No universo da gastronomia portuguesa, ninguém fica indiferente ao nome de Gil Fernandes. Discreto, é apontado como um dos melhores da sua geração e, se dúvidas restassem, foi recentemente eleito 'Chefe Revelação do Ano' na 15.ª edição dos prémios Mesa Marcada, um reconhecimento cujo peso não acusa. Sem falsas modéstias, considera que "é um prémio que acaba por ser o culminar de vários anos de esforço, de 'suor, sangue e lágrimas'".
Consciente dos holofotes que agora apontam para si, admite ao Lifestyle ao Minuto que "foi uma alegria chegar aqui, mas vão sempre surgindo novos objetivos e projetos". "Apesar de ter alcançado um sonho, agora há outros a realizar", dizia o chef português, nas vésperas da 1.ª gala Michelin exclusivamente dedicada aos restaurantes portugueses, que decorre esta terça-feira, em Albufeira. "Tenho o desígnio de continuar a apresentar a nossa cozinha ao mundo, como português orgulhoso que sou. Quero viajar mais e levar a nossa cozinha além-fronteiras."
Pode dizer-se que a cozinha é uma paixão? Começou muito cedo.
Sim! O meu pai é agricultor e a minha mãe pasteleira. Estive sempre em contacto com o produto e a confeção. Tinha de ajudar a minha mãe na pastelaria e o meu pai naquilo que havia para fazer. É daí que vêm o gosto e a sabedoria. Tive sempre acesso fácil ao produto, como crescia, evoluía e como era colhido. Mais tarde, aos 14 anos, fui para a Escola de Hotelaria do Estoril. Ao mesmo tempo, começo a trabalhar com a escola e, aos fins de semana, numa quinta de casamentos. Ganhava experiência e o meu dinheiro, o que me permitia ajudar a pagar os estudos.
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Que lições ficaram desses tempos?
Que o trabalho é a base. Mas isso eu até já levava de casa. Apercebi-me foi da competição que há no mundo do trabalho e que se queremos sobressair temos de trabalhar o dobro.
Recorda-se da primeira coisa que cozinhou?
Rissóis ou croquetes fritos com arroz. Ficou péssimo!
Teve o apoio da família quando decidiu que queria tornar-se chefe de cozinha?
Na realidade, até foi a minha tia que me lançou esse repto. Era muito novo, mas fiquei a pensar naquilo e em como podia mudar a minha vida.
E mudou?
Sim. Fui viver sozinho para o Estoril aos 14 anos. Isso fez-me crescer, perceber o que é realmente importante e ajudou-me a manter o foco. Na escola gostava da área de bar e tinha jeito e alguma rapidez. Tinha noção de que poderia ser bom naquela profissão. Quando passei para a escola superior mudei para a cozinha.
Entretanto, que experiências profissionais teve até chegar ao restaurante do Fortaleza do Guincho? Tem 33 anos e um currículo muito completo.
É uma história longa. Fiz o meu primeiro estágio de cozinha no hotel Tivoli, em Lisboa, com o chef Luís Baena. No ano seguinte, fui estagiar para o Vila Joya, no Algarve, com o chef [Dieter] Koschina. Com o curso concluído, estive um ano e meio no M.B Restaurant, em Tenerife, que farte dos vários restaurantes que o chef Martín Berasategui tem. Este tem duas estrelas. Na Holanda, trabalhei com o chef Jonnie Boer, no De Librije, durante mais ou menos um ano e dois meses. Foi lá que levei com um grande impacto daquilo que é a cozinha, a criatividade, a exigência, o esforço... O chef era muito criativo e isso determinou um pouco a minha filosofia enquanto cozinheiro. Quando regressei a Portugal, fui para o Ocean, no Algarve, com o chef Hans Neuner. Estive lá três anos. Durante esse tempo, fiz um estágio de um mês no Geranium, um restaurante em Copenhaga que já foi considerado o melhor do mundo. Em 2015, entrei como subchefe na cozinha do hotel Fortaleza do Guincho e, três anos mais tarde, assumi a função de chef executivo, após a saída do chef Miguel Rocha Vieira. É lá que me mantenho desde então.
Encontrou a 'sua' cozinha?
É complexo. A nossa cozinha vai mudando e sofrendo alterações, mas a base foi-se formando ao longo do tempo com os próprios profissionais com quem trabalhei, a minha formação e com os mentores que nos vão ajudando a trilhar o caminho.
