A "Revolução da Dignidade" do inverno de 2014, que implicou a fuga do ex-Presidente Viktor Ianukovytch -- desde então exilado na Rússia e condenado em 2019 à revelia por um tribunal ucraniano a 13 anos de prisão --, sempre foi encarada pelo Kremlin, em particular por Vladimir Putin, como uma revolta "fabricada" destinada a afastar a Ucrânia da sua natural relação de afinidade, mesmo que dependente, com a Rússia, no contexto do "grande mundo eslavo" que também inclui bielorrussos.
O "Euromaidan", também assim designado porque o pretexto da revolta foi a recusa de Ianukovytch em promover um acordo de associação com a União Europeia e, em contrapartida, reforçar os laços com Moscovo -- em particular no campo económico e num país muito dependente do "grande irmão" eslavo --, nunca foi legitimado pelo Kremlin.
Mas foi dez anos antes, com o triunfo da designada "revolução laranja" em 2004, e com Putin já há quatro anos no poder, que as relações entre Moscovo e Kiev se começam a deteriorar.
O afastamento do "pai da independência" Leonid Kuchma, que cumpriu dois mandatos entre 1991 e 2005, promotor do início das privatizações que deram origem a um punhado de oligarcas próximos do círculo presidencial (como sucedeu em simultâneo na Rússia de Boris Ieltsin), e "inofensivo" para o Kremlin, fez soar os alarmes em Moscovo.
Em particular, a eleição em 2005, do Presidente "pró-ocidental" Viktor Yushchenko, que derrotou no escrutínio o então primeiro-ministro cessante Viktor Yanukovych, definido como "pró-russo".
Apesar de se ter mantido no poder, o mandato de Yushchenko -- alvo de alegado envenenamento em setembro de 2004 que lhe deixou marcas físicas -- , ficou assinalado pelos graves conflitos internos com a então primeira-ministra Yulia Tymoshenko, sob acusações de traições, mentiras e corrupção.
A vida política interna ucraniana, caracterizada por uma conceção pessoal da política em detrimento da ideologia, nunca conheceu a necessária tranquilidade desde a independência da ex-república soviética em 1991.
As "revoluções coloridas", em particular a ucraniana, passaram a ser consideradas por Moscovo como uma tentativa de o "ocidente" estender a sua influência, política e militar, para junto das suas fronteiras, e colocar em perigo a segurança do país.
"É ridículo dizer que o ocidente tentou financiar revoluções, porque a Rússia tentou financiar revoluções, também na Ucrânia, e os russos possuem muito 'soft-power' na Ucrânia, aplicaram muito mais dinheiro entre 2000 e 2010, influenciavam a opinião pública ucraniana através dos seus canais de televisão [entretanto banidos], faziam o que queriam. Tinham muito mais recursos que o ocidente", responde à Lusa Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla, situada na capital ucraniana.
No caso da Ucrânia, em 2003 começou a emergir o movimento Pora! (Chegou a hora), inspirado no movimento Otpor! (Resistência!), decisivo na mobilização que em outubro de 2000 afastou do poder o então Presidente da Sérvia Slobodan Milosevic. Quase em simultâneo, surgia na Bielorrússia o Zubr (Bisonte), e na Geórgia o Kmara! (Basta!).
O dinheiro para as formações, as viagens e o material destes movimentos provinha inicialmente da Westminster Foundation for Democracy [uma fundação britânica financiada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth] que pagava os salários dos coordenadores. Em declarações em 2019 à jornalista de investigação e realizadora sérvia Ana Otasevic, a ativista do Pora!, Yarna Yasynevych, indicou que recebia uma mensalidade desta instituição.
A US-Ukraine Foundation, uma campanha financiada pela Agência para o desenvolvimento internacional dos Estados Unidos (USaid) destinada a incentivar os jovens em eleições, ou a Freedom House, também participaram na formação e organização desta rede com somas avultadas. E na Ucrânia imprimiram 12.000 exemplares do folheto do norte-americano Gene Sharp "Da ditadura e da democracia" com a ajuda da Fundação Albert Einstein, que fundou, e traduzido para ucranianos pelos militantes do Pora!.
As primeiras ações, baseadas na "teoria da não violência" de Sharp, foram realizadas em março de 2004 em 16 regiões da do país, com os membros do Pora! a atuarem de forma muito discreta e sem emergir qualquer dirigente. E no contexto das presidenciais que elegeram Yushchenko, o movimento associou-se à campanha "Znayu!" (Eu sei!), lançada por Dmytro Potekhin, especialista em marketing e campanhas eleitorais, que trabalhava para a Fundação Soros.
