Na reunião convocada pela Rússia para debater o "multilateralismo efetivo", Guterres sentou-se ao lado de Lavrov e criticou abertamente a invasão da Ucrânia por Moscovo, classificando-a de "violação da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e do direito internacional", que está a causar enorme sofrimento e devastação ao país e ao seu povo, além de abalar fortemente a economia mundial.
O ex-primeiro-ministro português reforçou que a cooperação multilateral é o "coração pulsante das Nações Unidas", assim como a "sua razão de ser e a sua visão orientadora".
De acordo com Guterres, o sistema multilateral manteve-se unido e obteve "alguns sucessos notáveis" nos últimos 78 anos, com as ferramentas e mecanismos estabelecidos pela Carta da ONU a desempenharam o seu papel "na prevenção de uma terceira guerra mundial".
Contudo, a situação atual "é mais perigosa", observou o líder das Nações Unidas, frisando que o mundo enfrenta crises sem precedentes e interligadas, colocando o sistema multilateral sob a maior pressão desde que a ONU foi criada.
"As tensões entre as grandes potências estão em máximos históricos. Assim como os riscos de conflito, por infortúnio ou erro de cálculo", disse Guterres, apontado alguns dos conflitos mais desafiadores da atualidade, desde a Ucrânia até ao Sahel.
"Precisamos de fazer melhor, ir mais longe e trabalhar mais rápido. Isso deve começar por os países reafirmarem as suas obrigações ao abrigo da Carta das Nações Unidas, colocando os direitos humanos e a dignidade em primeiro lugar e dando prioridade à prevenção de conflitos e crises", apelou.
Guterres dirigiu ainda o foco para os membros do Conselho de Segurança, particularmente aqueles que gozam do privilégio de servir permanentemente - Rússia, China, Estados Unidos, França e Reino Unido - e que "têm uma responsabilidade particular de fazer o multilateralismo funcionar, ao invés de contribuir para o seu desmembramento".
Logo após o secretário-geral terminar a sua declaração, foi a vez de Lavrov, cujo país invadiu a Ucrânia em fevereiro do ano passado, fazer duros ataques à "minoria ocidental", principalmente aos Estados Unidos e seus aliados, que acusou de terem colocado o mundo numa conjuntura extremamente perigosa.
"Como aconteceu durante a Guerra Fria, chegamos a um limiar perigoso, talvez ainda mais perigoso", disse Lavrov, que acusou as potências ocidentais de "destruírem os benefícios da globalização" com uma "agressão económica" e de tentarem impor as suas políticas ao resto do mundo, através da força.
"Ninguém deu permissão à minoria ocidental para falar em nome de toda a humanidade", insistiu o chefe da diplomacia russa, que presidiu a esta reunião do Conselho de Segurança, no mês em que a Rússia assume a presidência rotativa do órgão.
De acordo com Lavrov, o sistema das Nações Unidas está a passar por uma crise profunda, devido ao "desejo de alguns membros de substituir o direito internacional e a Carta das Nações Unidas por uma certa ordem baseada em regras que não foram objeto de negociações internacionais transparentes".
Desde a invasão da Ucrânia, a Rússia foi instada em resoluções da Assembleia Geral da ONU, aprovadas por largas maiorias e sem caráter vinculativo, a retirar as suas tropas do país vizinho.
Num discurso que se estendeu por mais de 20 minutos, Lavrov reiterou as mensagens habituais de Moscovo sobre a situação na Ucrânia, mas procurou sobretudo criticar o que identificou como tentativas do Ocidente de controlar o mundo e travar o "estabelecimento de novos centros de desenvolvimento independentes" na América Latina, Ásia e outras regiões.
O ministro russo colocou os Estados Unidos e seus aliados na Europa e outros continentes no mesmo patamar, acusou-os de sofrerem de um complexo de superioridade, para o qual deu como exemplo um discurso do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, em que comparou a Europa a um "jardim" e o resto do mundo a uma "selva".
"A chave do sucesso é o esforço conjunto, o abandono de pretensões de excecionalismo e, repito, o respeito pela igualdade soberana dos Estados", defendeu ainda Lavrov.
Por sua vez, a embaixadora norte-americana junto da ONU, Linda Thomas-Greenfield, leu a Carta da ONU ao corpo diplomático presente na reunião, sobre valores e princípios como a defesa da paz, abstenção do uso da força e respeito pela integridade territorial, sublinhando que, "mais do que nunca, o mundo precisa de uma ONU e de um multilateralismo eficazes".
"No entanto, quando o mundo mais precisava da ONU, mergulhamos numa crise de confiança. O organizador hipócrita da reunião de hoje, a Rússia, invadiu a sua vizinha Ucrânia e atingiu o cerne da carta da ONU e todos os valores que prezamos", disse a embaixadora.
"A Rússia simplesmente quer redesenhar as fronteiras internacionais à força, violando esta mesma carta da ONU. E isso vai contra tudo o que esta instituição defende. (...) Amanhã pode ser outro país, outra pequena nação invadida pelo seu vizinho maior", acrescentou.
A diplomata apelou ainda à libertação de cidadãos norte-americanos detidos na Rússia, incluindo o jornalista Evan Gershkovich.
"Peço, agora, que liberte Paul Whelan e Evan Gershkovich imediatamente. Deixe Paul e Evan irem para casa. Para acabar com essa prática bárbara de uma vez por todas", disse Linda Thomas-Greenfield, desafiando Lavrov a "olhar no olhos" Elizabeth Whelan, irmã de Paul - detido por anos na Rússia -, presente na tribuna do Conselho de Segurança.
A Rússia, um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e com poder de veto, assumiu este mês a presidência rotativa do órgão, que tem capacidade de fazer aprovar resoluções com caráter vinculativo.
Lavrov viajou para Nova Iorque no âmbito da presidência russa do Conselho de Segurança e presidirá ainda a um debate sobre o sobre o Médio Oriente, na terça-feira, além da reunião de hoje sobre multilateralismo.
O chefe da diplomacia russa aproveitará ainda a oportunidade para discutir diretamente com o secretário-geral da ONU, António Guterres, a continuidade do acordo dos cereais do Mar Negro e o descontentamento de Moscovo com a falta de cumprimento de certos aspetos da iniciativa.
[Notícia atualizada às 17h56]
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