É uma revolução no tratamento de doenças malignas do sangue, como leucemias e linfomas, mas também imunodeficiências, anemias e doenças metabólicas hereditárias. O número de doenças graves tratadas com sangue do cordão umbilical subiu para mais de 90, desde a sua descoberta, em meados dos anos 80.
"Desde o sucesso do primeiro transplante, em 1988, foram já realizados mais de 45 mil transplantes de sangue do cordão umbilical, em crianças e adultos, o que demonstra a sua importância como opção terapêutica", afirma Francisco Santos, diretor da unidade de terapias celulares da Crioestaminal, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, a propósito do Dia Mundial do Sangue de Cordão Umbilical, que se assinala esta terça-feira. Em Portugal, a primeira intervenção ocorreu em 1994. Desde então, cerca de 10% das famílias optam por guardar as células estaminais dos seus bebés anualmente e, segundo o responsável, este será um número com tendência para "aumentar nos próximos anos".
Francisco Santos, diretor da unidade de terapias celulares da Crioestaminal© Francisco Santos
A investigação com células estaminais é das áreas mais promissoras da medicina. Atualmente, estão registados mais de 230 estudos e as perspetivas são animadoras. Francisco Santos sublinha que o número de ensaios clínicos "tem tido um crescimento exponencial, com uma grande diversidade de utilizações clínicas de onde se destacam as áreas oncológica, imunológica e cardiovascular".
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Adianta ainda que são esperados "avanços significativos" nos próximos dois anos, "com a expectativa da aprovação, por parte das entidades reguladoras dos medicamentos, de novas tecnologias que permitirão ultrapassar a limitação do número de células estaminais em algumas das amostras criopreservadas".
Nos últimos anos, as células estaminais ganharam um papel central na ciência. A que se deve essa mudança?
As células estaminais apresentam um enorme potencial de utilização na área da saúde. A medicina está a evoluir no sentido de terapias personalizadas, em particular para doenças sem resposta clínica atual, e as células estaminais permitem desenvolver este tipo de terapias que são 'desenhadas' para um doente em particular. Outra área de grande interesse é a medicina regenerativa, em que as células estaminais são utilizadas para regenerar ou criar novos tecidos e órgãos, permitindo assim novas abordagens terapêuticas.
As células estaminais assumem um papel importante na cura de diversas patologias, daí ser cada vez mais pertinente a sua conservação. Falamos de quantas doenças?
De mais de 90 doenças. Na maioria dos transplantes já realizados, o sangue do cordão umbilical foi utilizado para o tratamento de doenças do sangue e do sistema imunitário, mas as células do sangue do cordão umbilical são também aplicadas no tratamento de doenças genéticas ou metabólicas.
O primeiro transplante com sangue do cordão umbilical foi realizado no final dos anos 80. Nestas três décadas, quais foram as principais descobertas? Que inovações destaca?
Desde o sucesso do primeiro transplante, em 1988, foram já realizados mais de 45 mil transplantes de sangue do cordão umbilical, em crianças e adultos, o que demonstra a sua importância como opção terapêutica. Nestas últimas décadas tem também sido promovida muita investigação básica e translacional para desenvolver terapias celulares a partir do sangue e tecido do cordão umbilical, nomeadamente nas áreas da medicina personalizada e medicina regenerativa. O número de ensaios clínicos tem tido um crescimento exponencial, com uma grande diversidade de utilizações clínicas de onde se destacam as áreas oncológica, imunológica e cardiovascular.
Portugal acompanhou esta evolução?
