No dia em que se assinalam exatamente três anos desde o início da guerra na Ucrânia, o Notícias ao Minuto falou com 'Vladimir Balandin', o nome fictício de um designer russo, de 31 anos, que fugiu da Rússia para o Cazaquistão, país vizinho, pouco depois do início do conflito.
Assim que percebeu que o Kremlin ia avançar com um recrutamento militar entre a população masculina do país, Balandin nem precisou de muito tempo para ponderar.
Como não podia sair de avião, devido ao elevado controlo que já existia na altura nas fronteiras aéreas, foi por terra, mas não quis partilhar mais detalhes sobre a fuga, com receio de ter de voltar a repeti-la. Foi esse mesmo medo que o levou a preferir usar um nome fictício nesta entrevista, uma escolha que justifica como um 'alter ego'.
Conhece bem a retórica do Kremlin e o destino que costuma estar reservado a que se opõe ao regime. Por isso pediu também para, mais tarde, apagar todos os registos desta conversa. "Tudo agora, mesmo que seja informação inofensiva, pode obrigar a ir para a prisão", explicou.
Agora já está de regresso à Rússia. O recrutamento militar acalmou, mas só decidiu voltar por um motivo familiar. Contou que muitos russos acreditam que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e a nova administração norte-americana vão acabar com a guerra, mas o designer não partilha a mesma opinião.
Talvez no fundo da minha alma – tal como outros russos – não quisesse acreditar que isso poderia acontecer
Do que se recorda do dia em que começou a guerra, há exatamente três anos?
Estava preparado, na verdade. Por isso, quando a minha mulher me disse, de manhã cedo, que a guerra tinha começado, acordei logo a seguir e não fiquei nada surpreendido. Mas, talvez no fundo da minha alma – tal como outros russos –, não quisesse acreditar que isso poderia acontecer. E não me sentia com raiva, estava só chateado. Todos os meus amigos ficaram chocados, ninguém queria acreditar naquilo e em todas as notícias que se seguiram.
Depois do susto, apanhei-me a fazer 'doomscrolling' [ato de passar muito tempo a ler grandes quantidades de notícias negativas online]. Foi uma catástrofe para todo o nosso país. Sempre li notícias todos os dias, mas nesse dia em particular li notícias o dia inteiro, sem outras distrações.
Como foram os primeiros dias de guerra? Pensou logo em deixar a Rússia?
Durante esses dias não pensei em deixar o meu país, para mim essa hipótese era impossível, mas depois a minha mulher leu notícias em canais do Telegram que diziam que o governo podia fechar as fronteiras e fazer uma mobilização de homens para a guerra. Por isso, depois de um dia muito difícil, comecei a pensar sobre se devia ficar ou não. Até fizemos uma lista com "porque é que tenho de ficar" e "porque é que tenho de partir." Tomei a decisão de sair. Porque não importa se querem que vás para a linha da frente ou porque é que é preciso ficar. Só há um ponto: estar em segurança.
É estúpido ir para a guerra e morrer pelo país, especialmente quando se é o agressorTeve amigos que foram obrigados a alistarem-se no exército russo e ir para a guerra?
Não conheço homens que foram obrigados a ir para a guerra, mas claro que ouvi falar deles. A maior parte dos meus amigos ficou na Rússia, não porque fossem corajosos ou preguiçosos, mas simplesmente não tinham recursos suficientes nessa altura para se mudarem. A maior parte deles não tinha trabalho remoto, por exemplo. A maioria queria ir-se embora, mas não podia. É estúpido ir para a guerra e morrer pelo país, especialmente quando se é o agressor, não o protetor. Na minha opinião é mais importante viver pelo nosso país, trabalhar para o seu futuro e ter um impacto real em todos os outros aspetos da pátria.
Por que decidiu regressar à Rússia entretanto? Pensava que a guerra estava perto do fim?
