Desde a campanha das presidenciais norte-americanas de 2016 que Donald Trump se tornou uma das figuras centrais do panorama global, algo que se foi cimentando desde então. Todos os dias é notícia, não só pela posição que ocupa, mas principalmente pelas suas posições, discursos ou tweets controversos.
Não faltam livros sobre o presidente dos Estados Unidos, mas poucos oferecem uma visão diferente que se propõe a compreender o que levou à eleição de Trump e a deslindar a estratégia das suas políticas. Esse foi o objetivo que impeliu Tiago Moreira de Sá e Diana Soller a escreverem o livro 'O Método no Caos', publicado em setembro pela Dom Quixote.
Os investigadores da Universidade Nova alargam os horizontes dos leitores, mostrando o lado racional de Trump e ajudando a entender as decisões que tem tomado desde a sua chegada à Sala Oval da Casa Branca.
Numa conversa com o Notícias ao Minuto, Diana Soller e Tiago Moreira de Sá falaram sobre o livro e sobre a administração Trump. Abordaram o contexto específico que envolveu a eleição do atual presidente e analisaram as suas políticas, com maior destaque para a política externa e para as relações de Washington com Pequim e Moscovo.
No dia das importantes 'midterms', as eleições intercalares nos Estados Unidos, nas quais serão escolhidos congressistas, senadores e governadores, os autores do livro partilharam connosco a sua opinião. Nesta altura, o Partido Republicano controla a Câmara dos Representantes e a Câmara do Senado no Capitólio, mas se os democratas conquistarem uma dessas câmaras a balança do poder pode ser alterada.
Depois de oito anos de administração Obama, e de uma elite da qual desconfiavam, era de prever, como se veio a concretizar, que os jacksonianos elegessem Donald Trump, alguém com quem se identificavam?
Diana Soller - Não havia uma previsão de que Trump ia ganhar as eleições. No entanto, havia causas conjunturais e estruturais que se tivéssemos prestado a devida atenção, podíamos ter percebido que havia efetivamente um fenómeno a acontecer que podia levar à eleição de Donald Trump. As causas estruturais estão relacionadas com algo muito importante. Os jacksonianos sempre existiram nos Estados Unidos. Nós descrevemos os jacksonianos no livro. São uma espécie de comunidade popular, que não tem pensamento escrito como as outras tradições norte-americanas mas que têm um conjunto de valores que são muito importantes. Houve sempre momentos em que essa comunidade se manifestou na história dos Estados Unidos, mas foi sempre vista e socialmente tida como uma comunidade minoritária e pouco importante do ponto de vista ideológico.
No entanto, como costumamos dizer, quando existe uma corrente de pensamento, ainda que não estruturada numa sociedade, pode sempre vir a tornar-se maioritária quando causas conjunturais tornam propícia a evolução dessa classe. Várias coisas tornaram propícia a evolução dessa classe. Primeiro, o facto de a crise de 2008 ter mostrado aos americanos que o seu nível de vida estava a cair nos últimos 30 anos, o que criou uma insatisfação generalizada e que de, alguma maneira, aumentou exponencialmente o número de americanos que se identificavam com os valores dos jacksonianos.
Além disso, houve uma expansão geográfica dos jacksonianos, que residiam maioritariamente no Midwest e no sul e foram passando desde os anos 60 para os subúrbios das grandes cidades, e jogando com a ideia do colégio eleitoral, constituíram um eleitorado mais numeroso em estados que são tradicionalmente mais democratas. E finalmente, há um terceiro fenómeno. A partir de Ronald Reagan há uma deterioração do Partido Republicano que se deve a uma grande falta de ideias, um declínio moral que acontece na administração de George H. W. Bush que deixa os republicanos numa espécie de travessia do deserto.
O que normalmente acontece quando estes partidos grandes têm estas crises de identidade é que há um pensar conjunto entre as elites desses partidos para criar novas ideias. O que aconteceu no Partido Republicano foi o contrário disso. O partido estilhaçou-se e, principalmente desde a administração Obama, começou a organizar-se em fações mais radicais, entre elas o Tea Party. Todas essas diferenças estruturais aliadas ao facto do jacksonianismo existir, todo esse descontentamento que se generalizou pela população americana deu a Trump e à sua mensagem populista um espaço muito grande para se tornar uma mensagem com uma aceitação nacional muito maior do que todos nós esperávamos.
