"A Rússia não tem problemas nenhuns em assinar tratados. E em violá-los"

Patrícia Daehnhardt, investigadora do IPRI-NOVA e conselheira no IDN, abordou o tema da guerra na Ucrânia nesta entrevista ao Notícias ao Minuto.

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Ema Gil Pires
29/03/2022 08:02 ‧ 29/03/2022 por Ema Gil Pires

Mundo

Rússia/Ucrânia

Dura já há mais de um mês a invasão russa sobre a Ucrânia. Aquilo que é descrito por Moscovo como sendo uma "missão militar especial" sobre um país que, outrora, fez parte da antiga União Soviética tem provocado um vasto rasto de destruição e um enorme fluxo migratório com destino a vários países da União Europeia. De acordo com os mais recentes dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), quase 3,8 milhões de pessoas já abandonaram o país, na sequência do conflito.

Uma invasão que, para além de suscitar alguns receios acerca da eventual utilização de armas químicas, biológicas e nucleares por parte da Rússia, tem motivado uma resposta de apoio ao povo invadido, bem como de condenação aos invasores, por partes das Alianças ocidentais. A NATO e a União Europeia têm liderado as movimentações neste âmbito, nomeadamente através de uma aplicação concertada de sanções a Moscovo e do fornecimento de material militar e humanitário a Kyiv.

O Notícias ao Minuto esteve à conversa com Patrícia Daehnhardt, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA) e conselheira no Instituto da Defesa Nacional (IDN), que nos ajudou a oferecer uma visão abrangente sobre o conflito e sobre as repercussões que o mesmo pode ter para os países ocidentais.

Contra as expectativas, a invasão não está a trazer os resultados que Moscovo teria pretendido

A situação de conflito na Ucrânia dura já há um mês... Que balanço podemos fazer da mesma até agora? Está a Rússia a conseguir os seus objetivos?

O que se pode dizer ao fim de um mês de conflito, em primeiro lugar, é que o conflito, esta guerra de agressão iniciada pela Rússia, está a durar mais tempo do que se pensava. A liderança russa muito provavelmente terá pensado que, em poucos dias, teria tomado controlo sobre o território da Ucrânia. Apesar de ser um território vasto, pensaria que pelo menos tivesse tomado o controlo daquelas que são as principais cidades, nomeadamente Mariupol, no Mar de Azov, Kharkiv, no norte da Ucrânia, e a própria capital, Kyiv. E isso não está a corresponder a essas expectativas. Este é um primeiro balanço - ou seja, contra as expectativas, a invasão não está a trazer os resultados que Moscovo teria pretendido. 

E que balanço consegue fazer da resposta que tem sido dada pela Ucrânia à invasão russa?

A resistência por parte da Ucrânia e, principalmente, a liderança do presidente Volodymyr  Zelensky tem sido algo inesperado. Mas também, de facto, algo que mostra uma grande capacidade não apenas de resistir ao agressor externo mas, simultaneamente, de contribuir para reforçar a identidade nacional ucraniana. Este político, que numa vida profissional anterior exerceu uma profissão que não tem nada a ver com aquela que ele exerce atualmente, conseguiu reunir à sua volta não apenas um leque de conselheiros muito competentes. Mas também, através das formas de comunicação que ele utiliza, os meios de comunicação televisivos e de social media, conseguiu, de facto, colocar a opinião pública mundial do seu lado. E, portanto, quando noutras situações de conflito pode existir alguma divisão ou dúvida relativamente ao papel de agressor versus o de agredido, aqui as frentes estão muito claramente delimitadas. Sabemos claramente quem é o agressor, sabemos quem é a vítima, e, portanto, toda a narrativa, todo o discurso político da Ucrânia é muito habilmente construído em função dessa divisão e de conseguir manter, a longo prazo, a opinião pública do seu lado. E a ideia do presidente Zelensky discursar, virtualmente, nos vários Parlamentos ou organizações internacionais, como vimos na NATO, é algo que obviamente aumenta a pressão, não apenas em termos do peso moral daquele que é o pedido dele - de ajuda à Ucrânia, de ajuda no fortalecimento das tropas ucranianas e de envio de armamento -, mas também no sentido de levar os decisores políticos, essencialmente europeus e dos próprios Estados Unidos, a tomarem medidas e decisões em tempo real útil muito rápido, pois quase diariamente nós temos novas decisões a serem tomadas.

