"Não consegui salvar o meu casamento, mas no livro a coisa salva-se"
O Fama ao Minuto falou com Nuno Markl a propósito de 'Manual de Instruções', o seu novo livro de banda desenhada desenvolvido com Miguel Jorge.
© Hugo Macedo.
Fama Nuno Markl
A história do novo livro de Nuno Markl tem uma outra história muito curiosa na sua origem. Miguel Jorge é, há mais de 20 anos, um grande fã do humorista e por isso tinha o desejo de um dia com ele trabalhar. A proposta foi feita pelo desenhador a Markl durante uma sessão de autógrafos, que logo aí a aceitou.
Ainda assim, o argumento de 'Manual de Instruções' não foi pensado para ser um livro de banda desenhada. Nuno Markl escreveu a história com a ideia de transformá-la num filme, mas a falta de financiamento esteve perto de enviá-la diretamente para uma gaveta. Foi então que nasceu a feliz parceria que une o comunicador a Miguel Jorge, com um livro que está a ser amplamente bem recebido pela crítica - e pelos leitores.
O Fama ao Minuto falou com os dois numa entrevista marcada pela boa disposição e por muitas gargalhadas. E percebe-se porquê. No final de contas, é muito bom fazer-se o que se gosta e ter, ao mesmo tempo, o reconhecimento daqueles para quem trabalhamos.
Achei encantador o relato inicial que explica o livro e que, no fundo, também explica como é que ele nasceu. Posso pedir-vos que contem novamente esta história?
Nuno Markl (NM): Eu escrevi este argumento de cinema a seguir à série '1986' e foi o passo natural para uma nova colaboração entre mim e o Henrique Oliveira, que realizou essa produção. Começámos a trabalhar nisso e entretanto, o Miguel Jorge já tinha entrado na minha vida há uns bons anos. Ele era meu 'stalker' e houve um dia em que me mostrou a arte dele e eu gostei muito. Disse-lhe que haveríamos de fazer algo juntos e disse-o com genuína vontade que isso acontecesse mas algumas coisas na minha vida vão resvalando e as pessoas vão-se afastando, o que não aconteceu com este homem [entre risos]. O 'Manual de Instruções' acabou por ficar, como tantos outros casos, em 'águas de bacalhau' e ele perguntou-me se eu me importava que ele ficasse com o argumento e o transformasse numa banda desenhada. Eu disse 'por que não?'. Passei-lhe o argumento, mas demorei muito...
Miguel Jorge (MJ): Demoraste e eu estive incessantemente a pedi-lo [gargalhada].
NM: A partir daí foi preciso definir o look das personagens. Achei que era preciso determinar isso no início e depois disso entreguei-lhe a coisa. De vez em quando ele ia enviando as páginas para ver como ia ficando...
MJ: Do meu lado foi preciso insistir para o Nuno não se esquecer de enviar o argumento e a partir daí comecei a criar todo o livro.
Miguel, há aqui o desafio adicional de entrar na mente do Nuno Markl, que é possivelmente uma das figuras mais criativas do país...
MJ: O facto de seguir o trabalho do Nuno há mais de 20 anos fez com que fosse relativamente fácil ouvir a voz do Nuno na voz do Alberto e perceber como funciona a construção das cenas de humor do Nuno.
NM: Uma das coisas que achei mais incrível no trabalho do Miguel é que ele conseguiu apanhar os 'timings' que eu tinha imaginado para o filme. É daqueles casos em que há vantagens no facto de a pessoa que está a adaptar isto conhecer quais são os meus 'timings' e a linguagem da minha comédia. É uma adaptação feita por alguém que percebe a língua que eu falo no que toca ao humor, sem deixar de ser uma obra dele.
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Eu sei que há também um motivo muito claro para a escolha de fazer o livro a preto e branco...
MJ: Quando agarramos em qualquer manual de instruções, ele é preto e branco. Logo no início, dei essa sugestão ao Nuno. O Nuno, relutantemente, concordou.
NM: Eu não estava bem a ver, achava que isto ia ficar bonito a cores. Mas realmente faz muito sentido. Acho que a natureza deste livro é ser a preto e branco, não há outra forma. Faz sentido que a vida desta personagem seja realmente vivida entre outras personagens a preto e branco. Há coisas em que sou muito lento [risos].
