"A linguagem do documento não vincula ninguém a nada, incluindo Pequim", observou Alexander Gabuev, especialista em política externa russa do Carnegie Endowment for International Peace, um grupo de reflexão ('think tank') com sede em Washington, numa resposta escrita à Lusa.
"Esta é uma característica da posição chinesa sobre a guerra na Ucrânia", indicou.
O ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, defendeu na terça-feira que o país fez uma "avaliação independente" sobre o conflito e que está empenhado na paz. "Nós publicamos um documento com propostas para a paz", lembrou.
No plano de Pequim, difundido no final de fevereiro, destaca-se a importância de "respeitar a soberania de todos os países", numa referência à Ucrânia, mas apela-se também para o fim da "mentalidade da Guerra Fria", numa crítica implícita ao alargamento da NATO. A China pediu ainda o fim das sanções ocidentais impostas à Rússia.
Tratam-se de posições que a China tem defendido desde o início da guerra, mas que não resolvem as disputas territoriais entre Kyiv e Moscovo ou oferecem garantias de segurança à Ucrânia, salientou Alexander Gabuev.
"Aqueles que esperavam um roteiro para a paz certamente terão ficado desiludidos", notou o analista. "No entanto, os autores do documento não têm essa ambição e certamente não pretendem que Pequim se envolva profundamente no conflito", disse. Em causa, estão os interesses "variados e complexos" do país, acrescentou.
Pequim é sensível ao princípio da integridade territorial, face à questão de Taiwan e a movimentos separatistas dentro do seu território, mas a relação estratégica com a Rússia também é de "grande importância" para o país asiático, lembrou o analista.
As duas nações partilham uma fronteira com mais de quatro mil quilómetros de distância e Moscovo é um importante fornecedor de petróleo e gás para a China. Pequim considera ainda a parceria com o país vizinho fundamental para contrapor a ordem democrática liberal, numa altura em que a relação com os Estados Unidos atravessa também um período de grande tensão.
As relações com o Ocidente, porém, continuam a ser "cruciais" para a prosperidade económica e o avanço tecnológico da China, ressalvou Gabuev. "Pequim não deseja acelerar a inevitável rutura com os Estados Unidos e os países aliados e perder, assim, o acesso à tecnologia, aos mercados e às praças financeiras ocidentais", observou.
O analista lembrou que estas posições tornaram a China, "ainda que involuntariamente", numa das "principais beneficiárias" da guerra, à medida que a Rússia foi reduzida ao estatuto de "parceiro minoritário" de Pequim. "A coordenação [entre China e Rússia] é cada vez maior e cada vez mais realizada nos termos de Pequim", notou.
O conflito obrigou também os Estados Unidos a desviar recursos e atenção da região da Ásia-Pacífico, onde, nos últimos anos, promoveu parcerias e alianças, visando conter a ascensão da China na região.
"Mas, limitar-se a ser mera espetadora está a tornar-se cada vez mais difícil para a China", que tem sido alvo de críticas intensas, inclusive da Europa, "cujo crescente alinhamento com os EUA é extremamente preocupante" para Pequim, frisou Gabuev.
"A China tentou com o plano de paz refutar as críticas do Ocidente e reforçar a imagem como uma potência responsável aos olhos dos países em desenvolvimento", argumentou. "A China passou a ter um argumento da próxima vez que for acusada de cumplicidade silenciosa na agressão de [o Presidente russo, Vladimir] Putin", descreveu.
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