"O cancro pediátrico fica algures num cantinho esquecido"
A diretora-geral da Acreditar - Associação de Pais e Amigos das Crianças com Cancro -, Margarida Cruz, é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
© Global Imagens
País Acreditar
Este sábado, dia 15 de fevereiro, assinala-se o Dia Internacional da Criança com Cancro. Por todo mundo vão decorrer eventos e discussões sobre a oncologia pediátrica, mas a luta é feita todos os dias por crianças, jovens e famílias a quem o 'mais mauzão dos mauzões' bateu à porta.
Além de toda a carga emocional que um diagnóstico de cancro pediátrico traz, as famílias que enfrentam esta doença deparam-se com um conjunto de dolorosas batalhas a nível de falta de leis, de apoios sociais e de políticas eficazes.
Em Portugal, a cada ano, são 400 os novos casos de doença oncológica pediátrica a quem a burocracia ainda dificulta o progresso e o sucesso.
Crianças abandonam as rotinas escolares, pais perdem empregos, sobreviventes continuam a ter de lidar com estigmas sociais, como a discriminação nas entrevistas de emprego e a impossibilidade de comprar uma casa por não poderem fazer seguros de saúde.
Ao que se soma ainda a falta de consultas para sobreviventes, os registos oncológicos deficientes, a falta de ensaios clínicos que desafiem a ciência e ajudem a minorar as sequelas.
A maioria das crianças e jovens com cancro, felizmente, sobrevive a este tão doloroso diagnóstico, mas aos pais que perdem um filho são dados apenas cinco dias de licença, ao invés dos 30 que muitos países já adotaram.
Foi para nos falar sobre tudo isto que o Notícias ao Minuto escolheu este dia para falar com a diretora-geral da Acreditar, Margarida Cruz.
A Associação de Pais e Amigos das Crianças com Cancro, que celebra este ano os seus 25 anos de existência, ajudou, só em 2019, 1.984 famílias a defrontar este 'bicho papão' que é o cancro.
A Acreditar é para muitas famílias a única 'casa' onde conseguem encontrar o que a própria palavra significa: "ter fé, crer".
Como nasceu a Acreditar?
A Associação Acreditar nasceu há 25 anos e nasceu sobretudo com a ideia que muitos pais tinham de que os tratamentos em Portugal estavam ao nível daquilo que se fazia de melhor na Europa, no entanto, as condições a nível de apoio nos hospitais e a nível até de apoio social, emocional, psicológico ainda deixava muito a desejar. Sentiram que fazia todo o sentido criar uma associação que visasse a promoção da qualidade de vida quer dos doentes quer das famílias.
E detetada essa lacuna, como começou a Acreditar a atuar?
A Acreditar foi criada desde logo a nível nacional. Como havia tratamento sobretudo no Porto, Coimbra e Lisboa direcionaram logo a Acreditar para estar presente nestes locais e na Madeira onde também são feitos alguns tratamentos. A Acreditar começou procurando estruturar uma relação com estes hospitais de modo a estar presente dentro dos próprios hospitais com o voluntariado. O voluntariado foi uma coisa que começou logo.
E entretanto surgiram as Casas Acreditar alguns anos depois...
As Casas não começaram logo no início da Acreditar. A primeira foi a de Lisboa, há 17 anos. E até lá chegar há todo um trabalho por trás que tem a ver com a estruturação do voluntariado, sobretudo nessa fase do apoio hospitalar e, em alguns casos, também no apoio ao domicílio. Houve também desde o início uma preocupação com a escolaridade. A Acreditar começou a trabalhar logo desde o início na necessidade de estas crianças e jovens estarem integrados num ambiente escolar para que, quando não podem ir à escola, pelo menos possam acompanhar o programa.
Damos apoio social a muitas famílias, quer com dinheiro, quer com bens. Temos um projeto que se chama Cabazes, em que damos cabazes de alimentos, mas também podemos ajudar numa situação mais complicada, em que a pessoa não consegue pagar a renda da casa ou um empréstimoFala do programa Aprender Mais, certo?
Sim, este programa é uma sequência deste apoio escolar que começou logo a ser dado mas que hoje conta já com um conjunto de professores que conseguem dar explicações quer nas Casas Acreditar, quer ao domicílio. Além disso, temos integrada a possibilidade de os jovens concorrerem a bolsas para continuarem os estudos com tranquilidade se as famílias tiverem algumas dificuldades.
Quantas bolsas atribuem por ano e como é que as famílias podem conseguir essa ajuda?
