"Há quem olhe para a Rússia e veja um urso feroz. Devia ser diferente"

Jornalista e correspondente na Rússia durante muitos anos, José Milhazes é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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© José Milhazes

Fábio Nunes
26/10/2017 08:50 ‧ 26/10/2017 por Fábio Nunes

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José Milhazes

José Milhazes pode falar como poucos sobre a realidade da Rússia. Viveu lá durante 38 anos. Tornou-se conhecido dos portugueses como o correspondente de vários órgãos de informação nacionais.

Foi estudar com 18 anos para Moscovo, crente na ideologia comunista e cedo percebeu que a teoria não correspondia à realidade que encontrou, como admite. Presenciou a queda da União Soviética, o período da Perestroika e a ascensão ao poder de Vladimir Putin.

Por ocasião da passagem sobre o centenário da Revolução de Outubro, José Milhazes critica a falta de desenvolvimento e modernização na Rússia e afirma que atualmente não há relações entre Moscovo e Washington. Na primeira parte desta entrevista ao Notícias ao Minuto, aborda ainda a tensão entre Estados Unidos e Coreia do Norte.

O que o levou a ir para a União Soviética tão cedo? Em 1977, sendo tão novo, estava preparado para um desafio, um choque tão grande?

Foi um choque, mas quando se tem 18 anos, quando somos jovens temos de ser, como se costuma dizer, maximalistas. Temos de ir à aventura. E eu fui. Tinha grandes dificuldades em estudar em Portugal, embora pudesse ter ajudas, era muito bom aluno. Podia ter uma bolsa. Mas perante um desafio destes responde-se 'sim', principalmente quando se está em sintonia com uma ideologia do lugar para onde se vai. Quando a Helena Medina, a mãe do Fernando Medina, que era então uma das dirigentes da organização do PCP no Porto, me deu a notícia de que ia para a União Soviética, naturalmente foi uma grande alegria. Não esperava. Achava que ia estudar para um dos três países que tinha escolhido: Cuba, a RDA ou a Bulgária. Foi isso que me levou a ir para lá, mesmo contra a vontade da família. E não estou arrependido.

Quando se chega lá e se começa a apanhar os tais murros na barriga, começamos a pouco e pouco a ver que a teoria e a realidade não correspondem, que há mesmo um grande abismo entre um e outroQuando foi tinha expectativas diferentes face à realidade que acabou por conhecer?

São sempre grandes quando uma pessoa acredita, aqui sublinho que é o verbo é 'acreditar', profundamente numa ideologia ou num regime. Fui muito influenciado pela propaganda soviética que lia abundantemente. Revistas, jornais e livros. E isso levou-me a ir para lá também. As expectativas eram todas. Esperava ver um país altamente desenvolvido, sem desigualdades, que eu estava habituado a ver aqui porque a minha origem social assim o permitiu. E tudo isso fazia criar em mim esse sentimento. 'Finalmente vou ver uma realidade social que quero para o meu país'.

Claro, que depois quando se chega lá e se começa a apanhar os tais murros na barriga, começamos a pouco e pouco a ver que a teoria e a realidade não correspondem, que há mesmo um grande abismo entre um e outro. Mas já estamos lá e é um processo lento porque no meu caso havia sempre uma grande tentativa de explicar os erros. Pensava 'isto acontece porque eles estiveram na II Guerra Mundial ou porque eles continuam a ajudar países irmãos'. E eu ia tentando explicar as dificuldades. Até que se chega a determinada altura e as explicações acabam. Quando se trata de ideias e vemos que estamos errados, já não é coerência é teimosia. No meu caso levou muito tempo. Não fui daqueles que descobri o Brasil mal lá cheguei. Neste caso a Rússia. Demorou tempo mas aconteceu.

Era um termo muito soviético. Ser aconselhado significava ser obrigado, mas não se podia dizer isso

E sentiu uma grande desilusão quando percebeu isso?

Há vários períodos. Há um período em que somos jovens e somos capazes de digerir muitas coisas. Nós vivemos um pouco num mundo à parte. Estudantes estrangeiros, vivíamos com os russos mas em residências, não conhecíamos a província. Estávamos muito limitados. Não podíamos sair de Moscovo sem permissão das autoridades estudantis. O único lugar fora da cidade onde podíamos ir era o aeroporto internacional. Às vezes sabíamos dos problemas quando estávamos com outros estudantes portugueses que vinham de outras cidades em conferências anuais. Eles diziam que tinham senhas de racionamento, que era uma coisa que não imaginava que a União Soviética tivesse. Diziam que em Moscovo éramos uns privilegiados porque tínhamos condições de residência e de vida que eles não tinham noutras cidades da província.

