Vítimas de Pinochet descrevem horror das ditaduras do Brasil e do Chile

Brasileiros que estiveram presos no Estádio Nacional do Chile, transformado em campo de concentração há 50 anos, descrevem à Lusa o horror que unia as ditaduras chilena e brasileira e como foram perseguidos e torturados naquele país.

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Lusa
19/09/2023 10:39 ‧ 19/09/2023 por Lusa

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Pinochet

"Num determinado dia, vieram os agentes do Serviço de Inteligência do Brasil. Fomos levados, cerca de 55 brasileiros, ao centro do gramado do estádio. Os agentes tinham as nossas fichas trazidas do Brasil para interrogatórios. Pinochet tinha declarado guerra e nós éramos os prisioneiros de guerra", relata à Lusa Nielsen de Paula Pires, hoje professor emérito da Universidade de Brasília, então estudante de sociologia no Chile.

"Fomos interrogados sob a presença de polícias e militares brasileiros. Fomos violenta e gratuitamente agredidos o tempo todo", acrescenta.

O coletivo 'Vive Chile', formado por 145 ex-exilados brasileiros, está de visita a Santiago por ocasião dos 50 anos do golpe de Estado de Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Nielsen é um deles e revive como, apenas cinco dias depois do golpe, foi preso pelo simples facto de ser estrangeiro.

"Fui preso no quarto que alugava. O dono do apartamento denunciou-me. Eu não militava. Apenas estudava. O Exército invadiu o meu quarto na madrugada do dia 16. Procuravam armas. Não havia nenhuma. Mas bateram-me muito", lembra Nielsen.

Ainda no dia 11 de setembro, as rádios reproduziam boletins, chamados de "bandos", indicando como a população deveria proceder a partir daquele momento sob o comando do general Augusto Pinochet, após bombardear o Palácio La Moneda, levando o Presidente Salvador Allende ao suicídio para não se render.

Logo no primeiro "bando", dos 10 estrangeiros intimados a comparecer na Polícia, três eram brasileiros. Os chilenos eram encorajados a denunciarem os vizinhos estrangeiros.

Havia 13 mil estrangeiros exilados no Chile, refugiados de regimes autoritários pela região. Desses, a maioria, cerca de quatro mil, eram brasileiros e incluíam nomes como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Celso Furtado, Francisco Weffort, Marco Aurélio Garcia, César Maia, Maria Conceição Tavares, entre outros.

O interrogatório exigia detalhes sobre a chamada 'Caixinha', uma associação de apoio aos exilados brasileiros que chegavam ao Chile sem dinheiro, e que era financiada por igrejas metodistas e luteranas da Europa e pelos próprios brasileiros, depois de conseguirem emprego. Os militares viam nessa associação uma célula terrorista internacional e queriam saber quem a financiava e quem a comandava.

"Ao ser interrogado, um oficial recebeu-me logo com uma coronhada da sua pistola contra a minha cara, trincando os meus óculos contra o rosto e fazendo-me sangrar. Eu ficava em pé em frente a um oficial sentado, enquanto, ao meu lado, também em pé, outro oficial me batia com socos e cassetete. Depois, recebi um soco no peito com o qual perdi a respiração. Certa vez, despertaram-me com uma metralhadora na minha cara. Era também terror psicológico", descreve.

A partir de documentos desclassificados nos dois países e de testemunhos à Comissão da Verdade no Brasil ao longo dos últimos anos, provou-se que a ditadura brasileira ajudou Pinochet a dar o golpe de Estado.

Militares brasileiros foram enviados para o Chile dois dias antes do golpe para ensinar os pares chilenos técnicas de tortura e de interrogatório. O Brasil cedeu máquinas de choque elétrico.

"Os chilenos não sabiam torturar, [...] não sabiam como dar choque elétrico. Não tinham noção de intensidade. Batiam tanto que o preso morria. Os brasileiros sabiam até que ponto bater, até que ponto dar o choque antes de uma paragem cardíaca", conta Ricardo, preso no dia seguinte ao golpe, também devido à denúncia de um vizinho.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil e a embaixada brasileira no Chile sabiam da situação dos 105 brasileiros que passaram pelo Estádio Nacional durante aquelas primeiras semanas do golpe. Porém, alinhados com a ditadura chilena, não deram proteção aos seus cidadãos e colaboraram com os militares na perseguição de brasileiros, segundo os documentos.

Ricardo Azevedo ficou detido durante um mês no Estádio Nacional. Conseguiu sair do Chile para a Argentina, onde se desenhava também o cenário de um golpe, concretizado em março de 1976. Da Argentina, foi para França.

Nielsen de Paula Pires ficou 50 dias no Estádio Nacional e mais 40 dias num convento transformado em refúgio sob os cuidados das embaixadas da Suécia, Suíça, Itália e França. Com a ajuda do Alto-comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) conseguiu ir para a Bélgica.

Seis brasileiros foram mortos nessas primeiras semanas do golpe. Em 1975, foi formalmente criada em Santiago, sob a liderança de Pinochet, uma aliança entre as ditaduras de Chile, Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Peru, conhecida como Operação Condor, para capturar opositores políticos. Outros nove brasileiros foram mortos no Chile nessa operação.

Leia Também: Igreja Católica pede dados sobre detidos desaparecidos no Chile

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