Sinto que há pedaços de diálogo que ele tem com a mulher que são decalcados de pedaços de diálogo que eu tive com a minha ex-mulherE afinal, qual é a história deste livro?
NM: É a história de um tipo que é super apaixonado pela profissão que tem e que não consegue equilibrar essa paixão pelo trabalho com as outras paixões da vida dele. É um tipo que está preparado para ser uma força criativa no trabalho, mas que, apesar de achar que é uma boa pessoa, bom pai e bom marido, talvez não seja nada destas coisas e seja, talvez, apenas um bom profissional. Isto foram coisas com as quais me debati e que espelham muito o fim do meu casamento. Sinto que há pedaços de diálogo que ele tem com a mulher que são decalcados de pedaços de diálogo que eu tive com a minha ex-mulher – e sei que ela não se importa. Há coisas que ela me dizia e o meu cérebro bifurcava e eu pensava 'raios, estou a ser massacrado', mas a outra parte dizia 'isto é bom, que boa frase que ela disse aqui, tenho de tomar nota disto'. Não consegui salvar o meu casamento, que foi fechado com a maior amizade e está tudo harmonioso, mas no livro a coisa salva-se.
Acaba por ser então mais uma história com vários detalhes pessoais?
NM: Sim, é uma história muito pessoal. No '1986' era eu a ter conversas que nunca tive com o meu pai e que gostava de ter tido. Aqui sou eu a resolver o fim de um casamento e a tentar melhorar-me para a vida que tenho agora. Fazer este livro foi uma espécie de autoterapia.
E porquê debruçar-se sobre a vida de um escritor de manual de instruções?
NM: Tem muito a ver, embora só tenha percebido isso depois de ter acabado de escrever o livro, com o facto de ter tido, desde sempre, um bocado o 'síndrome do impostor'. Eu gosto muito da profissão que tenho, mas às vezes fico a pensar 'será que isto é mesmo uma profissão, fazer piadas e contar histórias?'. Há um lado em mim que se questiona se isto é uma profissão digna deste nome.
Gosto de pensar que alguns supermercados têm uma cabine e que a música que ouvimos é posta por um tipo que está a ver o ambiente que está lá em baixo
Mas não deixa de ser curioso o facto de ter conseguido criar toda uma história em torno deste homem e da sua profissão...
NM: Também tem que ver com o meu fascínio de especular sobre profissões que não sei se existem bem. Eu não sei - nem quis investigar - como são os meandros da escrita de manuais de eletrodomésticos. Mas quis escrever sobre esta comunidade de profissionais desta área. Já no 'Refrigerantes e Canções de Amor' também há uma outra especulação sobre uma profissão que talvez não exista, que é o DJ de supermercados. Gosto de pensar que alguns supermercados têm uma cabine e que a música que ouvimos é posta por um tipo que está a ver o ambiente que está lá em baixo.
Mas sente que começa a identificar-se mais com a escrita de histórias mais reais?
NM: Eu gosto sempre que as coisas estejam sempre ancoradas na realidade. Mesmo no 'Refrigerantes e Canções de Amor', que é uma fantasia, há um lado em mim que se interessava realmente na questão 'será que é possível uma pessoa apaixonar-se perdidamente por alguém que não sabe como é e que está fechada num sítio?'. Gosto de especular à volta de sentimentos reais. Mesmo esse filme tem muita coisa do meu primeiro casamento, nomeadamente o conceito de quando uma pessoa se separa, mesmo que a bem, como eu me separei, em que momento se começa a sentir o peso da solidão? Não é quando se pensa nas viagens que se fez mas sim nas coisas do dia a dia. Senti o peso da solidão quando fui ao supermercado. Foi deprimente porque fiquei comedido de uma estranha e avassaladora tristeza quando estava na secção do papel higiénico, o que é super estranho. Mas foi a pedra de toque para escrever o argumento desse filme. Gosto que estas histórias, embora bizarras, façam as pessoas pensar que podiam acontecer.