Depende um bocadinho dos apoios que temos para as bolsas. No último ano demos 10 mas depende da capacidade que temos num determinado ano. Este ano tivemos várias empresas e várias pessoas que aderiram ao projeto. As candidaturas abrem em junho ou julho, a família ou o jovem (do secundário ou ensino superior) com cancro candidata-se, manda-nos os comprovativos do IRS, etc., e depois nós fazemos um ranking de acordo com as necessidades das pessoas.
Outra das bases da associação é o apoio social, como é feito e de que forma o garantem?
Damos apoio social a muitas famílias, quer com dinheiro, quer com bens. Temos um projeto que se chama Cabazes, em que damos cabazes de alimentos, mas também podemos ajudar numa situação mais complicada, em que a pessoa não consegue pagar a renda da casa ou um empréstimo. Ajudamos a nível burocrático, em casos em que, por exemplo, as pessoas têm vários créditos e não conseguem negociar. Situações em que as pessoas não conseguem tratar de algum subsídio a que tenha direito porque às vezes são muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo.
É óbvio que os serviços sociais dos hospitais dão as indicações básicas, mas muitas vezes são as questões como ‘como é que lá se chega, como é que se vai ao serviço, com quem é que se fala, que impresso é que se preenche, como é que se preenche’. São essas coisas que, quando a família precisa, estamos disponíveis para ajudar. E também damos apoio jurídico às famílias no caso de elas precisarem, por exemplo, pode haver uma situação em que há um despedimento porque há faltas consecutivas ao trabalho, embora as faltas sejam justificadas por doença, há sempre situações em que estas levam a um despedimento ou uma não renovação do contrato. Questões desta natureza são muito recorrentes.
E daí a importância do voluntariado na oncologia pediátrica...
Nós estamos em vários hospitais e em vários serviços. É óbvio que o voluntariado não é só nos hospitais é também nas casas e ao domicílio. O voluntariado hospitalar é sobretudo de entretenimento de quem está internado ou de quem está à espera de um tratamento. Estes voluntários procuram brincar, distrair, levar a rua lá para dentro. Isto é o que é feito pelo voluntário mais comum.
Depois temos voluntariado de pais e voluntariado de Barnabés ou sobreviventes. O voluntariado de pais é um voluntariado de acolhimento dos pais que entram no hospital com diagnóstico novo. É, sobretudo, dizer o que foi a experiência deles, dar-lhes alguma esperança, algumas indicações, explicar que é possível sair disto. E depois também temos jovens, os tais Barnabés, que também fazem voluntariado e também é nesta base: ‘Tu estás doente, eu já estive doente, já estive como tu’. E, portanto, criar aqui alguma relação entre eles e procurar que este apoio de pares se efetive de forma a que eles também criem alguma esperança e resiliência para poderem passar a doença. Isto dá-lhes a perspetiva que é possível ficar bem e, felizmente, a maior parte fica bem.
Quantos voluntários têm?
Temos 600 voluntários a nível nacional.
Quem é que pode ser voluntário na Acreditar e como deve proceder para se inscrever?
Normalmente, a pessoa candidata-se, faz uma entrevista, depois faz uma formação durante um tempo e depois faz um período de estágio, em que é acompanhado por voluntários que já têm mais experiência. Nós temos pessoas que nos ajudam com coisas da sua profissão. Por exemplo, o apoio jurídico que nós damos é feito por advogados que fazem isso ‘pro bono’. O apoio que damos a nível de higiene oral, que os miúdos precisam muito porque os tratamentos que fazem são muito agressivos para os dentes, são feitos por voluntários que são dentistas e higienistas de uma empresa. Hoje em dia temos professores, reikianos, temos sítios em que há voluntários que dão aulas de música ou de inglês às crianças e até aos pais, dança, ginástica. Tudo isto é uma forma de ajudar gira.
A Casa de Lisboa foi a primeira e vai agora fazer 17 anos. Passados cerca de nove anos fizemos a de Coimbra e, mais recentemente, há cerca de dois anos, a do Porto Ainda quanto aos apoios sociais, já chegaram a ‘adiantar-se’ à Segurança Social quando a resposta tarda e a nível médico sabem que há urgência em certos tratamentos?