Em Portugal, a primeira utilização clínica de sangue do cordão umbilical ocorreu em 1994, num transplante entre irmãos. O serviço de criopreservação está disponível em Portugal há quase 20 anos e, desde então, cerca de 10% das famílias optam por guardar as células estaminais dos seus bebés anualmente. Na Crioestaminal contamos com a confiança de 120 mil famílias, tendo sido já utilizadas em tratamentos amostras de sangue do cordão umbilical de 13 crianças em 18 aplicações clínicas. Estas utilizações de sangue do cordão umbilical ocorreram, num caso, em contexto alogénico relacionado – transplante hematopoiético entre irmãos para tratar uma criança com uma imunodeficiência combinada severa detetada por volta dos seis meses e, em todos os outros casos em contexto autólogo, foram utilizadas no tratamento as amostras das próprias crianças, em situações de paralisia cerebral, perturbação do espetro do autismo, anemia aplástica grave e leucemia mieloide aguda. Os tratamentos foram realizados em Portugal, Espanha e Estados Unidos da América. No caso da utilização clínica em crianças com paralisia cerebral e com perturbação do espetro do autismo, os tratamentos, não sendo convencionais, realizaram-se maioritariamente na Carolina do Norte, no contexto de um ensaio clínico conduzido na Universidade de Duke. Nestes casos, não é possível falar em cura, mas observam-se algumas melhorias na função motora e cognitiva destas crianças
As células estaminais são colhidas logo após o nascimento do bebé e a colheita não representa qualquer risco
É dispendioso? Estamos a falar de que valores?
Atualmente, a Crioestaminal disponibiliza aos futuros pais o armazenamento do sangue do cordão umbilical durante 25 anos, através de uma entrada inicial de 400 euros seguida de um pagamento anual de 60 euros durante o período de armazenamento contratualizado ou até a eventual utilização clínica da amostra. Em alternativa, os futuros pais podem optar pelo pagamento antecipado dos 25 anos de armazenamento através de um pagamento único após o nascimento do bebé.
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Há riscos?
Não. As células estaminais são colhidas logo após o nascimento do bebé e a colheita não representa qualquer risco nem para a mãe nem para a criança.
Como é que faz a criopreservação das células?
Consiste em conservar as células estaminais por longos períodos, a baixas temperaturas (-196ºC), sem que estas percam a sua viabilidade e funcionalidade. Atualmente as células estaminais são armazenadas durante 25 anos, pois é este o período em que, de acordo com estudos recentes, a viabilidade celular é assegurada. As células estaminais criopreservadas estão disponíveis a qualquer momento, podendo ser facilmente descongeladas, para utilização em caso de necessidade, no tratamento de várias doenças.
A decisão de armazenar as células do cordão umbilical tem de ser tomada num prazo específico?
Guardar as células estaminais é uma oportunidade única que as famílias devem considerar durante a gravidez, não existindo a necessidade de um prazo específico, o importante é que a família tenha o kit de colheita na sua posse no momento do parto. Assim, aconselhamos, idealmente, que a decisão seja tomada dois meses antes do parto, pois caso o parto se precipite, antes do momento previsto, a colheita das células estaminais já está acautelada.
O sangue do cordão umbilical pode ser usado em adultos?
Sim, dependendo da correlação entre o número de células disponíveis na amostra, o peso do doente e a doença alvo de tratamento. Esta limitação do número de células em algumas amostras criopreservadas tem sido foco de intensa investigação na última década, cujos resultados são agora aguardados com expectativa. É esperado que algumas das tecnologias desenvolvidas nesta área sejam aprovadas nos próximos dois anos para utilização clínica, o que terá um impacto significativo na utilização do sangue do cordão umbilical na área da transplantação adulta.
Ainda temos um longo caminho a percorrer relativamente ao conhecimento da população em geral quanto às células estaminais do cordão umbilical
Quem pode doar sangue do cordão umbilical para o Banco Público de Células do Cordão Umbilical?
Em princípio, todas as grávidas com mais de 18 anos podem doar o sangue do cordão umbilical dos seus bebés para o banco público. Devem contactar o Lusocord e o Hospital onde irá ocorrer o parto, para que sejam acautelados todos os procedimentos prévios, nomeadamente a disponibilização do kit de colheita, o consentimento informado e avaliação da história clínica e familiar da dadora.
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Considera que a população está informada sobre os benefícios desta prática? Quais as principais dúvidas levantadas pelos pais?