Se em 2019 o presidente Emmanuel Macron fazia a acusação de que a NATO estaria em morte cerebral, nós vemos que, passados três anos, acontece precisamente o oposto

E será também possível fazer uma análise à forma como o Ocidente tem respondido face a este conflito armado?

Esse é o terceiro balanço que eu faria, da nossa perspetiva o mais relevante, que é a união na resposta por parte, tanto dos 27 países europeus, como dos 30 países membros da NATO. E que é, provavelmente, exatamente o oposto daquilo que o presidente russo teria pretendido - que era conceber uma agressão que iria dividir a resposta dos aliados, que iriam assumir posições divergentes. Pelo contrário, aquilo que estamos a ver há um mês, e no qual não vemos sinais de enfraquecimento, mas sim de fortalecimento, é uma coesão e determinação por parte tanto da Aliança Atlântica, como da União Europeia. Se em 2019 o presidente Emmanuel Macron fazia a acusação de que a NATO estaria em morte cerebral, nós vemos que, passados três anos, acontece precisamente o oposto. Como disse o presidente Joe Biden, a Aliança está unida, não apenas em termos retóricos, em termos de encontros e de reuniões, mas também na aplicação de vários pacotes de sanções por parte da União Europeia. Está, também, unida no envio de material militar para a Ucrânia - que não é feito a partir da NATO, mas que é feito a partir dos Estados-membros e individualmente, por causa da preocupação da NATO, enquanto aliança, não entrar em confronto direto ou indireto com a Rússia. E também existe o consenso de que a NATO não deve aplicar uma zona de exclusão aérea nem enviar uma possível força multinacional para a Ucrânia - porque isso seria interpretado por parte da Rússia como um ato de agressão. Se bem que, em prol da verdade, a liderança russa utiliza e deturpa os factos da forma que entende e, provavelmente, qualquer tipo de situação seria utilizado como pretexto para mudar esse curso e aumentar, inclusive, a ameaça do confronto biológico, químico ou nuclear.

Ameaça nuclear? Nós temos de nos preparar para tudo e é nesse sentido, também, que a NATO já veio anunciar a duplicação dos grupos de combate na frente leste

O Ocidente tem vindo a falar dessa possibilidade da Rússia vir a recorrer a armas químicas, biológicas ou nucleares durante esta guerra. São preocupações que têm fundamento?

Temos de levar muito a sério essa ameaça, essa possibilidade e esse discurso russo - que para além de deturpar a realidade, depois pode não cumprir com aquilo que afirma. O presidente russo disse que a Rússia não iria invadir a Ucrânia. Ora, vimos que foi uma mentira pegada e, portanto, sabemos que o discurso que dali vem não é um discurso em que possamos confiar. Ao mesmo tempo, quando há essa colocação em alerta das forças nucleares russas - quando, há poucos dias, o porta-voz do Kremlin disse que apenas consideraria a utilização de armamento nuclear em caso de ameaça existencial ao Estado russo -, isso, basicamente, quer dizer que eles estão a considerar esse uso. E, aliado a isto, quando o Kremlin faz a acusação de que a Ucrânia estaria a desenvolver, no seu território, armamento biológico e químico - o que nós sabemos que não é verdade -, o que temos de recear é que o Kremlin faça, precisamente, aquilo de que está a acusar o outro. 

Assim, em primeiro lugar, nós temos de levar essa ameaça muito a sério. Em segundo lugar, temos de o fazer até pelo arrastar da guerra. De uma perspetiva russa, está a demorar muito mais tempo do que aquilo que provavelmente teriam esperado e, portanto, isso aproxima a própria cúpula decisória da Rússia de uma posição de algum desespero, por não estar a conseguir cumprir os objetivos militares no terreno, e por estar a deparar-se com um conjunto de países altamente unidos na resposta e na aplicação de medidas em concreto. Se a situação é de um certo desespero, aquilo que a Rússia pode vir a perder torna-se cada vez menos relevante. Se há menos a perder, se é cada vez mais difícil evitar humilhação, então uma escalada, dessa perspetiva, pode tornar-se mais realista.