Decidimos regressar à Rússia porque a minha avó estava muito doente, tinha uma doença assustadora e quando me apercebi de que podia morrer e eu não lhe diria nada, comprámos imediatamente os bilhetes para regressar. Felizmente, após os tratamentos, ela sentiu-se muito melhor e isso deixa-me feliz porque é uma pessoa única, não só na minha vida nem só para a nossa família e todas as pessoas que a conhecem se apercebem disso.
Não sinto que a guerra vá acabar em breve, infelizmente. Na Rússia, muitas pessoas confiam no Trump e no novo governo dos Estados Unidos. Muitas pessoas acreditam neles. Eu também espero que acabe, mas a minha mente e a minha alma dizem-me que não vai acabar porque os governos de ambos os lados do conflito não querem fazer cedências. É um problema muito profundo, que vem desde a altura da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e agora estamos a ver as consequências. Espero estar enganado.
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Quanto tempo esteve fora da Rússia? Sentiu-se mais livre durante esse período?
Estivemos fora cerca de sete meses. Não me senti, de todo, livre porque em países diferentes sentimo-nos como estrangeiros. Mesmo que os habitantes locais tenham boas relações com quem vem de fora, nunca nos sentimos muito confortáveis porque não nos mudámos de livre vontade. Foi mais uma decisão forçada do que um desejo. Além disso é preciso começar tudo de novo quando se fica num novo país durante longos períodos. É preciso encontrar apartamento, obter todas as autorizações necessárias, transferir dinheiro, etc.
Somos um povo muito paciente. Podemos aguentar muito tempo
Várias marcas e empresas abandonaram a Rússia com o início da guerra. A Visa, Mastercard, McDonald’s, Starbucks, Nike… De que forma é que isso afetou a vossa vida?
Afetou-nos o conforto, mas não a um nível crítico para as pessoas que conheço. Contudo, é realmente difícil comprar programas de software para computador, por exemplo, por isso é que é mais difícil trabalhar para o estrangeiro a partir da Rússia. Como é que isso afeta o nosso governo e a guerra? Não afeta muito. Penso que esse tipo de sanções não pode parar a guerra. Só piora porque, para alguns russos, confirma a retórica do nosso governo: "Eles, na União Europeia e nos Estados Unidos, odeiam-vos. Vejam o que estão a fazer. Não querem fornecer-vos produtos porque nós somos russos". Mas o mais importante para os russos é a política e não a economia. Somos um povo muito paciente. Podemos aguentar muito tempo.
Surgiu alguma espécie de mercado negro de onde vos chegam estes produtos das marcas que já não existem no país?
Algumas coisas que existiam normalmente no país são agora exportadas por países "amigos", por importação paralela. Isso aumentou, mas não se nota muito. Por isso é que nem conseguimos perceber como é que esse produto foi exportado para o país. Não há, definitivamente, défice nos centros comerciais, lojas ou supermercados e é em todas as cidades, independentemente de serem grandes ou pequenas. Isso surpreendeu-me. Se as pessoas quiserem comprar um Mercedes podem fazê-lo, mas o preço será muito mais elevado do que antes da guerra.
O vosso mercado foi invadido por produtos chineses. Quando é que isso começou?
O nosso mercado foi invadido por produtos chineses muito antes do início da guerra. Só noto uma verdadeira transformação no mercado automóvel. Onde antes prevaleciam os carros alemães, agora prevalecem os carros chineses.
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Quando Alexei Navalny estava vivo ainda existiam algumas manifestações na Rússia. Isso deixou de acontecer depois da morte de Navalny? Há alguém da oposição que se esteja a tentar destacar para o substituir?
Acho que os protestos acabaram para sempre e isso é muito triste. E, claro, está relacionado com a morte de Navalny, mas não acabaram de repente, foi acontecendo lentamente. Como se diz na Rússia: "apertando os parafusos", gradualmente. A oposição perdeu todo o apoio, especialmente quando se descobriram alguns novos factos negativos sobre a equipa de Navalny. Eu também fiquei desiludido com eles.
