Registada oficialmente no Brasil no final de fevereiro, a pandemia de covid-19 teve no país um dos seus principais focos mundiais, ao totalizar mais de 6,8 milhões de infetados e superando os 180 mil mortos.
Segundo especialistas, a evolução da pandemia no Brasil não pode ser desassociada dos posicionamentos públicos de Jair Bolsonaro, que, entre não usar máscara em público, promover aglomerações, protestar contra o isolamento social ou afirmar que não se irá vacinar, foi considerado um dos chefes de Estado mais céticos em todo o mundo em relação à gravidade da doença.
Entre as posições mais polémicas de Bolsonaro estão a classificação da covid-19 como uma "gripezinha", a ampla defesa do fármaco hidroxicloroquina para tratamento da doença e, mais recentemente, o apelo para que o Brasil "deixe de ser um país de maricas".
O economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central do Brasil considerou, em declarações à Lusa, "desastrosa" a gestão da situação pandémica no país.
A gestão "foi desastrosa. Do ponto de vista de resposta sanitária, foi a pior possível. Tudo isso foi deixado a cargo dos executivos estaduais e municipais, cada estado atuou de maneira independente, sem muita coordenação. O Presidente insistiu em teses negacionistas quanto à severidade da doença, com a história da 'gripezinha' e de que não podemos ser 'maricas'", avaliou Schwartsman.
"Tivemos ainda uma politização em torno da hidroxicloroquina e agora da vacina. Descobrimos que o Governo do Brasil não está preparado com uma estratégia de vacinação e, além disso, está a sabotar os esforços de governadores que tentam preparar-se, como é o caso de São Paulo. (...) Um Governo Federal sabotar uma vacina por questões de rivalidade política é do mais baixo que se pode chegar e mostra o seu desprezo pela vida humana", afirmou o economista.
Uma das mais recentes polémicas de Bolsonaro foi ter obrigado o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a recuar na intenção de compra de 46 milhões de doses da Coronavac, potencial vacina chinesa contra a covid-19, que está a ser desenvolvida em São Paulo, estado governado pelo seu rival político, João Doria.
Visão semelhante tem o diplomata do Ministério das Relações Exteriores brasileiro Paulo Roberto de Almeida, que viu na gestão de Bolsonaro "um reflexo de outras atitudes e posturas do Governo, que explicam o seu relativo fracasso" na pandemia.
"A atitude do executivo em relação à pandemia é semelhante à atitude face ao Ambiente e às Relações Internacionais. Bolsonaro é um genocida. Desde o início da pandemia que participou e incentivou manifestações, em que compareceu sem máscara, gerando aglomerações. Bolsonaro acaba por ser mais negacionista do que o próprio Donald Trump (Presidente cessante dos EUA), porque nunca se arrependeu, e agora mostra-se um negacionista vacinal, por razões de baixa política", advogou o diplomata à Lusa.
O Brasil "já deveria estar a preparar-se há muito tempo para a vacinação. O país foi um fracasso completo este ano, em relação à pandemia, do começo ao fim, em todas as etapas, e promete ser igual em 2021, na fase de vacinação", acrescentou Paulo Roberto de Almeida.
Outra questão que marcou negativamente o ano de 2020 no Brasil foi a ambiental, que, consequentemente, afetou a economia e as relações exteriores do país.
O Pantanal brasileiro, a maior zona húmida do planeta, registou este ano os piores incêndios das últimas décadas, numa situação potenciada pela seca na região, mas também por suspeitas de ação criminosa por parte de produtores rurais.
Já a desflorestação na Amazónia brasileira atingiu o seu maior nível desde 2008, sob a gestão de Bolsonaro.
Nesse sentido, o aumento da destruição da Amazónia tem levado alguns países europeus a ameaçarem não ratificar o acordo de livre comércio assinado no ano passado entre a União Europeia (UE) e o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai).
Esse aumento também provocou reações de fundos internacionais milionários e de grandes empresas privadas, que alertaram o Governo para uma queda drástica nos investimentos no país.
"Em 2020, manteve-se o anti-ambientalismo de Bolsonaro, mas o Presidente saiu derrotado, tendo em conta as potenciais sanções de vários países, como a França, que já anunciou redução na exportação de soja do Brasil e a China também está a começar a encontrar substitutos em África", declarou o diplomata.
Já Alexandre Schwartsman acredita que, graças ao fraco empenho ambiental do Brasil, o acordo ente a UE e o Mercosul não avançará sob o mandato de Bolsonaro, que termina em 2022, se não for reeleito.
"Temos o acordo entre a UE e o Mercosul, que foi saudado como um grande avanço, depois de duas décadas de negociações, mas tudo isso foi perdido por força da questão ambiental. Provavelmente, essa questão não se resolverá na atual administração, e muito menos com o atual ministro do Ambiente, Ricardo Salles, que não tem nenhuma credibilidade", disse o economista.
Os analistas consideram ainda "de um amadorismo ímpar" a diplomacia brasileira este ano, com Paulo Roberto de Almeida a avaliar que "ninguém leva a sério a diplomacia brasileira".
Apesar das críticas à gestão de Bolsonaro em 2020, Schwartsman e Almeida concordam que um dos pontos positivos alcançados pelo atual Governo foi a nível económico e social, mais concretamente em relação ao auxílio de emergência atribuído aos mais carenciados para enfrentarem a pandemia de covid-19.
Em março, para ajudar a população mais pobre e os desempregados, o Governo aprovou um auxílio de emergência, no valor de 600 reais mensais (cerca de 98 euros, câmbio atual), que beneficiou cerca de 65 milhões de pessoas, entre trabalhadores informais (sem contrato de trabalho) e aqueles que perderam os seus empregos devido à pandemia.
Contudo, esse valor foi cortado para metade em setembro, tendo sido prolongado até ao final do ano, quando o Governo planeia encerrar o programa.
"A única coisa positiva foi o auxílio de emergência, mas convém frisar que a magnitude desse subsídio veio do Congresso. Porque se dependesse apenas do Governo, ia ser bem menor. O executivo está a colher os louros, mas a iniciativa veio do Congresso, inclusive os exageros, porque há um certo consenso de que o programa foi amplo demais, e abrangeu gente que não precisava, inclusive ouvi situações de brasileiros a viver em Portugal que conseguiram obter esse auxílio" revelou o ex-diretor do Banco Central.
Paulo Roberto de Almeida frisou, por sua vez, que "o Brasil foi o país que mais despendeu recursos proporcionalmente ao seu produto interno bruto (PIB), cerca de 8% do PIB".
"Nenhum outro país, proporcionalmente à situação de cada um, despendeu tanto, mas isso foi um gesto impensado de Bolsonaro, meio populista, mas que levou ao aumento da sua popularidade", concluiu o diplomata.