Ainda temos um longo caminho a percorrer relativamente ao conhecimento da população em geral quanto às células estaminais do cordão umbilical. Continua a ser um dos nossos principais desafios a divulgação das potencialidades deste bem único, assim como o reforço da importância de guardar as células estaminais do cordão umbilical. É precisamente neste âmbito que nos associamos ao Dia Mundial do Cordão Umbilical com várias iniciativas de visibilidade, de entre as quais destaco a possibilidade de todas as famílias, à espera de bebé, visitarem o nosso laboratório. No que respeita às principais questões das famílias, na fase inicial, prendem-se com o benefício de guardar as células estaminais, para que servem, o que tratam e se já foram efetivamente utilizadas, depois de decidirem guardá-las as questões passam a centrar-se nas etapas de todo o processo, com especial enfoque sobre as ações a realizar no dia do parto.
Que mensagem é importante transmitir a quem pretenda, no futuro, preservar células estaminais?
Que tome uma decisão informada quanto à possibilidade de guardar as células estaminais. E que não deixe de se informar, apesar da eventual informação contraditória, com a qual já possa ter tido contacto. Cada família sabe o que faz mais sentido para o seu contexto e hoje há opções para todas: de acesso através de pagamentos faseados, um valor de entrada seguido de um pagamento anual, como já exploramos acima, opções para famílias jovens, opções para doação, quer para o banco público, quer à Crioestaminal, de modo a contribuir para mais tratamentos com células estaminais, através dos nossos projetos de Investigação e Desenvolvimento. O importante é não desperdiçar este bem único.
Quais as últimas descobertas científicas?
A área das terapias celulares tem tido um notável e acelerado desenvolvimento nos últimos anos. É importante ressalvar que esta é uma área que não se baseia apenas em investigação básica académica, mas tem também uma forte componente translacional clínica. De facto, segundo o relatório da Alliance for Regenerative Medicine, no primeiro semestre de 2022 estavam registados mais de 1700 ensaios clínicos ativos para avaliação de terapias celulares. Recentemente, um dos avanços científicos mais significativos foi o desenvolvimento da tecnologia das células CAR-T, que permitiram o desenvolvimento de terapias na área oncológica e que são já disponibilizadas por algumas das maiores empresas farmacêuticas.
Que projetos de investigação estão a decorrer nos laboratórios da Crioestaminal?
A Crioestaminal tem focado os seus projetos de investigação no desenvolvimento de terapias inovadoras utilizando células estaminais. Desde 2020 que a Crioestaminal está certificada pelo Infarmed para a produção de medicamentos experimentais de terapias celulares, sendo assim a única empresa nacional que combina a criopreservação de células estaminais com o desenvolvimento clínico de novas terapias para doenças sem resposta clínica no contexto atual. Em conjunto com parceiros académicos e clínicos, a Crioestaminal já desenvolveu três medicamentos experimentais de terapias avançadas que serão, em breve, avaliados em ensaios clínicos em Portugal.
Quais as suas perspetivas sobre os avanços científicos relacionados com a utilização do sangue do cordão umbilical no mundo e em Portugal? E quais os principais entraves?
O número de transplantes que utilizam o sangue do cordão umbilical como fonte de células estaminais continuará a aumentar nos próximos anos. São esperados avanços significativos nos próximos dois anos, com a expectativa da aprovação, por parte das entidades reguladoras dos medicamentos, de novas tecnologias que permitirão ultrapassar a limitação do número de células estaminais em algumas das amostras criopreservadas. Por outro lado, as empresas da área de terapias celulares, onde se inclui a Crioestaminal, estão focadas no desenvolvimento de diferentes terapias com base nas células estaminais do cordão umbilical, o que permitirá um maior aproveitamento do seu potencial.
Há entraves?
Estas terapias inovadoras são consideradas medicamentos de terapias avançadas, tendo um contexto legal e regulamentar muito bem definido para garantir a sua segurança e eficácia clínica. São necessários programas de desenvolvimento prolongados, que incluem ensaios clínicos, e que requerem investimentos significativos em investigação e desenvolvimento.
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