Depois, à medida que iamos contactando com os soviéticos, iamos descobrindo que afinal aquilo não era o que nos diziam, que muitos dos problemas estavam escondidos. Alguns soviéticos, colegas meus de universidade, eram aconselhados a não ter contacto com os estrangeiros. Era um termo muito soviético. Ser aconselhado, que significava ser obrigado, mas não se podia dizer isso. Eu estudava Humanidades e não tem noção da lista de livros a que não podia ter acesso. Estava numa universidade com professores muito bons, mas por outro lado tinha toda uma limitação de acesso à cultura mundial. Nas ciências exatas, todos os crânios iam para a indústria militar, que era o grande monstro que levou à queda do poder soviético. Fui juntando esse puzzle.

Depois, há um momento fundamental quando caso e tenho filhos. É a fase em que tenho de sair da vida de estudante e tenho de entrar na realidade. Preciso de andar à procura de comida para as crianças, de roupa. Por acaso tive sorte, porque tinha amigos na Finlândia e a família levava coisas quando nos ia visitar ou levávamos nós para lá quando vínhamos a Portugal. Fui compreendendo porque é que os soviéticos não tinham um nível de vida tão bom como os ocidentais. Como se costuma dizer, a corda vai esticando até que se chega a um momento em que há uma rutura.

Claro que há momentos intermédios. Quando Gorbatchev chega ao poder aparece a esperança de que se pode humanizar aquele regime ao ponto de se transformar, de fazer da União Soviética algo semelhante a uma social-democracia mas isso não aconteceu. Não havia condições. Gorbatchev não tinha dinheiro para fazer isso. A União Soviética estava com problemas devido à baixa do preço do petróleo na altura, à despesa militar e à má economia. E foi isso que levou a União Soviética a desaparecer como império do mapa mundial.

Dou metade do dinheiro que possam descobrir na minha conta de alguma agência de espionagem para a qual tenha trabalhado, seja do Vaticano, Mossad, ou CIAComo é ser jornalista num país como a Rússia? Sentiu muitos entraves ao longo dos anos para fazer o seu trabalho?

Há vários momentos. Primeiro, há o fator tecnológico. Hoje em dia é muito mais fácil ser jornalista. Comecei a ser jornalista num momento em que não tinha um telefone para ligar para Portugal. Tinha de pedir uma telefonista para marcar uma hora para falar com Portugal. Quando o meu filho nasceu só consegui falar com os meus pais uma semana depois. É uma perspetiva diferente. Os jornalistas acreditados podiam ter um telefone direto mas isso custava dinheiro, e como se sabe em Portugal os órgãos de informação de então e de agora não investem nos correspondentes. Somos uma espécie de jornalistas menores, salvo raras exceções. Eu não me queixava, apenas pedia que me dessem algumas condições. Atualmente só a RTP tem um correspondente em Moscovo, uma zona fundamental do mundo.

Esse era um problema, maior até do que o problema de convivência com as autoridades russas. Os grandes meios de informação britânicos, americanos, franceses tinham muito mais facilidades do que nós, eram mais visíveis, pagavam, por exemplo. E eu não tinha dinheiro para pagar entrevistas. No tempo da Perestroika, criou-se esse vício de pagar para ter uma entrevista. Claro, que os órgãos de informação portugueses não tinham dinheiro para entrevistar os principais políticos, a não ser que fosse numa conferência de imprensa. Era uma situação que nos dificultava o trabalho no terreno.

De resto, não tive grandes dificuldades. Nos últimos tempos as coisas complicaram-se um bocado. Notou-se da parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros uma mudança clara de atitude em relação à minha pessoa e depois de 38 anos na Rússia decidi que estava na altura de fazer as malas e vir embora.

Ao longo da sua vida foi muita vezes acusado de ser espião, de diversas organizações até.

Devia ser milionário. A essas pessoas respondo sempre: dou metade do dinheiro que possam descobrir na minha conta de alguma agência de espionagem para a qual tenha trabalhado, seja do Vaticano, Mossad, ou da CIA. Por enquanto, o cheque ainda não chegou mas se alguém encontrar dou metade a essa pessoa. Tive uma vida como jornalista que poucos em Portugal tiveramComo lidou com essa situação? Houve alguma ocasião em que isso tivesse assumido proporções mais graves?