A minha cozinha é de sentimento (...) Meto o meu coração na cozinha e exijo que quem está comigo faça o mesmo
Está onde imaginou que estaria?
Foi uma alegria chegar aqui, mas vão sempre surgindo novos objetivos e projetos. Apesar de ter alcançado um sonho, agora há outros a realizar.
Na 15.ª edição dos prémios Mesa Marcada foi eleito 'Chefe Revelação 2023'. Vê-se dessa forma, como uma revelação?
É um prémio que acaba por ser o culminar de vários anos de esforço, de 'suor, sangue e lágrimas'.
A pressão aumenta com este reconhecimento?
Não.
Quando chegou ao Fortaleza do Guincho, o restaurante contava, desde 2001, com uma estrela Michelin. É seu objetivo trazer mais uma para o espaço?
O restaurante sempre investiu em qualidade, produtos exímios e profissionais de qualidade. Passaram por lá pessoas como o José Avillez, o Filipe Carvalho, o [António] Galapito, o Vincent [Farges]... Muitos bons nomes. É normal que, com o tempo e a cimentação da qualidade, haja uma evolução da própria cozinha e do espaço. Naturalmente, poderia acontecer essa passagem à segunda estrela, mas não nos cabe a nós decidir.
Mas tem essa vontade?
Claro que sim e Deus queira que um dia aconteça. Que venha esse prémio para reconhecer tantos anos de esforço.
Considera que os restaurantes dos hotéis ficam esquecidos pelo público?
Ainda há um pouco essa ideia, mas houve uma grande evolução nos últimos anos. A imponência do hotel pode afastar um pouco as pessoas, mas acho que isso está a mudar. No nosso caso, talvez o facto de estarmos em Cascais seja mais difícil do que a questão de ser um restaurante de hotel.
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Quais é que são as bases e influências da sua cozinha?
O sabor nunca pode faltar. É a base para tudo. Depois, o produto tem de ser excelente e, preferencialmente, português. A portugalidade e a tradição também são muito importantes. Sou uma pessoa que olha muito para os nossos 900 anos de história. Faço cozinha portuguesa contemporânea. Além disso, também dou muita importância à sazonalidade e à estética. Gosto muito de ver pratos bonitos. No entanto, nunca me esqueço de que o sabor é o fundamental. A minha cozinha é de sentimento.
Isso quer dizer o quê?
Que meto o meu coração na cozinha e exijo que quem está comigo faça o mesmo. É também por ser uma cozinha de sentimento que o nosso menu se chama 'Memórias'. São as minhas memórias, as da equipa, da casa, do ser português, da nossa gastronomia. E isso é sentir.
Quão difícil é encontrar um equilíbrio entre sabor, criatividade e estética?
Conjugar as essas coisas nem sempre é fácil. Durante o processo criativo estamos a pensar na combinação, no sabor, em como podemos dar intensidade e equilíbrio. Depois ou antes, coloca-se a apresentação. Às vezes, uma e outra não estão em concordância por várias razões ou a apresentação não se coaduna com o sabor. Por vezes, temos de fazer escolhas e eu escolho o sabor.
A maioria dos seus pratos são de peixe. Porquê?
Gosto de cozinhar tudo, mas estando perto do mar fazia sentido consumir o que de lá viesse. Mas realmente gosto mais de cozinhar peixe e marisco.
E é também o que gosta mais de comer?
Gosto de tudo, mas se tivesse de escolher seria peixe e marisco, sim.
Há algum produto que não goste particularmente de trabalhar?
Sou apologista da sustentabilidade e, por isso, tento fugir um pouco do foie gras, do caviar e de produtos que não sejam nacionais. Tomo muita atenção à pegada ecológica.
As pessoas que assistem ao 'Mastechef' não sabem o que é cozinha
Algum ingrediente que quisesse mesmo evidenciar nesta nova estação que se avizinha?
Estamos em obras e vamos mudar alguns pratos. Ainda estão a ser estudados, mas vão existir mudanças. Outros vão manter-se, porque, além de gostar muito deles, espelham aquilo que é a filosofia da nossa cozinha. É o caso da ostra com caril e gengibre. Outro que irá manter-se será o caldo do mar, um daqueles pratos super ricos, e o robalo com caldo de cozido e couves.