Acontece, por exemplo, se houver necessidade de uma prótese e esta tiver de ser colocada de imediato e se a Segurança Social ainda não tiver dado resposta. É uma situação que ocorre muito frequentemente com um tipo de cancro que é o retinoblastoma, um cancro no olho que só existe na infância e tem um relativo bom prognóstico desde que seja diagnosticado com tempo, mas há situações em que, sendo feito mais tardiamente ou porque é agressivo, a criança tem de retirar o olho e tem de pôr uma prótese e a possibilidade de aceitação desta é tanto melhor quanto mais rapidamente seja colocada. Portanto, se houver ali um timing em que a Segurança Social ainda não deu resposta, nós pagamos a primeira prótese para que seja rápido e depois então mais tarde entra a Segurança Social e os apoios a que a família tem direito. Por vezes, há também necessidade de alguns suplementos alimentares que são cruciais mas que, eventualmente, não são pagos pelo Estado e que nós sabemos, por indicação médica, que são fundamentais para assegurar o crescimento da criança.
Voltando às Casas Acreditar, quando é que sentiram a necessidade de criar estas casas e porquê?
Quando a Acreditar começou a desenvolver começou a ver que boa parte das famílias tinha de se deslocar, não podia garantir o tratamento dos filhos estando na sua terra de origem e, como fizemos parte desde o início de uma rede internacional que, hoje em dia, se chama CCI (Childhood Cancer International) começámos a ver que nos outros países havia respostas de casas junto dos hospitais, algumas dentro dos hospitais. Existe até uma declaração de princípios, na área da oncologia pediátrica, que recomenda isso. Em Portugal não existia e foi por isso que resolvemos começar a Casa de Lisboa, que foi a primeira e vai agora fazer 17 anos. Passados cerca de nove anos fizemos a de Coimbra e, mais recentemente, há cerca de dois anos, a do Porto.
E quantas famílias podem acolher de cada vez?
A de Lisboa tem capacidade para 12 famílias, a de Coimbra para 20 e a do Porto tem capacidade para 16.
Felizmente, a Câmara cedeu-nos o edifício ao lado [da casa de Lisboa] e vamos aumentar a capacidade de 12 para 32 quartos. Temos a certeza de que assim conseguimos responder às necessidades que existemE sentem que precisam de mais casas? Ou de aumentar? Conseguem dar resposta a todos os pedidos de ajuda?
Temos o número de casas necessário, não temos é o número de quartos necessário em Lisboa. Há 17 anos achámos que esta capacidade era adequada ao serviço mas, neste momento, sabemos que não é porque a casa está sempre com lista de espera. Perante esta necessidade, começámos à procura de soluções de crescimento da casa e, felizmente, a Câmara cedeu-nos o edifício ao lado [da casa de Lisboa] e vamos aumentar a capacidade de 12 para 32 quartos. Temos a certeza de que assim conseguimos responder às necessidades que existem, não só das famílias que são do continente e das ilhas, como também dos PALOP.
Recebem muitos pedidos de ajuda de famílias dos PALOP que vêm fazer tratamentos a Portugal ao abrigo dos acordos de cooperação?
Até agora não conseguíamos admitir mais do que duas, no máximo três famílias que viessem dos PALOP porque essas famílias estão muito tempo seguido em Lisboa. Estão, em média, três anos e, se admitíssemos muitas, ficávamos muito rapidamente com a casa bloqueada. Vêm cerca de 30 famílias por ano dos PALOP para o IPO de Lisboa. Mas quando tivermos os 32 quartos penso que vamos conseguir suprimir as necessidades todas dos PALOP. Das 30 famílias que vêm por ano, obviamente que não vêm todas para aqui, há também um lar dentro do IPO, embora com características diferentes.
Já tivemos aqui bebés que foram diagnosticados ainda antes de nascerem e vieram para aqui logo depois de nascerem. Até há pouco tempo, acolhíamos até aos 18 anos, mas, neste momento, acolhemos até aos 25 Qual é a média de tempo que uma família passa numa Casa Acreditar?
Normalmente, quando vêm das ilhas permanecem quase um ano. Se forem do continente, ronda os 40 dias. O que acontece numa família do continente é que a criança faz um ciclo e a família consegue ir a casa e depois volta mais tarde. O modelo não é estarem aqui em permanência, a menos que sejam situações muito extremas e mais complexas, que exijam que a criança fique mais perto do hospital.
Apoiam crianças e jovens entre que idades?
Nós já tivemos aqui bebés que foram diagnosticados ainda antes de nascerem e vieram para aqui logo depois de nascerem. Até há pouco tempo, acolhíamos até aos 18 anos, mas, neste momento, acolhemos até aos 25. É uma tendência internacional porque se começou a perceber que esta população dos jovens adultos, dos 18 aos 25 anos, tinha cancros mais parecidos com os da pediatria do que com os adultos com mais idade.