Isso é uma espécie de pedra que se tem para atirar quando não se tem argumento. Quer dizer, no caso dos soviéticos não sei o que é que eles pensam, o que têm no meu dossier, para quem trabalhei enquanto lá estive. 'Este fala assim porque é agente da CIA', 'escreve porque lhe pagam para isso'. Isso não é verdade. Escrevo, enquanto comentador, aquilo que penso. São acusações que não têm sentido. E nota-se, porque o argumento seguinte é passar ao insulto. Porque não têm rabos de palha por onde me pegarem. Isso é que deixa essas pessoas nervosas e vai aumentando o número de serviços secretos para os quais trabalho.

Presenciou bem de perto alguns dos acontecimentos mais importantes na história da União Soviética/Rússia. Como foi viver aquele período da queda da Cortina de Ferro, da Perestroika?

Eu digo que tive uma vida como jornalista que poucos em Portugal tiveram. Eu, o Carlos Fino e o Mouravitch. Depois, passámos por tantas mudanças em tão pouco tempo. Se a nossa vida se fosse dividida por 10 ou 15 jornalistas dava para trabalho intenso para cada um desses jornalistas, porque acontecia tanta coisa, a toda hora, que nós simplesmente não sabíamos para onde nos mexer. Havia momentos completamente loucos em que não se dormia ou dormia-se uma horinha ou duas, enquanto mudavam aqui as equipas. E tínhamos de ir para a fila comprar jornais. Não sabe o que era naquela altura ir para a fila dos jornais. Era um bico de obra! Por vezes, chegava a minha vez e estava esgotado.

Era preciso informação porque estava a acontecer muita coisa mas também era preciso entender essa informação e requeria um trabalho incrível, esgotante às vezes. Mas era um trabalho que valia a pena porque do outro lado sabia que havia pessoas que estavam à espera. Na TSF, depois no Público e na SIC.

A mudança na Rússia ficou aquém do esperado naquela altura?

Há uma coisa aqui muito triste. A forma como o Ocidente não soube gerir a situação na União Soviética. A atitude face à União Soviética e depois à Rússia. O desprezo. A Europa e os Estados Unidos em vez de ajudarem Gorbatchev nas suas reformas, como lhes interessava muito mais o fim da União Soviética, apoiaram Yeltsin. Deixaram Gorbatchev sozinho quando mais precisava de ajuda, e apoiaram um político que seria hoje uma espécie de Trump, só que na altura não havia termo de comparação. O Yeltsin era um populista, bastante mal preparado para governar um país como a Rússia. Nos anos 90, a Rússia praticamente é humilhada. Agora todos ficam surpreendidos como é que Vladimir Putin tem 80% de popularidade.

As pessoas olham para a Rússia e têm medo, não têm respeitoEssa transição entre Yeltsin e Putin ajudou a fortalecer a liderança de Putin?

Putin veio dar aquilo que os russos consideram dignidade ao seu país. O primeiro mandato de Putin até nem é mau, ele trouxe esse orgulho aos russos. O mundo voltou a ouvir a Rússia. No outro dia falei com um amigo russo que veio a Portugal e disse-lhe 'Na Rússia os vossos dirigentes confundem duas coisas: respeito e medo. Eu não quero ter medo da Rússia, quero respeitar a Rússia'. As pessoas olham para a Rússia e têm medo, não têm respeito. E isto é muito importante. Há quem olhe para a Rússia e veja um urso feroz e devia ser diferente.

O controlo que Putin e o Kremlin exercem está a estrangular um maior desenvolvimento e modernização da Rússia?

A Rússia está a perder o comboio da modernização. Primeiro devido à corrupção, que é tenebrosa. Está ao nível dos países africanos. Depois há o problema da falta de liberdade política, de oposição. E isso leva a um problema que já aconteceu na União Soviética, há muitas pessoas que estão a sair da Rússia. Os que são muito inteligentes e que têm um lugar à espera numa universidade norte-americana ou inglesa. A própria economia está novamente a ser muito militarizada. E se nos Estados Unidos ou em Inglaterra, as descobertas do setor militar passam para o civil muito rapidamente na Rússia isto demora muito tempo a passar o filtro, a malha é muito pequena. A Rússia tem hackers absolutamente fenomenais mas não vai encontrar um computador que seja russo. A grande parte das exportações são matérias-primas, a Rússia não vende tecnologia.