Em terceiro lugar, diria apenas que se a arma nuclear foi pensada, ao longo de todo o período da Guerra Fria e, no fundo, até hoje, como uma arma essencialmente política de dissuasão, o valor da arma nuclear era vista, assim, numa lógica de destruição mútua assegurada. Destruição mútua no sentido em que mesmo se alguém utilizasse o armamento nuclear em primeiro lugar, o opositor responderia. Essa é a doutrina da NATO, de uma resposta graduada, pensada de forma flexível, em função do ataque. Tendo capacidade nuclear nos seus Estados-membros, a NATO responderia com armamento nuclear igualmente e, consequentemente, a destruição seria assegurada mutuamente. Ninguém teria a ganhar, pois ambos os lados sucumbiriam a um ataque nuclear. O que nós estamos a ver agora, com o discurso russo, é que o peso político que tinha esta arma parece não aplicar-se neste momento. Nós temos de nos preparar para tudo e é nesse sentido, também, que a NATO já veio anunciar a duplicação dos grupos de combate na frente leste, com a criação de quatro novos grupos de combate na Roménia, na Bulgária, na Eslováquia e na Hungria.

Podemos esperar que a Rússia tente uma intervenção semelhante a esta noutros países europeus, nomeadamente os pertencentes à antiga União Soviética? Quem mais pode estar sob este perigo?

Certamente que é uma preocupação. Eu julgo que todos na Moldávia estão extremamente preocupados com a possibilidade de uma agressão por parte da Rússia. Mesmo independentemente do que se passa na Ucrânia. Penso que, em termos de avaliação da possibilidade de um ataque, tal não se coloca apenas na sequência de uma hipotética vitória russa sobre a Ucrânia. Diria que, independentemente disso, a Moldávia deve estar, e já está de certeza, extremamente preocupada com a possibilidade de um ataque. Mas também a Suécia e, certamente, a Finlândia. Eu julgo que a Finlândia, a Moldávia e os Estados bálticos - a Estónia, por exemplo - são talvez os Estados que mais preocupados estarão neste momento. A Polónia também - embora, para todos os efeitos, seja um Estado maior, logo seria um adversário com mais capacidade. Independentemente disso, acho que não podemos pôr nenhum cenário de parte - tanto o cenário de utilização de armas nucleares táticas, como de utilização de armas biológicas e químicas, como o cenário de uma agressão militar a um ou mais do que um Estado, entre aqueles que fazem fronteira e que estejam pertençam àquela zona. 

Relativamente à Moldávia, nós sabemos já que os russos querem tomar Odessa. Julgando que Mariupol esteja já bastante 'nas mãos' dos russos, o que quer dizer que o Mar de Azov está já relativamente fechado, e caso consigam avançar sobre Odessa, isso implicaria que o acesso da Ucrânia ao Mar Negro estaria praticamente vedado. Logo, a via marítima de fornecimento de importações e exportações da Ucrânia - e julgo que cerca de 50% passa pela via marítima, no que toca às importações ucranianas - estaria fechada. Da perspetiva da Ucrânia, tal seria gravíssimo. E se Odessa caísse - e eu espero que haja um reforço, por parte dos países membros da NATO, para evitarem a todo o custo que isso aconteça -, eu acho que aí a Moldávia estaria, ainda mais, na mira da Rússia.

Se virmos que a Rússia bombardeia um teatro em Mariupol, que bombardeia indiscriminadamente hospitais, escolas e alvos civis, então custa muito a acreditar que estas conversações não sejam outra coisa do que uma forma da Rússia ganhar tempo e iludir o Ocidente e a Ucrânia

Qual é o estado das negociações entre Kyiv e Moscovo nesta altura? Podemos esperar das mesmas alguns resultados que contribuam efetivamente para a resolução deste conflito? 

À priori e teoricamente, acho que é importante que existam sempre canais de diálogo, mesmo numa situação de guerra. É importante que esses canais não sejam completamente interrompidos. Agora, relativamente a esta guerra em concreto, eu sou extremamente cética, porque nem um mínimo de respeito pelos Direitos Humanos é aqui tido em conta. Os representantes reúnem-se, seja na Turquia ou na fronteira junto à Bielorrússia, como tem acontecido nas últimas semanas - mas, no terreno, nada disto se traduz num mínimo de respeito, que passaria pela execução em segurança dos corredores humanitários. E se virmos que a Rússia bombardeia um teatro em Mariupol, que bombardeia indiscriminadamente hospitais, escolas e alvos civis, então custa muito a acreditar que estas conversações não sejam outra coisa do que uma forma da Rússia ganhar tempo e iludir o Ocidente e a Ucrânia. 

