem eu não me sinto no direito de cobrar. Agora, o público não se pode habituar a esta história das borlas.

Há 25 anos era muito mais fácil porque na altura, se calhar, eles precisavam de 10 artistas e havia 5 disponíveis. Agora precisam de 100 e estão 10.000 disponíveis. As próprias casas de fado cada vez pagam menos porque sabem que cada vez mais há mais fadistas disponíveis. Claro que o patrão aceita aquele que é mais barato. Hoje em dia, uma das coisas que se instituiu na sociedade portuguesa é que a qualidade não interessa. Hoje em dia outros valores se levantam. Raramente se consegue um emprego por mérito. É porque alguém conhece alguém que nos abre uma porta. Depois posso ter mérito… 

Às vezes perguntam-me o que é que é preciso para ser ator e eu digo: gostar de ler. A leitura é a única forma de nós chegarmos ao supremo daquilo que acho que é importantíssimo, que é a inteligência. O ator trabalha muito ao contrário daquilo que as pessoas pensam. A maior parte das pessoas acha que para fazer ‘Os Maias’ leio ‘Os Maias’, decoro o texto e já está. Não! Eu para fazer ‘Os Maias’ e se o quero fazer bem feito tenho de ler muita coisa sobre o Eça de Queiroz. E é aqui que acho que a nossa sociedade está a perder-se por completo a todos os níveis e em todas as áreas. É uma coisa que me complica o sistema nervoso. Daí eu ter a certeza absoluta que mais cinco anos e desapareço de vez e vou embora para a Aldeia da Mata [Alentejo].

É o final da carreira de ator?

Da carreira de artista!

Estou cansado da grande cidade. Ter esta luta diária de correr atrás do ordenado, de ter um posto de trabalho… não quero, estou cansado, fartoMesmo do fado?

Sim! Ou seja, não estarei tão presente. Não quer dizer que não venha todos os meses passar um fim de semana a Lisboa e aceito fazer uma noite de fado num casa de fado. Mas ter esta luta diária de correr atrás do ordenado, de ter um posto de trabalho… não quero, estou cansado, farto. E atenção que ainda não atingi a idade da reforma [risos].

Está já a olhar para o futuro a curto prazo...

Estou cansado da grande cidade… Estou farto de dizer que sou alentejano, a Aldeia da Mata é no Alentejo. Não é a minha terra, é no meu distrito, é uma aldeia que amo de paixão e aprendi a gostar daquele silêncio. É onde me encontro, onde ouço o silêncio e que é tão fundamental para o meu equilíbrio. Sou um agitado por natureza e não paro porque vou muitas vezes ouvir o silêncio, até no paredão.

É esse equilíbrio que às vezes é necessário…

É, mas agora já não me chega. Já preciso dele muito mais do que a agitação. Preciso de me mudar para lá e, de vez em quando, uma vez por mês ou uma vez de três em três meses, vir à agitação da grande cidade.

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