A Rússia está a entrar num caminho muito semelhante ao da União Soviética no final. Está muito dependente do preço do petróleo e do gás. Também há a questão do intervencionismo cada vez maior da Rússia além das suas fronteiras. Temos o caso da Síria. Aquilo custa muito dinheiro. Não é só o dinheiro para combater o Estado Islâmico ou as restantes organizações terroristas que lá estão, mas também o dinheiro para a reconstrução do país depois, de forma mantê-lo na órbita russa. É uma política internacional muito além das suas possibilidades económicas. Pensava que Putin ia concentrar-se apenas no país, mas infelizmente não o fez. A política externa russa poderá contribuir para que a Rússia se desintegre como aconteceu com a União Soviética.

Era evidente a simpatia do Kremlin por Trump e isso foi um tiro no pé que Putin deuÉ possível vislumbrar uma Rússia no futuro sem Putin?

Isso é uma questão que já preocupa todos, até os próprios apoiantes de Putin com quem falo. Putin queimou todo o terreno à volta dele, as oposições. Ele criou um sistema à volta dele, um sistema vertical de comando. Mas eu considero que é um sistema vertical invertido. Uma pirâmide que está virada de pernas para o ar, com Putin na base e quando a pirâmide se desequilibrar e Putin sair, aquilo vai cair tudo. Quem é que o vai substituir e como vai manter o país? Esse é o problema. Neste momento Putin não está a preparar ninguém e não é isso que devia acontecer. A Rússia devia ter um regime que permitisse o aparecimento de várias alternativas.

Não excluo a hipótese de ele não se recandidatar no próximo ano, mas tudo me leva a crer que ele se vai recandidatar. Ele já está lá há 17 anos, junte mais seis e vai levar 23 anos como presidente.

Em que ponto está a relação entre a Rússia e os Estados Unidos? Muitos esperavam uma relação mais complicada com a chegada de Trump à Casa Branca?

Mas havia muitas pessoas que consideravam que Trump seria o melhor amigo de Putin. E era evidente a simpatia do Kremlin por Trump e isso foi um tiro no pé que Putin deu. Neste momento não estamos a ver relações, estamos a ver uma grande confusão que a qualquer momento pode escapar ao controlo dos próprios dirigentes. Os Estados Unidos não têm relações externas neste momento, que sejam reais. O Trump escreve uma coisa no Twitter. O secretário de Estado anda aos papéis atrás de outra.

Acredita que a Rússia influenciou as eleições presidenciais norte-americanas de forma a contribuir para a vitória de Donald Trump ou para evitar que Hillary Clinton fosse eleita?

Trump não ganhou graças aos russos. Há ingerências, e não sejamos infantis, porque os Estados Unidos também as fazem quando precisam, ou a Europa. A Rússia teve um papel em denegrir Hillary Clinton mas não foi um papel determinante. A eleição de Trump foi feita pelos americanos e advém da situação dos Estados Unidos. Atribuir essa eleição à ingerência russa é um erro crasso e é uma tentativa de explicar a vitória de Trump. Ele venceu porque apresentou programa em que a maioria dos americanos acreditou. É um programa populista, que promete tudo e há pessoas nos Estados Unidos que estavam à espera daquele tipo de discurso.

Face à crescente tensão entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, qual o papel que a Rússia poderá ter? Recentemente Putin voltou a destacar a necessidade de diálogo entre Washington e Pyongyang.

Um dos papéis fundamentais pertence à China porque o regime norte-coreano depende em termos económicos da China. Depende em parte da Rússia, porque a Rússia tem relações com os norte-coreanos porque fornece petróleo e gás e recebe milhares de escravos para trabalharem na Rússia. Aqui há uma questão muito importante. É que talvez nem a Rússia, nem a China ou o Japão estejam interessados no aparecimento de uma Coreia unida pró-americana.

A incógnita é saber se o líder norte-coreano pode ser o primeiro a atacar. Ele parece ser mentalmente desequilibrado. Ou ele está convencido de que os Estados Unidos não atacam primeiro porque as consequências seriam desastrosas para a Coreia do Norte, para a Coreia do Sul, para o Japão, China e para a Rússia, que faz fronteira com a Coreia do Norte. É um grande berbicacho. As consequências de um conflito poderão ser comparáveis a uma Guerra Mundial. Penso que a China está a fazer de tudo para evitar que se chegue ao pior dos cenários.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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