Trump é uma consequência, não é uma causa. Teve o mérito de ter percebido que aquele era o momento certo e o discurso certo para ganhar as eleições- Diana Soller
Em 2012 ainda não estavam reunidas as condições para a eleição de Donald Trump?
Tiago Moreira de Sá - Há aqui duas questões. A primeira, é que por regra um presidente quando se recandidata ganha. Por outro lado, a própria eleição do Obama não é tão diferente nas causas da eleição do Donald Trump. O próprio Obama é um candidato que ganha contra o próprio sistema. Contra o sistema dentro do Partido Democrata, que apoiava maioritariamente a Hillary Clinton, e contra o sistema de Washington. E a prova é que um candidato negro chamado Barack Hussein Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos da América, o que prova que havia um profundo mal estar junto do eleitorado norte-americano em geral. Não é muito normal um candidato negro e com um nome destes ganhar eleições nos Estados Unidos. E ganhou contra a elite do Partido Democrata que estava com Hillary Clinton e contra o establishment de Washington, isto em relação a 2008.
A polarização da sociedade norte-americana acentuou-se, tornou-se mais visível com a eleição de Trump?
Diana Soller - Trump é uma consequência, não é uma causa. Trump teve o mérito de ter percebido que aquele era o momento certo e o discurso certo para ganhar as eleições. Mas é uma consequência. Se a sociedade norte-americana não estivesse profundamente polarizada, provavelmente ele não tinha ganhado as eleições. Não tenho a certeza de que seja mais visível. Acho é que os olhos da imprensa, da sociedade civil, dos 'checks and balances' estão muito mais atentos a essa polarização do que estavam anteriormente. Essa polarização sentia-se muito durante os mandatos de Obama, que foi muitas vezes ou quase sempre barrado de tomar as suas decisões ou de fazer aprovar as leis que ele achava mais importantes por um congresso também ele muito polarizado ou dividido, e isso já é um reflexo da polarização da sociedade americana.
Tiago Moreira de Sá - A polarização dos Estados Unidos é uma norma. Praticamente sempre existiu ao longo da história do país mas com picos enormes. O período da Guerra Civil, o período de Watergate, o período de Clinton tem muito a ver com esta história.
O que esta polarização vai ter de novo é uma polarização radical e moral. Esta dimensão de moral é que é a grande diferença, talvez só comparável ao período da Guerra Civil, e torna a polarização difícil de gerir e torna, num extremo, o sistema político americano disfuncional porque é um sistema que, pelas suas regras, funciona na base de acordos, de consensos, bipartidários entre os chamados republicanos liberais e os democratas conservadores. Ora, esses praticamente extinguiram-se como os dinossauros. Não há um centro moderado para gerar grandes consensos e aprovar as leis. Isto é mais grave quando há um governo dividido, ou seja quando um partido tem a presidência e o outro uma ou as duas câmaras do Congresso.
Neste momento o mesmo partido tem tudo e mesmo assim o governo continua a não conseguir aprovar uma série de legislação fundamental. Trump não conseguiu verbas para o muro com o México, não conseguiu substituir o Obamacare, porque os próprios republicanos estão divididos numa série de questões. Há uma espécie de tripla polarização. Uma polarização geral entre democratas e republicanos, outra no seio dos democratas e no seio dos republicanos e um grande polarização no eleitorado.
Trump está para a política como para o cinema está a passagem dos filmes mudos para os sonoros. Ele é a política sonora enquanto os outros continuam a fazer a política muda - Tiago Moreira de SáJá abordámos a crise de identidade no Partido Republicano. A forma como Donald Trump soube perceber a insatisfação que reinava numa parte da população também é uma das diferenças notórias face às anteriores administrações republicanas?
