Um ano após detetada a Covid-19, China tenta obscurecer a sua origem

As autoridades e imprensa oficial chinesas estão a distorcer comentários e estudos sobre a origem do novo coronavírus para sugerir que este começou no exterior e não em Wuhan, onde ocorreu o primeiro surto, analisando jornais e declarações de investigadores.

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Lusa
10/12/2020 08:59 ‧ 10/12/2020 por Lusa

Mundo

Covid-19

Um "trabalho de investigação" realizado por um jornal oficial do Partido Comunista Chinês e publicado esta semana indicou que o vírus pode ter chegado a Wuhan através de produtos congelados importados.

"Embora possa ser muito cedo para tirar conclusões precipitadas, a possibilidade de o coronavírus ter passado de produtos congelados para Wuhan (...) não pode ser descartada", lê-se numa nota do editor do Global Times.

Após realizarem uma "série de investigações", os repórteres apuraram, por exemplo, que o "consumo e a venda de produtos congelados importados eram prevalentes em Wuhan", uma realidade em várias outras partes do mundo.

"Será que o surto inicial em Wuhan teve origem em alimentos congelados importados", questionou o jornal.

Face às críticas sobre a forma como as autoridades chinesas lidaram com os estágios iniciais do vírus, Pequim está agora a tentar reescrever a narrativa da pandemia, promovendo teorias de que o vírus teve origem além-fronteiras.

Enquanto procura impulsionar estas teorias, a imprensa estatal tem distorcido comentários de especialistas estrangeiros, para sugerir um amplo consenso global de que o vírus apareceu pela primeira vez fora da China.

As declarações do diretor do Instituto de Pesquisa de Biossegurança em Halle, na Alemanha, Alexander Kekulé, têm sido citadas fora do contexto pela imprensa oficial, nos últimos dias, para sugerir que o vírus teve origem em Itália, um dos países mais afetados pela pandemia.

Kekulé, que disse repetidamente acreditar que o vírus surgiu na China, ficou surpreso. "Trata-se de pura propaganda", defendeu.

O diretor de emergências da Organização Mundial da Saúde, Michael Ryan, falou recentemente sobre a necessidade de uma investigação rigorosa sobre a forma como o vírus passou de animais para seres humanos.

"Precisamos de começar [a investigação] onde foram detetados os primeiros casos, em Wuhan, na China", apontou Ryan, em conferência de imprensa.

Na China, o governo formulou as observações do especialista e a imprensa local alegou falsamente que Ryan disse que o vírus existia em todo o mundo, mas que foi descoberto em Wuhan.

Várias evidências sugerem que o vírus teve origem num animal, provavelmente um morcego, antes de evoluir e contagiar seres humanos. Em 2003, a SARS (síndrome respiratória aguda grave), um outro coronavírus semelhante à covid-19, surgiu na província de Guangdong, no sudeste da China, devido ao consumo de civeta, um animal selvagem.

As autoridades prometeram então banir o comércio de animais selvagens, mas a venda de animais vivos, comercializados em pequenas gaiolas, expostas em mercados, muito próximos uns aos outros, continuou a ser frequente em algumas partes do país, nomeadamente no mercado de Huanan, em Wuhan, onde o primeiro surto de covid-19 foi detetado.

Em fevereiro, a Assembleia Nacional Popular, o órgão máximo legislativo do país, baniu o comércio e consumo alimentar de animais selvagens.

Mas a teoria de que a doença chegou à China através da importação de bens alimentares - uma hipótese descartada pela Organização Mundial da Saúde - tem sido também apoiada por especialistas chineses.

Citado pelo Global Times, Wu Zunyou, epidemiologista chefe do Centro Chinês para Controlo e Prevenção de Doenças, lembrou que o mercado de Huanan vendia marisco congelado.

"Isto dá-nos uma nova perspetiva, uma nova maneira de pensar", resumiu.

Na China, a imprensa é controlada pelo Partido Comunista, partido único de poder, enquanto a Internet é alvo de restrita censura. Académicos, especialistas e intelectuais chineses são pressionados a aderir às interpretações oficiais do regime, distorcendo por vezes questões de natureza histórica.

Um ano após o novo coronavírus ter sido detetado em Wuhan, a população local parece agora acreditar que a doença teve origem no exterior.

"Um colega de trabalho chinês perguntou-me se eu achava que o vírus tinha começado em Wuhan, eu disse que sim", contou à Lusa um estrangeiro radicado na cidade. "Ele [o colega] respondeu que achava o mesmo, mas que não devia partilhar essa opinião com os outros chineses, que acham agora que o vírus veio de fora".

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