Acho que tal ainda demorará algum tempo e, independentemente daquilo que venha a ser decidido e, porventura, venha a ser assinado, não temos quaisquer garantias - a Rússia já deu provas de não dar garantia de cumprimento daquilo que assina no papel. A própria União Soviética foi signatária da Ata Final de Helsínquia, em 1975, que estipulava a não violação da revisão de fronteiras por via da força. Foi também signatária da Carta de Paris, em 1990. Depois, a Rússia pós-soviética assinou o Memorando de Budapeste, precisamente sobre a segurança territorial da Ucrânia e o fim da Ucrânia enquanto Estado com armamento nuclear. Depois veio o Ato Fundador NATO-Rússia, em 1997, que no fundo reconhece o alargamento da NATO à Hungria, Polónia e República Checa, o qual a Rússia assina. A Rússia não tem problemas absolutamente nenhuns em assinar Tratados Internacionais, tal como também não tem problemas em, posteriormente, violá-los. 

Acho que até mesmo no dia em que se assinar um cessar-fogo e um tratado, vamos ficar sempre com alguma reticência relativamente à seriedade desta atual liderança da Rússia quanto ao cumprimento daquilo que, porventura, venha a assinar. 

Entre as grandes consequências desta guerra, encontra-se claramente o fluxo de refugiados com destino a vários países da União Europeia. Como pode o bloco europeu trabalhar para dar a melhor resposta possível a esta realidade?

O melhor que os países europeus podem fazer, e têm feito, é atuarem de uma forma coordenada, concertada. A atribuição da chamada Diretiva de Proteção Temporária aos ucranianos, que podem entrar sem visto nos países membros da União Europeia, foi um primeiro passo para agilizar todo o processo. E depois, a partir daí, garantir que seja célere o processo de atribuição dos números de Segurança Social e de inserção destes refugiados, em parte altamente qualificados profissionalmente. 

Mas, independentemente disto, conseguir providenciar-lhes um apoio em termos de saúde, de educação e de inserção no mercado de trabalho. E, nesse sentido, eu acho que os países avançam individualmente - e Portugal também já anunciou medidas nesse sentido. Porém, ao mesmo tempo, também o fazem enquanto União Europeia - o que não apenas dá uma estrutura técnica, de apoio, mas também uma estrutura de apoio psicológico e moral. E eu acho que isso também é um elemento importante de que, por vezes, não falamos. 

Estamos a receber 3,5 milhões de pessoas, metade delas crianças, que vêm traumatizadas. É inevitável, ninguém fica indiferente a esta tragédia humana. Consequentemente, imagino que os ucranianos, ao verem a própria resposta da União Europeia, a forma como os europeus estão a responder enquanto instituição, isso também lhes dá algum apoio para além daquele que a assistência humanitária terá ainda de oferecer - não apenas nas próximas semanas e nos próximos meses, mas durante anos. Isto porque há várias cidades tão destruídas na Ucrânia que tal levará anos em termos de reconstrução e, portanto, o apoio é fundamental. É um modo de proceder que está, felizmente, na matriz civilizacional europeia, que respeita os Direitos Humanos e o Estado de Direito.

Zona de exclusão aérea? Caso a NATO decidisse nesse sentido, isso abriria uma frente de conflito direto potencial com a Rússia. Isso não é do interesse de ninguém

A resposta que tem sido dada pelos países ocidentais a este conflito, tanto a nível de apoio prestado à Ucrânia, como da condenação da Rússia, tem sido a mais adequada? Como analisa, nomeadamente, a intervenção da NATO e da União Europeia neste sentido?

Podemos sempre exigir mais e esperar que os Governos façam mais. Mas eu diria que as respostas que foram dadas por parte tanto da União Europeia como da NATO trataram-se de respostas concertadas. Ouvi dizer de mais do que uma pessoa que os Estados Unidos atuam em extrema concertação com os parceiros europeus - falam várias vezes diariamente, portanto esse é um primeiro ponto, da existência de uma concertação muito estreita entre os Estados Unidos e os parceiros europeus. Desde o primeiro momento, a condenação da Rússia foi absolutamente clara, da parte de todos os Estados-membros das duas instituições (UE e NATO). Não houve aqui margem nenhuma para dúvidas. E não houve apenas uma condenação em termos de discurso - mas também, desde logo, o anúncio de envio de armamento, de apoio em termos de equipamento e de envio de apoio financeiro por parte dos Estados-membros da NATO à Ucrânia. Ao mesmo tempo que houve uma condenação retórica da Rússia, existiu a aplicação de um conjunto de sanções - como a exclusão da Rússia do sistema SWIFT, o fecho do espaço aéreo, o congelamento de bens ou do acesso do Banco Central russo às reservas, etc. Eu diria que, de uma forma bastante ágil, concertada e coordenada, as respostas têm sido adequadas - perante aquilo que ninguém pensava ser possível, na terceira década do século XXI, uma guerra no continente europeu. 