Diana Soller - Há duas questões que se podem focar. A primeira é que os candidatos republicanos até Trump, tanto John McCain como Mitt Romney, eram representantes desse conservadorismo republicano mainstream, moderado digamos assim. O facto da Sarah Palin ser a escolhida de John McCain para a vice-presidência já dizia qualquer coisa acerca dessa polarização dos Estados Unidos. Agora o que é verdadeiramente diferente no Donald Trump é que ele é um populista. E por definição um populista é um moralizador. É uma figura política carismática que moraliza o discurso, ainda que de uma forma politicamente incorreta e incómoda para a esmagadora maioria das pessoas que acompanha a política. Mas é um discurso moralizador ao mesmo tempo. Ele passa a mensagem de que há um conjunto de americanos que são tão esquecidos pela elite, as desigualdades sociais nos Estados Unidos são cada vez maiores, o americano branco da classe trabalhadora, da classe média, está a ser completamente posto de parte em detrimento das minorias. Então ele assume-se como o representante moral dessas pessoas, eu vou interpretar o que estas pessoas querem para os Estados Unidos.
No entanto, desde que Trump se tornou presidente tem havido uma ligeira abertura a pessoas não brancas, não classe trabalhadora que se identifica com estes valores jacksonianos, que também é uma coisa muito típica de um populista que quer ganhar popularidade fora do seu eleitorado natural.
Tiago Moreia de Sá - Quando o George W. Bush ganhou a primeira vez, até ao 11 de Setembro, houve quem escrevesse que era o regresso da comunidade jacksoniana porque ele representava um conjunto de valores que o Trump também defende. A honra, o patriotismo, o nacionalismo, o trabalho árduo, a resiliência, a coragem, a família, a igreja, a religião, a igualdade em termos de direitos de oportunidades e de dignidade. Também era uma visão predominantemente WASP da América, ou seja White Anglo-Saxon and Protestant, mas não diria que neste caso fosse só protestante, também era católica. Era predominantemente isto mas não era exclusivamente isto. Aliás, o George W. Bush tinha muito boas relações com os hispânicos, até por ser do Texas, e mesmo com os afro-americanos teve alguma aceitação.
Trump tem um conjunto de características, além da dimensão do populismo de que a Diana falou, que tem a ver com o que é a política hoje. A política mudou. Ele representa uma rutura. É uma nova era e ele está para a política como para o cinema está a passagem dos filmes mudos para os sonoros. Ele é a política sonora enquanto que os outros continuam a fazer a política muda, por um conjunto de questões que ele traz. Uma dessas questões tem a ver com a política de identidade, que é uma forma de reação aos excessos fraturantes da esquerda pós-moderna. Donald Trump vem romper com isto oferecendo em troca um regresso à pureza da identidade originária dos peregrinos. Depois ele apresentou um programa político pós-ideológico que tanto abrange ideias de esquerda como ideias de direita. Combina também o uso maciço dos media com as redes sociais, uma espécie de espetáculo permanente, que permite falar de forma diária a qualquer hora e de forma direta ao povo. Goste-se ou não, ele inaugurou uma nova forma de se fazer política que não havia nos presidentes republicanos anteriormente. Eles tinham um modelo diferente, de elite. Agora com este fenómeno essa distinção entre elite e povo, do ponto de vista da participação política, está a esbater-se.
Trump é uma espargata ideológica. Vai da direita à esquerda - Tiago Moreira de SáHillary Clinton, que está mais conotada com essa elite de Washington, foi uma má escolha do Partido Democrata como adversária de Donald Trump? Bernie Sanders não fugia a essa perceção que parte da população norte-americana parece ter de Hillary?
Diana Soller - O Bernie Sanders também é um produto dessa divisão das elites. Ele é um produto daquelas movimentações pós-2008, do Occupy Wall Street, por exemplo, que se tornaram altamente críticos das elites também. O Donald Trump é crítico das elites por dois motivos: as elites protegem-se umas às outras, as elites económicas e as elites políticas; num segundo momento, as elites também protegem as minorias em detrimento do americano nativo, do americano que se revê na identidade matriz dos Estados Unidos. O que o Bernie Sanders vem fazer é a mesma coisa. A matriz do americano é diferente, é constitucionalista, portanto os americanos são todos os que acreditarem no credo americano. Mas também representa uma revolta contra as elites que o Sanders acreditava que se imiscuíam no poder político e económico.