A estratégia consistia em denunciar um poder "ilegítimo"; através da invenção de termos como "kuchismo" e que deveria ser associado a "medo, miséria, crime". E afastá-lo do poder através de movimentos de resistência antigovernamentais.
Ian Marovic, um ex-Otpor!, delineou a estratégia e foi o responsável pela ideia central da campanha: "Divulgar a imagem de pessoas com boa apresentação, capazes e ambiciosas e que lutam pelo futuro do país. Toda a comunicação provém destas características", indicou nas declarações a Ana Otasevic.
E no caso de derrota, foi explícito: "Apenas significa que a população não está preparada para mudanças democráticas (...) e nesse caso prosseguiremos o nosso trabalho".
Em 21 de novembro de 2004 a oposição ucraniana contestou o resultado da segunda volta das presidenciais que deram a vitória a Yanukovych. O Supremo tribunal anulou a votação e o candidato da oposição, Viktor Yushchenko, venceu num novo escrutínio.
Na ocasião, o Pora! já tinha cerca de 2.000 ativistas em Kiev, preparava-se para fomentar grandes manifestações em Maidan, mas a sua falta de experiência demoveu-os. Mas tinham ganho uma batalha.
Na perspetiva do filósofo e ativista ucraniano, também diretor analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org, a questão central reside em saber se a democracia mobiliza as pessoas e as faz descer às ruas.
"Em todos estes anos os russos foram incapazes de criar qualquer protesto similar. Por exemplo, diziam se necessário defender a língua russa, mas não havia protestos de massa para defender a língua russa em qualquer local do país", diz Yermolenko.
"O dinheiro não pode mobilizar as pessoas, se as pessoas não quiserem. A Rússia entende isso, está a perder influência da Ucrânia, a perder os corações e as mentes dos ucranianos, acontece há décadas, e a sua única opção é um ataque militar", acrescentou à Lusa.
Dez anos depois, a experiência acumulada pelos militantes do Pora! também servirá para impulsionar a "revolução de Maidan" contra Yanukovych, líder do "pró-russo" Partido das Regiões -- o maior partido do país entre 2006 e 2014 --, e Presidente desde 2010 após derrotar Yulia Tymoshenko na segunda volta. Na sequência da sua fuga em fevereiro de 2014, após o triunfo de Maidan, foi organizado novo escrutínio presidencial que elegeu Viktor Poroshenko, com uma clara abordagem "pró-ocidental".
Yarna Yasynevych, que depois se envolveu na engrenagem política, extraiu o balanço da "Revolução da Dignidade" de 2014, baseada nos ensinamentos dos mentores do Otpor! sérvio.
Nas suas declarações, entendeu que a "gestão da segurança face à polícia" foi eficaz em curtas campanhas não violentas, como sucedeu contra os regimes de Kuchma e Milosevic. No entanto, reconheceu que face a Vladimir Putin, e a Yanukovych, ajudado pelo líder do Kremlin, essa estratégia não resultava por se estar perante pessoas "com a experiência do KGB e que são mais hábeis, mais perigosas".
Atualmente, as estações de televisão e rádio russas estão proibidas na Ucrânia, mas ainda estão presentes e possuem alguma influência nas redes sociais.
"Mas mesmo quando a Rússia controlava o espaço informativo da Ucrânia, os maiores canais eram indiretamente controlados por russos. Mas não convenceram os ucranianos a optar por essa etiqueta russa, e inventaram esse mito das 'revoluções coloridas' porque pensam que se pode mobilizar as pessoas para a rua através de dinheiro, mas é ridículo", insistiu o académico e ativista.
"E mesmo que fosse verdade, podiam tê-lo feito mais cedo, mas porque não o fizeram? Porque não tinham hipótese, porque as pessoas pró-russas são passivas e não querem agir, e as pessoas pró-ativas são contra o Kremlin".
A forma de contrariar as "revoluções coloridas" foi o tema central de um recente encontro em Moscovo entre o ministro do Interior da Sérvia, Aleksandar Vulin, e Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança do Kremlin.
No final da reunião, que decorreu no início dezembro, os dois responsáveis concluíram que as 'revoluções coloridas' se tornaram num "instrumento político tradicional de determinados centros de poder e de países destinados a minar o Estado e promover a perda de soberania sob o pretexto de democratização", e assinalaram que "os países livres devem resistir a isso".
Para Yermolenko, o objetivo foi claro: "Estão a tentar impedir qualquer processo de democratização no leste da Europa porque atingiria a própria Rússia".
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