"Num dia temos casa, noutro dia não temos", resume, numa profunda tristeza, enquanto o polegar vai trocando fotos no ecrã de ruas desertas, e há mais perguntas do que respostas: "Como está a situação em Karkhiv?"
A ucraniana de 32 anos abandonou com a filha Lia, 16, uma das cidades mais fustigadas do seu país desde o início da invasão russa, porque, ao contrário de muitos familiares e amigos, conseguiram chegar à estação na segunda-feira e, 32 horas depois, lograram desembarcar em Przemysl, uma cidade fronteiriça no leste da Polónia, cinzenta, fria, mas em paz.
O seu comboio acabara de chegar com cerca de quatro mil passageiros, quase todos na mesma situação, no dia em que Alto Comissariado da ONU para os Refugiados atualizou para 836 mil o número de pessoas saídas do país em fuga da guerra para países vizinhos, cerca de metade para a Polónia.
Os refugiados enchem toda a gare 5 da estação de Przemysl ao fim da manhã de hoje e, à exceção de poucos idosos e alguns asiáticos, são quase todos mulheres, crianças e adolescentes, separados das suas famílias e dos homens que ficaram para trás a combater os russos.
"São tão corajosos!", comenta Hanna, continuando a exibir as suas fotos e descrevendo uma situação insustentável em Karkhiv, onde "não há nada para comer e muitas pessoas permanecem escondidas no subsolo, com muito medo".
Mais dois comboios estavam previstos para o mesmo dia, descarregando centenas de desamparados em silêncio, organizados em grupos de cerca de meia centena, por sua vez enquadrados por muitos agentes da polícia, militares e profissionais de saúde, e acolhidos por voluntários, que fornecem bebidas quentes e comida antes de serem encaminhados para o controlo de fronteira, e processados em pouco menos de dez minutos cada, até às 50 seguintes, depois mais outras 50... num desfile interminável.
Neste êxodo, as pessoas vêm um pouco de toda a parte na Ucrânia e quase todas estão carregadas com muito pouco, apenas o que tiveram tempo de reunir na saída apressada de suas casas, em pequenas malas, mochilas e até sacos de compras. "Algumas roupas, agasalhos quentes, documentos, água...", enumera Hanna, trocando a exibição de fotos pelo interior da sua pequena e única mochila. "E é tudo".
Mãe e filha têm planos de chegar ainda hoje a Cracóvia, na Polónia, onde têm apoio familiar, com a amiga Yulia, 29 anos, com quem partilharam toda a viagem desde Karkhiv, e o seu cão Pravda, numa legião de outra espécie de refugiados de dezenas de animais de estimação ao colo ou em caixas próprias e que também têm rações e até apoio veterinário à sua espera.
E, logo que todos abandonam o posto fronteiriço, há mais apoio de voluntários da sociedade civil e mais comida, roupas, sapatos, brinquedos e fraldas - antes de serem encaminhados para os seus destinos de acolhimento -, tal como, segundo Hanna, aconteceu ao longo das 32 horas sobre carris, em cada paragem na Ucrânia, até Przemysl, onde finalmente há algum alívio, mas também "trauma das explosões e incerteza do regresso a casa", numa viagem que chegou ao seu destino, mas sem fim à vista.
A Rússia lançou na madrugada de 24 de fevereiro uma ofensiva militar com três frentes na Ucrânia, com forças terrestres e bombardeamentos em várias cidades. As autoridades de Kiev contabilizaram, até ao momento, mais de 2.000 civis mortos, incluindo crianças, e, segundo a ONU, os ataques já provocaram mais de 100 mil deslocados e pelo menos 836 mil refugiados na Polónia, Hungria, Moldova e Roménia.
O Presidente russo, Vladimir Putin, justificou a "operação militar especial" na Ucrânia com a necessidade de desmilitarizar o país vizinho, afirmando ser a única maneira de a Rússia se defender e garantindo que a ofensiva durará o tempo necessário.
O ataque foi condenado pela generalidade da comunidade internacional, e a União Europeia e os Estados Unidos, entre outros, responderam com o envio de armas e munições para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas para isolar ainda mais Moscovo.
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