"Este veredito não esteve à altura dos atos bárbaros que a minha mãe sofreu e este era suposto ser o julgamento histórico da submissão química, mas não senti que tivéssemos recebido sentenças históricas", disse Caroline Darian, 46 anos, em declarações à Lusa na editora Jean-Claude Lattès, em Paris, a propósito da publicação do seu livro em Portugal.
O pai de Caroline, Dominique Pelicot, foi condenado em novembro de 2024 por drogar reiteradamente a sua ex-mulher, Gisèle, sujeitando-a a ser violada enquanto estava inconsciente por dezenas de homens que contactava na internet.
A nível pessoal, Caroline Darian revelou que "é difícil para um filho pensar que ainda tem o ADN de um predador sexual em série, de um violador em série, e de uma vítima que hoje é considerada um ícone em todo o mundo, por ter aberto as portas a este julgamento".
"Nunca mais vamos ser a família que éramos, isso é certo. Já não tenho pai, considero-o como se tivesse morrido, porque não conheço esse indivíduo", afirmou.
A relação com os irmãos e a mãe, por quem tem um grande respeito, também se transformou, gerando "preconceitos dificilmente cicatrizáveis", já que, embora sem provas, Caroline também se considera uma vítima de Dominique, após ter visto fotografias suas inconsciente numa cama em roupa interior, que terão sido tiradas pelo pai.
O seu progenitor e principal arguido do caso, Dominique Pelicot de 72 anos, preso desde 2020 por drogar, violar e recrutar dezenas de desconhecidos na Internet para violar Gisèle entre 2011 e 2020, foi condenado pelo Tribunal de Avignon, no sul de França, a 20 anos de prisão, com uma pena de segurança de dois terços.
"Mas será que isso é suficiente? Não me cabe a mim dizer", afirmou Caroline Darian, que se questiona se este cumprirá a totalidade da pena de 13 anos que lhe resta, tendo em conta a sua idade.
Recentemente, Dominique foi interrogado em Paris por um alegado envolvimento num homicídio de uma jovem em 1999, numa violação em 1991 e numa agressão sexual em 2004.
Caroline Darian acredita que "tudo é possível com Dominique Pelicot" e espera que "a justiça possa revelar o outro lado da trajetória criminal".
"Estou à procura da verdade mesmo depois do julgamento, tenho a convicção que nos últimos quatro anos, se tivesse acontecido durante dez anos na nossa casa, não teria começado em 2011", defendeu.
No que diz respeito aos 50 co-acusados, entre os 27 e 74 anos, Caroline ficou "bastante surpreendida ao ver que a maioria tinha sido condenada a penas entre três e dez anos, quando, em França, a pena para a violação é de 11 anos", com as penas a serem inferiores ao que a Procuradoria tinha pedido.
"Penso que a vergonha ainda não mudou de lado, a prova está no facto de que, dos 51, incluindo Dominique, hoje há 14 a cumprir pena, não é um número insignificante", defendeu, referindo que mesmo durante o julgamento, não viu remorsos na maioria dos co-acusados, que continuam a pensar que "não foi grave".
Contudo, este "é um primeiro passo para mudar as mentalidades" e é preciso que "outras vítimas mostrem o que é realmente ser sujeito a estas cenas teatrais num tribunal penal", uma "humilhação adicional" nos casos em que agressores destroem as vítimas, mas também as suas famílias.
O "primeiro testemunho literário" sobre este caso, "E Deixei de Te Chamar Papá", de Caroline Darian, será lançado em português pela editora Guerra e Paz no dia 11 de fevereiro, sendo para a autora uma "honra poder publicar em vários países do mundo".
Para Caroline Darian, com esta obra, um maior número possível de pessoas pode ter consciência do "flagelo" da submissão química, "um verdadeiro problema de saúde pública em França e, sem dúvida, noutros países da Europa".
"Assim que o livro foi publicado, recebi muitos testemunhos e disse a mim mesma que tinha verdadeiramente de ajudar, de continuar o combate para contar a verdade e dar voz às vítimas que ainda hoje são invisíveis em França", disse Caroline Darian, referindo que "é esse o objetivo da sua associação #Mendorspas" (Não Adormeça, em português), criada há cerca de dois anos.
O uso de drogas ou substâncias psico-ativas para cometer agressão sexual não está só associado à "droga do violador" (GHB), utilizada em ambientes de festas estudantis, porque no caso de Gisèle foi drogada com ansiolíticos pelo ex-marido com quem viveu 50 anos.
"A submissão química, na maioria dos casos, ocorre na esfera privada, em casa, muitas vezes com vítimas que conhecem os seus agressores, que são do seu círculo próximo, pode ser um familiar próximo, um familiar distante, um tio, pode ser um colega de trabalho, um amigo de confiança", alertou.
A #MendorsPas quer "levar a cabo uma grande campanha de sensibilização", necessitando de fundos para "manter este assunto no espaço público e mediático" e "ajudar as vítimas a serem atendidas em estruturas adequadas".
"Temos grandes esperanças na missão governamental que está a ser levada a cabo pela deputada Sandrine Josso (do partido presidencial), que é também a madrinha da nossa associação, e que deverá apresentar um relatório ao gabinete do primeiro-ministro no fim de março ou início de abril", acrescentou.
A instabilidade política em França, com a constante queda do Governos durante o processo, não é algo que faça Caroline Darian perder a esperança na mobilização sobre o tema após o fim do processo.
"Espero que a cobertura mediática sirva também para encorajar as vítimas que sofreram mais ou menos a mesma coisa a divulgarem o seu próprio caso, não quero que se fique pelo julgamento de Gisèle e de Dominique", disse, referindo que este caso deu "coragem a centenas de mulheres".
"Gostaria de dizer às vítimas de hoje e de amanhã que devem investigar as suas dúvidas e não deixar essa sombra aos potenciais agressores", referiu, acrescentando que estas não devem esperar "demasiado tempo para se dirigirem às instalações corretas para recolherem uma amostra".
Já que em caso de dúvida as vítimas têm entre 48 a 72 horas para recolher provas, dependendo das substâncias utilizadas pelos agressores, depois disso há a recolha sequencial de amostras, como a análise de cabelo, que "ainda não é acessível ou sistemática".
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