Na perspetiva de quem está em Kyiv e na Ucrânia, compreende-se perfeitamente porque é que o presidente Volodymyr Zelensky pede desesperadamente a aplicação de uma zona de exclusão aérea. Mas caso a NATO decidisse nesse sentido, isso abriria uma frente de conflito direto potencial com a Rússia. Isso não é do interesse de ninguém, nem dos países membros da NATO, nem dos países da União Europeia, nem inclusive da própria Ucrânia. Porque, se esse fosse o caso, os países europeus reconcentrariam os seus esforços e as suas preocupações sobre os seus próprios territórios. Enquanto os países europeus não forem parte do conflito, têm a capacidade de responder e aplicar sanções à Rússia, bem como de responder em termos de apoio à Ucrânia. Mas também, inclusive, de receber esses milhões de refugiados que estão a entrar nos seus países. 

No fim das contas, as democracias europeias e mundiais têm de ter sempre em conta as opiniões públicas. E há que gerir, portanto, a questão das expectativas e do desgaste. Se, porventura, pensarmos no perigo que a aplicação de uma zona de exclusão aérea criaria para os países que fazem fronteira com a Ucrânia, isso alteraria, também, a própria disposição da opinião pública. É, portanto, uma resposta de prudência - é uma resposta que, aliás, o presidente Zelensky já não reivindicou quando fez o seu discurso perante os Estados-membros da NATO e, claro, é uma forma de conter o conflito ao território da Ucrânia. É muito doloroso assistirmos ao decorrer desta guerra no território da Ucrânia, mas é uma forma de evitar que o conflito escale e que ocorra uma escalada militar sem precedentes.

E que consequências têm a própria guerra para a União Europeia e para a NATO? São mais os desafios ou as oportunidades? 

Certamente estamos perante um desafio sem precedentes. São desafios que, diariamente, levam os decisores europeus, norte-americanos e canadianos, bem como quem se aliar, a definir moldes de resposta - tanto de apoio à Ucrânia, como de resposta à agressão por parte da Rússia. Não deixa, portanto, de ser um desafio constante e, mais uma vez, a possibilidade de um conflito nuclear ou da utilização de armamento biológico e químico é mais do que um desafio, é uma ameaça. Nós temos claramente a continuidade de um desafio, uma ameaça real e militar, no terreno da Ucrânia, mas também a possibilidade desta saltar para outros lados. Aqui temos também, portanto, um nível de ameaça. 

A Alemanha está a assumir o papel de se tornar num ator militar, em conjunto com a França

E a nível de oportunidades? Pergunto isto porque vemos já alguns países europeus, como é o caso da Alemanha, a começarem já a reforçar o seu investimento militar e as suas políticas de Segurança e Defesa...

Temos, de facto, uma situação em que os Estados europeus estão a repensar e a redefinir as suas opções estratégicas em termos de política de Segurança e Defesa. Há o caso da Alemanha e, claro está, de outros Estados. Mas a Alemanha, tendo o peso económico e político que tem, é um catalisador para que outros Estados sigam um caminho semelhante - mas que, no fundo, os une no reconhecimento de que, nos últimos 30 anos, a política de Defesa tem sido, de certa forma, descurada por parte dos governos europeus. E porquê? Porque nós estávamos ainda a viver o dividendo da paz, o fim da Guerra Fria e do confronto entre Estados Unidos e a União Soviética, sem que tivesse ocorrido uma guerra hegemónica. Consequentemente, viveu-se naquela 'bolha' ou naquela zona de conforto onde se pensava que gastar 1,2%, 1,3% ou 1,4% do PIB em despesas militares seria suficiente. Claro que este conflito foi, como se diz em inglês, um 'awakening', um acordar de sobressalto para uma realidade totalmente diferente. Recuperou-se aquilo que tinha ficado estipulado na Cimeira da NATO do País de Gales em 2014 - onde os Estados, na sequência da anexação da Crimeia e da guerra híbrida no Donbass, no leste da Ucrânia, tomou-se a decisão de que todos os Estados-membros teriam de atingir os 2% do seu PIB no reforço das suas defesas. E isso aconteceu apenas, na altura, em 10 dos 30 Estados-membros da NATO.

