Organizações querem mulheres a denunciar violência fora das esquadras
Organizações da sociedade civil cabo-verdiana defendem a criação de gabinetes fora das esquadras policiais para denúncia de casos de violência doméstica, para garantir a segurança e proteção das mulheres.
© Lusa
Mundo Cabo Verde
"Recebi uma mulher que me disse ser vítima de VBG [Violência com Base no Género], aconselhei-a a procurar ajuda na Polícia e esta, no outro dia, apareceu na organização agredida porque o companheiro a viu a entrar na Polícia para fazer a denúncia", lamentou a delegada da organização das Mulheres de Cabo Verde em São Vicente, Fátima Balbina, propondo gabinetes de apoio a estas vítimas fora das esquadras.
O tema dos crimes de VBG tem sido abordado por entidades nacionais e locais em São Vicente, nomeadamente para analisar a situação da violência doméstica e o apoio às vítimas, com casos que têm chocado a sociedade civil cabo-verdiana nos últimos meses.
Na mesma linha, Fátima Alves, coordenadora geral da Morabi, instituição que trabalha na promoção da igualdade de género e apoio às vitimas, acredita que instalar gabinetes para estas vítimas fora das esquadras pode ser uma alternativa.
"É uma questão que está a ser colocada e que pode ser uma pista se deve ou não ser seguida esta medida para estimular as denúncias. Não cabe a nós, obviamente, dizer que isso deve acontecer, mas acredito que as instituições devem ponderar", admitiu, sugerindo ainda a implementação das Casas Abrigo para as vítimas, previstas na legislação sobre a VBG em Cabo Verde, instituída há dez anos, mas por concretizar.
Os tribunais cabo-verdianos têm pendentes mais de 2.000 processos por crimes de VBG, essencialmente praticados contra mulheres, mas o número anual de novas queixas apresentadas está a descer desde 2016, segundo dados oficiais.
De acordo com o relatório anual sobre a situação da Justiça, referente ao ano judicial 2020/2021, elaborado pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), transitaram para o atual ano judicial um total 2.025 processos de crimes de VBG.
Elsa Lima, da Polícia Nacional, psicóloga e coordenadora do gabinete policial de apoio à vítima em São Vicente, reuniu o grupo de vítimas de VBG "Renascer", recordando que o formou em 2009 para preencher um vazio que sentia nos casos que atendeu.
"Quando fui trabalhar para o gabinete percebi que não era suficiente fazer a denúncia, remeter ao Ministério Público e muitas vezes algumas regressavam depois de muitas queixas. Senti que era necessário as mulheres terem mais e então, numa conversa com a minha colega, sugeri que criássemos um grupo de vítimas para elevar as suas autoestimas e realizarem alguma atividade que lhes proporcionasse alguma satisfação, enquanto aguardavam pelo tribunal", recordou.
Admite que com a entrada em vigor da legislação sobre VBG em 2011 muitas coisas mudaram, como o aumento do número de denúncias, no entanto ainda percebe que a sociedade precisa encarar o problema de frente.
Por este grupo já passaram mais de 60 mulheres, sendo que algumas ficam apenas algum tempo e outras acabam por permanecer, sendo 16 vítimas apoiadas.
Uma delas é Maria Páscoa, que disse ter tomado a iniciativa de denunciar 29 anos de violência doméstica depois de entrar para o grupo.
"Foi preponderante porque passei a conhecer-me a mim mesma e os meus direitos e porque tomei conhecimento que, além da polícia, tinha outros lugares onde poderia me dirigir", assegura Maria Páscoa, que cinco anos depois ainda pertence ao grupo "Renascer".
Na altura, explica, a submissão ao marido era socialmente defendida e lamenta nunca ter recebido apoio da família.
Bruno Delgado, psicólogo e coordenador técnico do centro de apoio às vítimas em São Vicente, assegura que acima de tudo o que precisa ser trabalhado na sociedade e dentro da família é o conceito de "ser pessoa", para diminuir a violência nas relações.
"Tanto da mulher ou de um homem, ao entrar numa relação abusiva, consiga reconhecer os sinais de que provavelmente aquela relação será toxica e que a pessoa precisa consertar ou sair da relação. Também para que, antes que alguém se torne num agressor, consiga perceber o caminho que está a seguir", argumenta.
Nos dois anos que tem trabalhado neste centro do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) alega que o número de denuncias tem aumentado.
"É importante que todas as organizações que trabalham na área estejam sempre ativos e em comunicação entre si para que a vítima tenha vários pontos de suporte, para que haja um clima de esperança, que ajude a vítima a seguir e a não retornar para o agressor", sugere o psicólogo.
De acordo com o relatório da situação da Justiça elaborado pelo CSMP, no ano judicial 2020/2021 registou-se "uma diminuição de pendência na ordem dos 18,2%", ano em que deram entrada 1.832 processos (-2,1% face a 2019/2020), durante o qual foram resolvidos 2.283 casos e para o qual tinham transitado, do ano judicial anterior, 2.476 processos.
Os crimes de VBG abrangem, genericamente, a violência física, na família ou no namoro, a violência doméstica, psicológica, emocional ou sexual, sendo as mulheres as principais vítimas.
Só no ano judicial de 2016/2017 deram entrada 2.592 processos por crimes de VBG, segundo o histórico disponibilizado no relatório do CSMP, que tem vindo a diminuir todos os anos desde então.
O mais recente caso do género a chocar a sociedade cabo-verdiana aconteceu em 20 de outubro, em Porto Novo, ilha de Santo Antão, em que um homem de 51 anos é acusado de ter ateado fogo à ex-namorada, depois de a ter espancado, tendo a mulher sido socorrida por populares.
O homem foi detido pela Polícia Nacional e apresentado ao Tribunal de Porto Novo, que decretou a sua prisão preventiva, enquanto decorre o processo.
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