Nesse aspeto, o Bernie Sanders é um fenómeno da mesma América. É um fenómeno que as elites europeias viram sempre como um fenómeno mais sofisticado do que o Trump, por razões óbvias. O seu discurso era menos fraturante e porque a Europa se identifica muito mais com a social-democracia proposta pelo Bernie Sanders nas primárias. Mas é preciso perceber que, no contexto dos Estados Unidos, a social-democracia é uma coisa também ela por si só muitíssimo revisionista da política interna norte-americana.
Tiago Moreia de Sá - A Hillary Clinton foi um monumental erro de casting. Retrospetivamente isso é claro. A pior candidata possível. E não percebeu ela e não percebeu o Partido Democrata esta eleição. Em primeiro lugar, porque como já disse a política mudou profundamente e ela fez uma campanha clássica, que foi no fundo concorrer com o legado do Obama, que até era favorável do ponto de vista económico, com um discurso racional e um programa político tradicional, numa altura em que a política já era feita de uma forma completamente diferente e feita com emoção e não com razão. Depois porque ela era representante máxima do establishment de Washington e até porque se chama Clinton e isso não foi um grande ativo para a campanha.
O Bernie Sanders é outro erro de casting. Embora ele consiga atrair uma parte do descontentamento com o sistema, como o Trump, as semelhanças acabam aí. Ele acantona-se à esquerda. É a esquerda dos liberais. O Trump faz uma coisa diferente. Ele é uma espargata ideológica. Vai da direita à esquerda. Se há coisa que sabemos da história eleitoral nos Estados Unidos é que os candidatos que se colocam muito à esquerda ou muito à direita têm sempre catástrofes eleitorais.
O Partido Democrata está a viver a mesma crise de identidade que o Partido Republicano já viveu? Já se vão falando de eventuais candidatos às presidenciais de 2020 mas não há um nome que gere consenso, que una o partido.
Tiago Moreira de Sá - O Partido Democrata também teve vários fenómenos. O Occupy Wall Street, o 99 per cent. Mas de alguma forma isso foi acomodado pelo Obama porque os democratas estavam na presidência e geriram as franjas e as divisões dentro do partido, que se manifestaram com força através do Bernie Sanders nas primárias democratas. Quanto ao facto de os democratas não terem nenhum candidato, geralmente os candidatos não aparecem com muita antecedência. O Obama não apareceu a dois, três das eleições. Além disso, até acho que não é mau taticamente os democratas adiarem o máximo possível um candidato para não darem a Trump a possibilidade de começar a polarizar, de começar a fazer bullying a esse candidato.
Diana Soller - O sistema norte-americano está concebido para ser assim. Na verdade, depois de se perder eleições o conjunto de candidatos de um partido é maior, devido a estas polarizações também. Tem de ser eleito em primárias, que são um processo tão longo e complicado que nos Estados Unidos dizia-se com muita frequência que o candidato republicano às presidenciais de 2016 seria o Jeb Bush, que como se sabe, teve um resultado absolutamente desastroso nas primárias. Não se deve ver o Partido Democrata sem liderança porque isto é próprio da fragmentação do sistema político norte-americano. Não é suposto neste momento haver uma figura aglutinadora do Partido Democrata.
Agora há um problema que está relacionado com as intercalares. O facto de o Partido Democrata não ter um grande consenso relativamente ao caminho que vai seguir daqui para a frente, tem gerado regionalmente e localmente disputas pelo poder entre democratas. Por um lado, isso é natural. Por outro, neste contexto político tão específico que temos estado a descrever, isso pode ser desfavorável aos democratas. Se há dois candidatos com duas linhas políticas tão diferentes e se há polarização aí, então há a possibilidade de um eleitor que regra geral votaria à esquerda possa abster-se. Só depois das intercalares é que saberemos de que forma isto influenciou essas eleições.
É a primeira vez que um presidente norte-americano diz que a política externa tem de servir a política interna - Diana SollerJá estamos com quase dois anos de presidência de Donald Trump e neste período de tempo tem havido um grande número de demissões na Casa Branca. Isso pode justificar-se só pela sua personalidade?