Três dias depois do início da guerra na Ucrânia, o chanceler Scholz informou que a Alemanha vai passar a gastar mais do que os tais 2% e que vai constituir, para o efeito dessa redefinição da sua política de Defesa, um fundo especial de 100 mil milhões de euros, a gastar até 2026 e cujos contornos ainda não estão plenamente definidos. Tal mostra que a Alemanha decidiu agora atribuir à componente da sua política de Defesa um peso que deverá ser semelhante às outras políticas setoriais do país, o que tem implicações para o continente europeu no seu todo. Eles dizem que não se trata de um rearmamento, mas sim de um reequipamento e uma modernização das Forças Armadas alemãs, que estão bastante subdesenvolvidas, na realidade. A Alemanha anunciou, agora, a compra de 35 aviões-caça F-35, a substituição dos caças-bombardeiros Tornado pelos Eurofighter e a compra de 'drones' armados. Portanto, isto é uma revolução. É isso que é importante perceber no contexto da Segurança e Defesa europeia e transatlântica, que a Alemanha está a assumir o papel de se tornar num ator militar, em conjunto com a França. Claro que isso vai gerar um desequilíbrio, é evidente.

Quando me pergunta se é uma questão de oportunidade para a NATO e para a União Europeia, no âmbito europeu foi aprovada esta semana a Bússola Estratégica. Houve aqui um reforço no discurso de identificar a Rússia como ameaça, e foi aprovada a constituição de uma força de reação rápida, de cerca de 5.000 homens. Ainda assim, convenhamos que a defesa da Europa está nas mãos da NATO. Em termos de consequência para a Aliança Atlântica, diria que o conflito está a revitalizar a NATO. Esta revitalização já estava em curso desde que o presidente Biden se tornou presidente dos Estados Unidos, em janeiro do ano passado, ao fim de quatro anos problemáticos para a Aliança Atlântica. E, portanto, o novo conceito estratégico que a NATO vai adotar em junho, na Cimeira de Madrid, já previa esta revitalização e esta maior coesão. Claramente a guerra veio reforçar esta dimensão, onde a NATO se torna mais importante do que já era e onde o seu 'core business', de dissuasão e de defesa, será reforçado. Ou seja, a defesa coletiva de todos os Estados-membros será reforçada. 

Tem-se falado muito sobre a possibilidade de adesão da Ucrânia à NATO e à própria União Europeia. Considerando as exigências da Rússia e os desafios que este desafio têm colocado às próprias instituições ocidentais, podemos esperar que essa adesão possa mesmo vir a acontecer, a médio ou longo prazo?

Eu diria que, a médio prazo, não. Relativamente a longo prazo, na Cimeira de Versalhes, realizada há duas semanas, a declaração final afirma que a Ucrânia faz parte da família europeia. Isto quer dizer tudo e não quer dizer nada. Na Cimeira da NATO de Bucareste, em 2008, também foi dito algo semelhante - que, no futuro, a Ucrânia e a Geórgia poderão vir a aderir à NATO, embora não tenha sido iniciado o processo de 'Membership Action Plan'. No fundo, persiste aqui alguma ambiguidade tanto da parte da NATO, como da União Europeia - pois não dizem nem 'sim', nem 'não'. Isto não contribui muito para a clarificação estratégica da situação da Ucrânia e da Geórgia. 

É preciso não esquecer que a questão da adesão da Ucrânia à NATO não estava em cima da mesa. É um dos pretextos que o presidente russo utilizou para iniciar a invasão, mas ninguém estava a discutir a adesão da Ucrânia à NATO. Eu não perspetivo, neste momento, que essa adesão possa acontecer formalmente.

Dito isto, julgo que é possível perspetivar-se um aprofundamento bilateral muito forte com a Ucrânia. Tanto da parte da União Europeia, até em termos de parceria de comércio, como por parte da NATO. E nós já vimos que, em caso de conflito, é isso que está a acontecer. Ou seja, a NATO não intervém, não se aplica o Artigo 5.º, mas há um fornecimento de armamento e de apoio financeiro, isso está a acontecer. Portanto, julgo que é um pouco cedo para dar uma resposta definitiva e eu sou algo cética relativamente à adesão plena da Ucrânia a estas duas instituições. Mas, ao mesmo tempo, perspetivo que face a esta situação de guerra, irá haver um novo tipo de relacionamento bilateral com a Ucrânia que lhe permita aumentar o leque de Segurança e de apoio.

Leia Também: Madrid anuncia "plano de resposta" ao conflito no valor de 16.000 milhões

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