Ainda tem tempo para trabalhar a criatividade ou acaba por estar muito submerso na cozinha e nos afazeres do dia a dia?
Passo muito tempo na cozinha. É onde estou mais horas. Umas dez a onze horas para ser mais exato. Os meus filhos e a minha mulher que o digam. Estão sempre a queixar-se disso. E é na cozinha que tudo acontece. As contratações, os despedimentos, as criações dos novos pratos, as frustações, as alegrias. Sempre que tenho um tempinho vou ver o mar, tento inspirar-me, vou visitar um ou outro produtor mais difícil ou colegas de outros restaurantes, viajar. Consigo 'fugir' um pouco da cozinha, mas não me sobra muito tempo para estar fora. Ainda assim, com o cimentar de uma boa equipa vou tentando fazer isso mais e mais.
Tem a equipa que gostaria de ter a seu lado?
As pessoas que assistem ao 'Mastechef' não sabem o que é cozinha. É importante dizer isso. Aquilo não é cozinha, é brincadeira. As pessoas têm uma noção do que é o trabalho na cozinha, mas não sabem realmente o que é. Por isso é que, durante a pandemia, 20% dos profissionais de hotelaria abandonaram a área. É mesmo muito exigente.
Refere-se exatamente a quê?
Só o facto de cozinhar é exigente. Quando cozinhamos temos de estar com os cinco sentidos muito apurados, fazer preparações que exigem tempo, prestar um bom serviço. Esta pressão é contínua e diária. É tudo a correr, com muito stress, calor, rapidez. Além disso, a maior parte do nosso horário é noturno, pelo que tempo para a família e amigos é pouco. A maioria dos fins de semana não existe, o Natal não existe, Páscoa também não, o mesmo para o Dia dos Namorados. É preciso prescindir de muito.
É necessário perceber que, ao nível da formação, estamos a ficar para trás e daí a dificuldade em recrutar
Falávamos da sua equipa ideal.
Isso é uma procura constante e difícil. Acredito piamente que não existe perfeição. Há a busca. Por isso, considero que não há uma equipa ideal. Há melhores e piores, mas tenho ao meu lado pessoas em quem confio e não digo isto só por dizer. Somos como família.
Portugal está na moda e, provavelmente, nunca tivemos tantos restaurantes. Como olha hoje para o nível da nossa cozinha?
Tem evoluído muito nos últimos anos, é um facto, mas podemos almejar mais ainda e ser melhores. Ainda estamos um pouco abaixo dos grandes países europeus.
Em que aspetos?
Investimento, seguramente, e ajudas de Estado. Enquanto agentes da gastronomia, nem sempre temos o maneio ou o financiamento necessário. Ouvi alguém dizer que gastronomia não é considerada cultura ao nível do financiamento, o que não faz sentido absolutamente nenhum. Nós precisamos dessas ajudas e de estar todos com o mesmo foco. É necessário perceber que, ao nível da formação, estamos a ficar para trás e daí a dificuldade em recrutar. Temos potencial para estar entre as melhores gastronomias do mundo. Estamos perto e melhores, mas cabe-nos a nós lutar por isso.
Ao mesmo tempo a que se assiste a este 'boom' na restauração, o que me diz do desaparecimento dos espaços mais tradicionais, como as tascas?
Temos de perceber que é natural. Tudo tem ciclos, mas cabe às novas gerações focarem-se naquilo que é nosso. A nossa gastronomia, os nossos produtos e os nossos antepassados. Isso é que não podemos esquecer. As tascas como as conhecíamos até aqui começam a desaparecer, mas há jovens com mais conhecimento e noções de gestão a abrirem tascas mais modernas e talvez esse seja o futuro. Vamos reinventar-nos e creio que para melhor.
Alguma vez teve a vontade de ser dono do seu espaço?
Está na minha cabeça, mas o foco é manter esta casa - o Fortaleza do Guincho - alegre, com grandes pratos e bom serviço. Acima de tudo, tenho o desígnio de continuar a apresentar a nossa cozinha ao mundo, como português orgulhoso que sou. Quero viajar mais e levar a nossa cozinha além-fronteiras.
Para rematar esta conversa, como gostaria de ficar conhecido para a posteridade?
Gostava que dissessem que o chef Gil Fernandes foi um dinamizador, um explorador ou um amante da cozinha portuguesa.
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