Tiago Moreira de Sá - Isso está relacionado com várias coisas. Primeiro, é comum em todas as administrações haver um número considerável de entradas e saídas. São muitos os lugares que o presidente tem de escolher. A este nível não me lembro. Mas isso tem a ver com uma especificidade. É que o Trump não era um político. Para além disso, ele não fazia parte da elite do Partido Republicano nem do próprio partido. Aliás, ele chegou a estar com os democratas, por exemplo. Portanto, ele não tinha uma equipa com ele. Ocupou lugares com a família, a filha e o genro, e teve que escolher pessoas que ele não conhecia, que foram recomendadas. O antigo Secretário de Estado, Rex Tillerson, foi recomendado pela Condoleezza Rice e pelo Robert Gates. Isso torna mais propenso que haja conflitos.
Depois há a questão mais profunda, as divergências ao nível das políticas e a que conheço melhor é da política externa. Houve divergências muito profundas entre as pessoas que foram saindo e Donald Trump em questões como a Rússia, a estratégia para a Coreia do Norte, para o Irão, para a China, a saída do acordo do comércio livre da parceria do transpacífico. Ou as pessoas resolveram afastar-se do Trump por não concordarem com a sua visão ou foi ele que as afastou para poder executar a agenda que ele traçou durante as eleições.
Uma perspetiva diferente de Donald Trump© Dom Quixote/Facebook
A política externa de Donald Trump ilustra o pensamento jacksoniano de que tem de servir a política interna?
Diana Soller - Por um lado, é a primeira vez que um presidente norte-americano diz que a política externa tem de servir a política interna. Isso está profundamente relacionada com a visão pessimista que o Trump tem do mundo e do sistema internacional. Daí a ideia de que os Estados Unidos têm sido vitimizados por parte dos países que se têm aproveitado da sua boa vontade para enriquecerem ou para terem tratados que lhes sejam mais favoráveis. Isso é uma ideia profundamente jacksoniana. Há os ‘outros’ e há ‘nós’.
Esta não a única forma na qual nós vemos o jacksonianismo na política externa da administração Trump. Por exemplo, os jacksonianos são profundamente nacionalistas. O equivalente internacional ao nacionalismo é a soberania. Portanto, o Donald Trump vai abandonar toda uma agenda liberal, democrática, por um conceito de soberania e de não intromissão nos assuntos dos outros estados. Outra ideia jacksoniana é que o primeiro dever do governo norte-americano é proteger a população norte-americana, criar todas as condições para que essa população usufrua de postos de trabalho e de bem estar financeiro que lhe dê comodidade. Um dos valores dos jacksonianos que está mais enraizado está relacionado com a defesa da honra a todo o custo. Isso tem um equivalente internacional nos discursos de Trump e nas suas ações políticas que é o do respeito pelos Estados Unidos, o de enaltecer no sistema internacional o prestígio dos Estados Unidos enquanto nação. Os jacksonianos são realistas pessimistas e não liberais internacionalistas, como é a tradição da política externa norte-americana.
Tiago Moreira de Sá - Nós estamos num período de transição do poder no plano internacional. Com um declínio relativo dos Estados Unidos e a ascensão de outras potências como a China e, eventualmente em termos de poder militar e nuclear, a Rússia e no futuro talvez a Índia. Qualquer presidente norte-americano teria de gerir esta transição de poder. Tinha de encontrar uma grande orientação estratégica que respondesse a esta transição de poder no sentido mais favorável aos interesses norte-americanos. Esta transição de poder pode ser gerida através da continuação do retraimento estratégico que já vinha desde a administração Obama, que se traduz numa redução do envolvimento com o exterior, virar-se para dentro para resolver os problemas internos e ganhar força para inverter o declínio e manter a primazia dos Estados Unidos. Isto foi parte do que o Obama tentou fazer. A outra alternativa é a acomodação. Reconhecer que o declínio é inevitável e chamar a Rússia, a China, as outras potências em ascensão, e fazer um acordo com as novas regras da ordem internacional. Não estamos certos de qual será a decisão de Donald Trump.
