Qual é o pai que se esquece da filha dentro do carro? "Qualquer um"
Um professor universitário esqueceu-se da filha de 10 meses dentro do carro em Almada. Regressou sete horas e meia depois, mas a bebé já havia morrido por asfixia. A psicóloga Filipa Jardim da Silva explica ao Lifestyle ao Minuto como se lida com esta tragédia e que ensinamentos podemos tirar.
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Lifestyle Entrevista
Continuam em investigação as circunstâncias que levaram um professor universitário a esquecer-se da filha, de 10 meses, trancada dentro do carro, durante sete horas e meia, na terça-feira, dia 12 de setembro. A bebé viria a morrer no mesmo dia, ao que tudo indica por asfixia e golpe de calor. 'Mas quem é que se esquece do filho?', questiona o leitor. De resposta rápida, a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva não tem dúvidas: "Qualquer um. Esta tragédia pode ocorrer com qualquer pessoa".
Contactada pelo Lifestyle ao Minuto, a CEO da Academia Transformar é perentória. "Dizer 'eu nunca seria capaz disso' é um raciocínio altamente perigoso e que diminui aquilo que interessa neste tipo de situações. É ficar aquém daquilo que podia ser uma oportunidade de discussão para a sociedade, no sentido de honrarmos estas perdas."
A psicóloga defende a necessidade de um apoio psicológico para os pais. "Este casal vai precisar de muito suporte. É tentador 'apontar o dedo' e atribuir culpas, mas o que estas pessoas necessitam é de apoio", lembra, sublinhando que "esta família tem um processo de luto tremendamente difícil pela frente". "Nós vamos sendo preparados para perder pessoas mais velhas, mas nunca filhos. Há sempre uma responsabilização indevida que qualquer pai e mãe evoca automaticamente para si", explica.
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Colocando a exaustão deste pai como a hipótese mais provável, entende que se trata "de alguém exausto, muito ativo a nível profissional e com um dia a dia acelerado", um cenário comum a pessoas que sofrem de depressão de 'alto-funcionamento'. Nestes casos, o que acontece é que "fazemos um pouco de tudo, mas sempre com a sensação de que não conseguimos acabar nada".
Corremos sérios riscos de cometer erros graves, como passar um sinal de trânsito vermelho ou esquecermo-nos de um bebé. Banalizámos este estado de exaustão física e psicológica. O 'burnout' tornou-se uma epidemia
Filipa Jardim da Silva lamenta que estejamos "a viver cada vez mais numa sobrecarga de estímulos". Em algum momento, "começámos a acreditar que conseguimos estar permanentemente em 'multitasking', com uma atenção dividida. É até algo que a maioria das pessoas tende a valorizar". Resultado: "Muitas vezes saímos de casa, colocamos um bebé numa cadeirinha, vamos espreitando os SMS e e-mails que, por vezes, até estão sintonizados com o leitor de bordo ou com um relógio inteligente. Fazemos uma chamada, prestamos atenção aos sinais de trânsito, às pessoas e aos carros, já a pensar naquilo que vamos fazer quando chegarmos ao trabalho. E às vezes nem nove horas são e já estamos neste autêntico rodopio de forma insana", arriscando-nos a pagar uma das faturas mais altas, a da saúde mental.
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"Isto tem um elevado custo cognitivo e químico", alerta, referindo-se ao aumento de cortisol (a 'hormona do stress') e da adrenalina. "Cognitivamente, só estamos a ficar mais lentos, menos eficientes, mais propensos a errar e desatentos. Continuamos a desvalorizar a nossa saúde mental", considera a psicóloga. Desde a pandemia de Covid-19, "fala-se mais sobre o tema, mas ainda se faz muito pouco e falar só não chega." "Corremos sérios riscos de cometer erros graves, como passar um sinal de trânsito vermelho ou esquecermo-nos de um bebé. Banalizámos este estado de exaustão física e psicológica. O 'burnout' tornou-se uma epidemia", diz.
À porta do seu consultório batem "muitos pais em estado de exaustão". "São pessoas entre os vinte e sete e os quarenta e sete anos que chegam perdidas e a sentir-se à beira do colapso. E esta é muitas vezes uma realidade que não é partilhada com ninguém", avisa.
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Serviços telefónicos de apoio emocional em Portugal
SOS Voz Amiga (entre as 16 horas e as meia-noite) - 213 544 545 (número gratuito) - 912 802 669 - 963 524 660
Conversa Amiga (entre as 15 e as 22 horas) - 808 237 327 (número gratuito) e 210 027 159
Telefone da Esperança (entre as 20 e as 23 horas) - 222 080 707
Telefone da Amizade (entre as 16 e as 23 horas) – 228 323 535
Todos estes contatos garantem anonimato tanto a quem liga como a quem atende. No SNS24 (808 24 24 24), o contacto é assumido por profissionais de saúde. Deve selecionar a opção 4 para o aconselhamento psicológico. O serviço está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana.
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