Tinha alguma esperança que o 'Manual de Instruções' levasse algumas pessoas que não leem este tipo de livros a experimentarem fazê-lo
Também já estão a transformar o 'Refrigerantes e Canções de Amor' numa banda desenhada, certo?
NM: Começámos o 'brainstorm' para a banda desenhada, sim. Eu pedi ao Miguel Jorge que esqueça o filme e que olhe só para a página do argumento que ainda tenho que enviar. É uma boa oportunidade para as pessoas verem um outro lado daquela história.
MJ: Na altura, quando vi o filme, não pensei na história como um livro de banda desenhada. Agora, acho que qualquer coisa é possível passar para banda desenhada.
Acho que é seguro dizer que a reação que o público tem com a banda desenhada ainda não é a que poderia ter...
MJ: Infelizmente, quando se lança um livro de banda desenhada não é algo a que o público corra atrás. Quando insisti tanto para fazer um projeto de banda desenhada com o Nuno tinha alguma esperança que isso levasse algumas pessoas que não leem este tipo de livros a experimentarem fazê-lo.
E qual tem sido a reação do público a este livro?
NM: Tem sido muito bom. Há o famoso erro da página 100 e eu sou um bocado dramático e quando descobri o erro mandei mensagens a dizer ‘pronto, acabou tudo, triturem esta edição’. Curiosamente as pessoas têm carinho pelo erro e nas sessões que temos feito temos resmas com a página que falta e damo-las às pessoas autografadas.
Para o Miguel, como tem sido entrar nesta comunidade que o Nuno já criou?
MJ: Só tenho coisas boas a dizer, tem ido muito para além do que poderia imaginar. Uma experiência fantástica que não sei transpor em palavras.
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Apenas que valeu a pena ser insistente...
MJ: Sim, valeu. Aconselho toda a gente a nunca desistir [entre risos].
Sinto que a minha pedra tumular dirá 'o homem que mordeu o cão'
Quando o Nuno fala destes seus projetos, sente-se sempre que dedica um espaço em particular do seu coração a cada um deles...
NM: Sim, eu adoro fazer o 'Homem Que Mordeu o Cão' e as coisas que faço na rádio, mas digamos que isso é o meu dia a dia. Quando me dedico a escrever uma coisa que é mais pessoal e diferente do que as pessoas estão habituadas da minha parte, faço-o com muito empenho e carinho. Gosto de criar personagens, de trabalhar com atores... E há um gosto ainda maior ao ver o impacto que isso tem nas pessoas.
Acho que há muitas pessoas que pensam que o Nuno Markl é o 'Homem Que Mordeu o Cão' e não querem saber de histórias de amor criadas por mim. No início do '1986', na primeira reunião da série na RTP, houve uma pessoa que me disse: 'sabes lá tu escrever histórias de amor'. Eu pensei 'acho que sei', porque tenho alguma sensibilidade e não sou uma pedra e tive de provar que era capaz. A pessoa que disse isso, no fim, ligou-me a dizer: 'sei que começámos de uma maneira muito esquisita, mas a série está muito gira'.
O que justifica, na sua opinião, que continue a ter tanta dificuldade em arranjar financiamento para os projetos que desenvolve?
NM: Acho que uma das coisas que faz com que muitas vezes haja um obstáculo no financiamento é isto mesmo. Quem é que quer financiar um filme do 'Homem Que Mordeu o Cão'? 'Ele agora está a contar uma história de amor? Epa, não'. Há muito esta ideia de nem questionar se há mais dimensões do que aquela que mostro na rádio todas as manhãs.
Mas sente que, mesmo depois de tudo o que já fez, continua a ser visto apenas como o 'Homem Que Mordeu o Cão'’?
NM: Sim, e possivelmente serei até ao fim dos meus dias. Sinto que a minha pedra tumular dirá 'o homem que mordeu o cão'. E adoro fazer isso, é das coisas que me dá mais gosto na vida, mas pelo meio dos pingos da chuva vou tentando passar estas outras histórias. Há algum preconceito. O que acontece é eu dizer 'tenho aqui uma ideia muito gira para um filme' e responderem 'está bem, mas vai lá fazer o 'Homem Que Mordeu o Cão' e cala-te, faz-nos rir de manhã no trânsito'.
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