Esta transição de poder faz com que a ordem internacional liberal já não seja mais possível. Os Estados Unidos já não podem dar-se a esse luxo, sobretudo com a forma como essa ordem foi concebida no pós-Guerra Fria, expandida à escala mundial e mantida pelo poder e financiamento norte-americano. Goste-se ou não se goste, isso já não é possível. Além disso, o Trump não se revê na ordem internacional liberal. Ele tem uma outra visão. É o soberanismo, o anti-multilateralismo, a desconfiança das alianças permanentes, como a NATO ou outras, e a preferência por coligações de vontade e um maior protecionismo.
Houve uma ilusão de que ao integrar a China economicamente no mercado livre ela se iria ocidentalizar e está a acontecer o oposto, o Ocidente está-se a chinesizar - Tiago Moreira de SáEsse protecionismo está espelhado na guerra comercial com a China?
Diana Soller - Sim, como sabe os Estados Unidos têm uma dívida soberana muito grande para com a China e um défice comercial gigante. O acordo que os Estados Unidos estão a tentar impor à China é um acordo em que esse défice desça consideravelmente, que a balança comercial equilibre.
Tiago Moreira de Sá - E é preciso dizer que Trump tem alguma razão nessa questão. Não que estejamos a defender uma guerra económica mas a China tem sido uma batoteira das regras económicas internacionais. Desvalorizando a moeda, roubando propriedade intelectual, por aí fora. Houve uma ilusão de que ao integrar a China economicamente no mercado livre ela se iria ocidentalizar e está a acontecer o oposto, o Ocidente está-se a chinesizar. Tem de se encontrar uma resposta para isto. As relações com a China, não só económicas mas também políticas e militares, vão ser a questão central das relações internacionais para as próximas décadas.
Trump tem tentado transformar a Rússia numa espécie de quase aliado, parceiro dos Estados Unidos no que respeita à China - Diana SollerPode dizer-se que mais do que com a Rússia, o grande desafio de Trump neste primeiro mandato, e talvez, num segundo seja a dinâmica da relação com a China?
Diana Soller - Sim, e a razão é muito simples. Por um lado, os Estados Unidos são uma potência em declínio e, por outro, a China é a potência em ascensão. Cada um à sua maneira tem tentado ganhar terreno ao outro. Aliás, como acontece sempre nas relações internacionais. Os Estados Unidos às vezes até de uma forma confrontacional, apontando o dedo à China. Barack Obama chegou a referir-se à China como um rival dos Estados Unidos e Donald Trump já disse que a maior ameaça aos Estados Unidos é a ascensão da China. É de prever que, não só no mandato de Trump mas nos mandatos que se seguirão, haja muita negociação ou muita confrontação, ou provavelmente até um bocadinho dos dois, entre Washington e Pequim.
No entanto, é muito importante perceber que a Rússia pode ter aqui um papel. Nós acreditamos que na ótica de Trump, ele tem tentado transformar a Rússia numa espécie de quase aliado, parceiro dos Estados Unidos no que respeita à China. Acreditamos que o que está no cerne da política externa do Donald Trump é criar relações cordiais com a Rússia para tentar fazer um bocadinho aquilo que o Nixon fez em 1972 com a China. No fundo, o Nixon e o Kissinger criaram uma quase aliança com a China para conter a Rússia, que era o grande inimigo da Guerra Fria. Acreditamos que é isso que está a acontecer agora, ainda que de uma forma disfarçada porque a população norte-americana não é favorável às boas relações com a Rússia.
Tendo em conta essa importância da Rússia no papel como a China, como analisam a decisão de Trump abandonar o acordo nuclear com a Rússia?
Diana Soller – Donald Trump fez uma coisa que faz repetidas vezes que é rasgar acordos para criar novos. Ele rasga um acordo que não era cumprindo para criar um novo acordo que, se possível, amarre a China. Aliás, as declarações de Trump, ao dizer que o acordo era nulo, foram de que não fazia sentido haver um acordo nuclear que não contemplasse a China. Mais do que qualquer outra coisa, isto parece mais uma manobra no sentido de contenção da China e até de criar um acordo mais conveniente para Washington e Moscovo.
Tiago Moreira de Sá - Além disso, rasgar um acordo com a Rússia, que ninguém cumpre, nas vésperas das intercalares quando o Trump é acusado de ter sido ajudado pelos russos é uma medida popular e os russos percebem isso.
