"A vizinhança levou a criança, depois foram matar lá. Quando foram a matar lá, tiraram aquela coisa que estavam a precisar no corpo da criança. Quando acabaram de fazer aquilo, puseram num saco de arroz, encontrámos e não estava completo, o corpo. Estava incompleto", descreve.
É já de noite e está despido de luz o bairro, um dos mais pobres de Chimoio, cidade que dista menos de 100 quilómetros do Zimbabué.
Por ali, a carência de um pouco de tudo traduz-se no desemprego crónico, na falta de abastecimento de água e eletricidade, na comida que pode não chegar à panela, na ausência de portas nas habitações rudimentares, nos caminhos transformados em pó ou em lama, dependendo se chove ou dos períodos de seca.
Chimoio nem é dos territórios mais remotos de Moçambique, mas as crenças populares e a baixa escolaridade ajudam a alimentar aqui uma forma de casar a feitiçaria e o tráfico humano, sendo as pessoas com albinismo aquelas que mais sofrem na pele, seja quando nascem, na discriminação enquanto crescem, nos sequestros, ou uma vez mutilados ou assassinados.
As famílias e as pessoas com albinismo não têm como fugir a esse medo. Chica Alberto diz sentir ainda a dor, mas à perda do filho soma-se agora o medo de um eventual sequestro da filha, Faustina, e da amiga e vizinha, Júlia, já que também elas nasceram albinas.
"Não estou sossegada com estas crianças que ficaram", diz, até porque o negócio de subsistência implica viajar. "Sempre onde vou o meu coração fica atrás", explica, muito porque, também, aponta o dedo à vizinhança pelo assassínio do filho e "aquelas pessoas estão aqui na zona".
Faustina, a filha, de 17 anos, diz que não percebe o preconceito: "As pessoas são diferentes de cor, não sei porque é que as pessoas nos tratam assim, desse jeito".
A amiga e vizinha, Júlia, quase uma irmã, é um ano mais velha. Consegue vencer um pouco melhor a timidez, para lamentar os insultos, que prefere não repetir, de um dos professores, sempre que entra na sala e que a obrigou a deixar de assistir às suas aulas.
"Ele vem falar que eu sou uma menina de uma cor sozinha. Sempre ele me cria isso na cabeça. Por causa dele, também outros me vêm chamar assim, mas a maioria não", desvenda um pouco. Aos 18 anos, a resignação é também uma forma de superar a discriminação: "Como já sou crescida, tudo para mim é normal".
Antes, de manhã, Tânia Bonifácio, da mesma idade de Júlia, descrevia a mesma discriminação diária na escola, mas não só. "Isso acontece na rua, a cuspir na camisa, a dizer que 'eu não quero ter uma criança como essa'. Na escola não são todos os alunos que podem gostar do outro colega, tem outros que até para pedir lapiseira não aceitam. (...) E, na comunidade, tem pessoas que até se podem sentar connosco a rir, mas, no coração deles, não está a gostar", conta.
São palavras de Tânia, mas podiam ser as de Júlia: "Tinha medo [dos sequestros] antes, mas agora, já me habituei. Mesmo com aqueles que passam na rua, cuspindo, já me habituei. Para mim é normal". Teve de mudar de escola, por pressão de pais e alunos, mas limita-se a agradecer o facto de poder continuar os estudos, para perseguir "o sonho de ser enfermeira".
Uma colcha fina e uma almofada dão repouso a Ana, que também nasceu com albinismo, uma condição de ausência de melanina na pele, nos olhos e nos cabelos. Marta Mafusa, a mãe, está inconsolável. O marido abandonou ambas à sua sorte. A mulher cita a justificação do marido: "Deixou porque essa pele não tem na geração dele".
A meia-dúzia de quilómetros de distância, um outro caso. Ana teve o infortúnio de, recentemente, sofrer queimaduras na perna, com água a ferver. Às vezes, no simples amparo da mãe, se existir um pequeno movimento, Ana queixa-se de dores.
"Pomada foi dada (...) mas já acabou. (...). Não tenho nada, de poder comprar comprimido, não estou a conseguir, de aguentar aqui em casa, eu sozinha", narra a mãe, lamentando também uma "vivência de não ter coisa de comer em casa". Resultado: "Tenho quase três semanas com ela aqui, sentada, nem para sair aqui, não dá para deixar sozinha, assim".
Num outro bairro, Inês, que foi também abandonada, mas neste caso pela mãe, diz que não sente falta da mulher que lhe deu vida, mas tem pena de não ir mais à escola. Tem o pai e as tias, preocupados com um possível sequestro.
"Ela não vai à escola, [porque] naquele tempo, quando havia sequestro, o pai tinha medo de a criança ir na escola e ser sequestrada. E a gente mandou parar, não ir mais na escola. (...) Não foi mais. Ainda continua esse medo aqui. Muita gente anda a falar de pessoas assim com problema de pigmentação da pele de ser levado, e a gente, com medo, levámos ela para aqui", tenta resumir a tia Hortênsia Armando.
Em Moçambique, e em países fronteiriços, há quem acredite que as partes do corpo de pessoas albinas podem ter poderes mágicos para a vida material e espiritual.
Os curandeiros africanos podem chegar a gastar mais de 70 mil euros por cada órgão de uma pessoa albina. A profanação de sepulturas é também uma realidade, para se saquearem as ossadas de albinos enterrados.
Boaventura João Gabriel é delegado provincial da Associação Amor à Vida. Também ele nasceu com albinismo. Desdobra-se na ajuda a estas famílias, organiza palestras de sensibilização e fala também na primeira pessoa, contando que ainda hoje lhe cospem em cima, uma lembrança diária dos difíceis tempos de escola.
"Aparentemente, parecia que [o número de casos de assassínios e sequestros] tinha abrandado. Mas ainda há três semanas tive a informação de um que não foi sequer reportado", conta.
Aos 38 anos, com a visão diminuída e uma vida sofrida pelo preconceito, Gabriel diz que está a cumprir o seu papel: ajudar as outras pessoas albinas, que se reconhecem nele, e a encontrar todos os dias no ativismo um caminho para superar os traumas".
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