Apesar da experiência da anterior presidência, em 2008, durante a qual a liderança francesa já fora 'brindada' com uma intervenção militar russa numa antiga república soviética, a Geórgia, além da crise financeira que começou nesse ano, dificilmente Paris poderia imaginar um semestre mais atribulado quando assumiu o leme da UE no início do ano para aquela que se pensava ser a primeira presidência pós-crise da pandemia da covid-19.
Não estando o alargamento da União entre as prioridades da presidência francesa -- ou de qualquer outra que a antecedeu nos últimos anos, face à óbvia falta de 'apetite' político, apesar das reiteradas promessas de perspetiva europeia para os países dos Balcãs Ocidentais -, ninguém prognosticaria no início deste ano que, em junho, os 27 atribuíssem o estatuto de países candidatos à adesão à Ucrânia e Moldova, um dos muitos efeitos da guerra lançada pela Rússia em 24 de fevereiro.
O Presidente Emmanuel Macron já sabia à partida que, além de presidir ao Conselho da UE, teria de lidar com dois atos eleitorais decisivos internamente -- na prática, quatro, atendendo às duas voltas de cada sufrágio -, e que acabaram por ter um sabor amargo, pois se conseguiu ser reconduzido no Eliseu ao voltar a bater a candidata da extrema-direita francesa Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais de abril, as eleições legislativas de junho ditaram o fim da sua maioria absoluta e deixam antever um mandato difícil, que também o fragilizam um pouco na cena europeia.
Inesperados foram os desenvolvimentos na cena internacional, com a particularidade de a agressão militar russa à Ucrânia ter desencadeado avanços significativos da UE em vários domínios, desde a Defesa à política energética e migrações, ainda que pondo um travão na recuperação económica a que se assistia na Europa e motivando uma inflação sem precedentes na zona euro.
A resposta unida dos 27 à invasão russa da Ucrânia constitui de resto o maior 'feito' do semestre, destacando-se a adoção de seis pacotes de sanções sem precedentes dirigidos a Moscovo -- incluindo sobre importações de carvão e petróleo russo, o que motivou uma nova estratégia energética do bloco europeu em busca da sua autonomia -, a inédita decisão da UE de financiar a aquisição e entrega a um país terceiro de armas, e a solidariedade no acolhimento de milhões de refugiados ucranianos.
Ainda que a presidência francesa tenha tido um papel importante em todos estes dossiês, Macron, que procurava neste semestre afirmar a França como líder político do projeto europeu -- aproveitando a saída de cena da ex-chanceler alemã Angela Merkel -, não saiu necessariamente bem na 'fotografia'.
Tomando a iniciativa de tentar intermediar uma solução para a tensão provocada pela concentração de dezenas de milhares de forças e meios militares russos junto às fronteiras com a Ucrânia, Macron deslocou-se no início de fevereiro a Moscovo para se reunir com Putin, mas dessa reunião fica apenas a memória da famosa mesa longa que separava os dois líderes.
Nesse mesmo mês, Moscovo avançou e invadiu o país vizinho, no que constituiu um óbvio fracasso do Presidente francês.
Emmanuel Macron voltou a ser criticado quando, mais recentemente, já com o conflito em curso, advogou que não se deve "humilhar" a Rússia, e, apesar das suas públicas reticências ao processo de adesão da Ucrânia à UE, acabaria por, já este mês, deslocar-se a Kiev, juntamente com o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o chefe de Governo italiano, Mario Draghi, para dar o seu apoio à atribuição do estatuto de candidato à Ucrânia.
Apesar de 'sacudida' pelo regresso da guerra à Europa, a presidência francesa obteve vitórias em vários dossiês legislativos importantes, com destaque para os acordos fechados em torno da Lei dos Mercados Digitais - que regulará a concorrência nos mercados digitais, prevendo pesadas multas para as plataformas que não cumprirem -- e a Lei dos Serviços Digitais, que obrigará as plataformas 'online' a moderar os conteúdos e a tornar os algoritmos mais transparentes, sob risco de pagamento de multas milionárias.
Entre outras conquistas da presidência semestral francesa, contam-se a reforma do mercado europeu de carbono, o compromisso em torno da diretiva sobre salários mínimos justos, e o acordo em torno de um mecanismo de solidariedade voluntário para com os países do Mediterrâneo no acolhimento de migrantes, entendido como um primeiro passo na reforma da política migratória e de asilo europeia.
Do lado oposto, entre os dossiês legislativos que Paris considerava prioritários e contava fechar durante o seu semestre, o maior fracasso foi a falta de um acordo entre os 27 sobre a transposição para o direito europeu do compromisso alcançado ao nível da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) relativamente a um imposto mínimo para as multinacionais, para entrar em vigor em 2023.
Depois de ultrapassado enfim o veto polaco -- que Varsóvia levantou apenas quando foi aprovado o seu Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) -, a presidência francesa viu-se confrontada com um inesperado bloqueio de última hora da Hungria, outro país cujo PRR não recebeu ainda luz verde face às (muitas) inquietações de Bruxelas com o Estado de direito no país.
Este veto alimentou ainda mais o debate sobre as regras da UE e designadamente a necessidade de ser abandonada a necessária unanimidade na aprovação de decisões nalgumas áreas, designadamente de política externa, para que o bloco não fique refém de um só país, e muitas vezes por motivações completamente estranhas aos assuntos em questão.
Contudo, e apesar da ideia de uma "comunidade política europeia" lançada por Macron durante o semestre, a reflexão sobre a gestão da UE, sobretudo se o bloco vier a alargar-se, e eventuais alterações aos Tratados passará para as próximas presidências, a começar pela checa, cabendo a Praga - que sucede a Paris na liderança semestral do Conselho da UE já na sexta-feira - dar seguimento às ideias avançadas por ocasião da Conferência sobre o Futuro da Europa, iniciada durante a presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2021, e concluída durante a francesa.
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