Quais são as vossas previsões para as eleições intercalares?
Tiago Moreira de Sá - É difícil de prever. No Senado já se percebeu que o Partido Republicano não só vai manter como vai reforçar, ao que tudo indica, a maioria. Na Câmara dos Representantes é difícil porque os democratas têm uma ligeira vantagem que tem vindo a diminuir, mais ainda há 30 lugares que ainda não se sabe muito bem para onde é que vão cair. Como a diferença é de poucos lugares nesta altura, com 30 em disputa, tudo pode acontecer. Mas acho que o vento está favor de Donald Trump a todos os níveis. A nível económico, a taxa de desemprego, esta marcha dos migrantes também o favorece, também a eleição no Brasil.
Diana Soller - Há outro dado interessante que é a popularidade do Trump que subiu ligeiramente nos últimos dias. Mais uma vez isto reforça a ideia de que, apesar das sondagens darem vantagem aos democratas na Câmara dos Representantes, as sondagens a nível nacional mostram que os americanos não estão de todo insatisfeitos com as ideias de Donald Trump.
Tiago Moreira de Sá - Agora aconteça o que acontecer, é verdade que Trump, ganhando, reforça o seu poder e sai quase que numa passadeira vermelha para as presidenciais de 2020, embora sejam eleições muito diferentes. As intercalares são muito menos participadas do que as presidenciais, que também já são pouco participadas. No entanto, apesar de ele poder sair reforçado, os 'checks and balances' continuam lá e funcionam.
Como é que avaliam estes quase dois anos de mandato de Donald Trump?
Diana Soller - Donald Trump tem sido Donald Trump. Quase todas as políticas a que se propôs durante a campanha eleitoral, tem tentado cumprir à risca. Não há um coelho escondido na cartola. Há uma grande coerência relativamente ao que prometeu. Do ponto de vista da política interna, tem sido aquela em que ele tem sido menos concretizador. Mas isso deve-se aos tais 'checks and balances'. Quer o congresso, quer o poder judicial, até a própria opinião pública e a imprensa que são muito vigilantes, têm-no impedido de implementar medidas mais polémicas. Na política externa, que é aquela em que o presidente tem mais autonomia, Trump está efetivamente a conseguir implementar um novo tipo de política externa que não é necessariamente favorável aos nossos interesses mas que é aquela a que ele se propôs.
Tiago Moreira de Sá - Em primeiro lugar, o Trump beneficia de uma herança economicamente boa. Muitos dos resultados que estão a ser alcançados, têm mérito dele, mas também estão relacionados com uma dinâmica económica que vem da administração anterior. Ele tem tido o mérito de melhorar essa herança. A taxa de desemprego está a melhorar, por exemplo. Do ponto de vista externo, concordando com a Diana, talvez os grandes erros do Trump tenham sido na política externa. Rasgar o acordo da parceria transpacífico foi um erro que ofereceu a região à influência económica chinesa, sair da forma como saiu do acordo de Paris. Não só pela importância das alterações climáticas mas também porque deixou vazio um espaço que os Estados Unidos lideravam.
A questão mais complicada de todas talvez seja a forma como os Estados Unidos têm lidado com os seus aliados permanentes. Mesmo em declínio relativo, os Estados Unidos têm duas grandes vantagens sobre qualquer adversário. Em termos geográficos, têm a hegemonia no continente americano, não têm nenhum vizinho poderoso, enquanto que a China tem de partilhar a região, em termos de poder, com os Estados Unidos, com a Rússia, com a Índia. Depois há um conjunto de alianças multilaterais e bilaterais permanentes praticamente no mundo todo, que mais nenhum país tem. Essa é uma das grandes forças dos Estados Unidos nesta transição de poder. Qualquer deterioração desta relação com os aliados permanentes é má para os Estados Unidos. Desde logo os aliados europeus da NATO que são os mais fiáveis, talvez a par do Japão. O Trump tem revelado alguma falta de atenção com os aliados, decisões unilaterais sem ter em conta a opinião dos aliados. Acho que a médio-longo prazo isso não é nada vantajoso.