Que factos negativos foram esses?
Resumindo: havia um banco, o ProbisnessBank, que alegadamente entrou em falência e retirou todo o dinheiro dos investidores. Os seus proprietários deram à FBK [Fundação Anticorrupção], de Navalny, um donativo com uma grande quantia de dinheiro e pediram a [Leonid] Volkov, "tesoureiro" do FBK [e aliado de Navalny], que respondia pelas transferências de dinheiro e o guardava, para branquear a reputação dos banqueiros do falido ProbisnessBank, Shelesniak e Leontiev.
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Então quem é contra o Kremlin perdeu a única fonte de esperança…
Sem dúvida! Foi um grande descrédito para todas as forças liberais do país e, na realidade, não havia muita gente que acreditasse em Navalny, também por isso é que ele foi preso. Mesmo nos protestos que apelavam à sua proteção não havia muita gente. Estive numa dessas manifestações e vi-o com os meus próprios olhos.
Quais são os castigos atualmente mais temidos na Rússia?
Depende dos cenários, mas a maioria das penas de prisão são entre três a cinco anos. Li nas notícias, não vi pessoalmente e não conheço pessoas que tenham passado por esses castigos, mas não quero testar.
Os russos correm mais riscos no próprio país do que os cidadãos estrangeiros que vivem na Rússia?
Provavelmente sim, porque os estrangeiros não dizem nada sobre a guerra ou o governo, não vão a protestos nem tentar provocar incêndios com cocktails molotov. E, claro, porque são protegidos pelos seus países. No entanto, tenho a certeza de que já ouviu falar de jornalistas ou outros estrangeiros que estão em prisões na Rússia. Alguns já foram trocados por prisioneiros russos.
Tanto na Ucrânia como na Rússia há muita gente digna, mas os nossos governos só nos veem como carne que vai proteger o interesse das grandes empresas
Sim, temos tido conhecimento de diversos casos desses. Olhando agora para o que tem acontecido nos últimos dias, que significado teve para vocês a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos?
Não significa nada para mim, não confio muito nele, mas na Rússia há muitas pessoas que confiam nele e esperam que Trump ajude a ultrapassar a guerra em breve. Eu também espero que sim, mas não acredito muito nisso. Pelo menos vejo que os russos e os ucranianos não querem ir para a paz. Espero estar enganado.
Como tem visto a troca de acusações entre Trump e Zelensky, com o presidente dos Estados Unidos até a culpar a Ucrânia pela guerra?
Só vi que Trump chamou ditador ao Zelensky. Nada mais. Vi uma entrevista dele a um canal norte-americano, antes das eleições, e ele parecia um tipo inteligente perante um jornalista histérico que estava a fazer a entrevista.
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Se pudesse deixar uma mensagem ao povo ucraniano, o que lhes diria?
Bem, já falei com alguns ucranianos e foi num ambiente calmo, ninguém tentou matar-se uns aos outros ou estava zangado. Claro que, antes de mais, sou solidário com estas pessoas que estão a sofrer e a ver todas estas consequências terríveis da guerra. Não o merecem. Tanto na Ucrânia como na Rússia há muita gente digna, mas os nossos governos só nos veem como carne que vai proteger o interesse das grandes empresas.
É injusto que as pessoas simples estejam a sofrer com tudo isto. Não percebo porque é que a Rússia começou a guerra, quais são os objetivos, mas percebo porque é que os ucranianos lutam, estão a proteger as suas casas e a pátria. Além disso, é um país que é nosso irmão, com uma história comum e é uma pena que todos lutemos uns contra os outros quando, há poucas décadas, lutámos ombro a ombro contra o fascismo na II Guerra Mundial. Espero que isto acabe em breve e, sobretudo, que não recomece.