Por outro lado, a nossa sociedade tem evoluído de várias formas no sentido de que os jovens tenham a sua vida mais facilitada o que os torna também às vezes um bocadinho mais dependentes dos pais. Um jovem com 19 anos se calhar precisa tanto do apoio dos pais como um jovem de 17 e para nós faz sentido que este acompanhamento se prolongue. E o aumento para 32 quartos também já foi pensado para acolher essa realidade.
E como é o dia a dia numa Casa Acreditar?
Começa ensonado como em todas as casas. As crianças descem para o pequeno-almoço cada uma ao seu ritmo e cada uma segundo o seu estilo. Há aqueles que estão apressados porque os tratamentos começam muito cedo. Esses despacham-se rapidamente. Depois a vivência é como uma casa. A mãe vai às compras, faz as limpezas, arranja qualquer coisa para o almoço, estende a roupa, conversam um bocadinho, às vezes deixam os filhos com os voluntários e vão tratar de assuntos pendentes.
Estes jovens, que já passaram pelo cancro, identificam as temáticas que os afetam no dia a dia e trabalhamo-las internamente no sentido de as crianças que hoje passam por um cancro não terem de enfrentar os mesmos problemasComo é que uma família pode solicitar ficar numa Casa Acreditar? Que tipo de ‘requisitos’ tem de ter?
Nós temos protocolos com os serviços sociais dos hospitais e, normalmente, são os serviços sociais que reencaminham para aqui as famílias. Claro que temos os nossos critérios, é preciso que a criança tenha cancro, são olhadas questões económicas mas não só. As necessidades não são só a esse nível, às vezes, uma necessidade de não residir na área do hospital também é um requisito que dá prioridade. Desde que haja lugar, os assistentes sociais direcionam para cá as famílias e, normalmente, são eles que gerem a própria lista de espera.
O trabalho dos Barnabés [jovens que já tiveram cancro] também é muito importante no seio da Acreditar. Não só no apoio voluntário, como na participação dos sobreviventes em atividades com crianças que hoje ultrapassam o que eles já passaram. De que forma é que este trabalho tem evoluído ao longo dos anos?
Os sobreviventes são um grupo que, além da parte mais lúdica [eventos e viagem à Disneyland Paris], fazem um trabalho na área da sobrevivência e da qualidade da sobrevivência. Trabalham temáticas específicas que eles próprios identificam que são problemas com os quais se defrontam ao longo da sua vida. Por exemplo, não conseguirem fazer um seguro de vida e, por consequência, não conseguem comprar uma casa. Outro exemplo são os problemas de fertilidade. Será que olharam para esta questão quando estavam a fazer os tratamentos? Será que isto era mesmo inevitável ou será que havia forma de conseguir preservar a possibilidade de estas crianças virem a ter filhos?
Ou seja, estes jovens, que já passaram pelo cancro, identificam as temáticas que os afetam no dia a dia e trabalhamo-las internamente no sentido de as crianças, que hoje passam por um cancro, não terem de enfrentar os mesmos problemas. Isso não quer dizer que algumas sejam fáceis de resolver. A nossa ideia é sensibilizar a sociedade para estas questões, o poder político, o poder legislativo.
Seria extraordinário que as pessoas tivessem a noção que uma coisa que não dá trabalho rigorosamente nenhum e sem qualquer despesa é tão importante para a Acreditar e para qualquer outra associaçãoEstes jovens, que já ultrapassaram um cancro, sentem algum tipo de preconceito no seu dia a dia?
Às vezes já passou há muitos anos a situação de cancro e os sobreviventes continuam a ter de lidar sistematicamente com questões que nem nunca imaginaram que iriam ter de ser confrontados, como por exemplo a questão do seguro de vida e de ser necessário um para comprar casa. Estes jovens não conseguem comprar uma casa a menos que tenham alguém que lhes dê um colateral, alguém que dê garantia de qualquer coisa que substitua o seguro. No caso de a família não ter, ficamos numa situação muito complicada. Os jovens não têm, normalmente, património e, muitas vezes, a família também não tem possibilidades que permitam fazer esse tipo de coisas.
Mas há outras questões como entrevistas de emprego. Às vezes perguntas simples como ‘demorou tempo a fazer o seu curso, porquê?’ e ‘esteve doente, mas teve o quê?’ têm de ser respondidas com ‘tive um cancro’ e a resposta, normalmente’ é ‘Ah!’. Na cabeça do entrevistador, conseguem os sobreviventes ver, é: ‘Epah se teve um cancro se calhar não vai ser tão assíduo’. Portanto, a doença que tiveram continua a ter implicações no seu dia a dia e essas temáticas ao serem trabalhadas por eles têm outra força tanto para desmitificar como para expor e tentar alterar aquilo que é possível alterar.
Com que apoios é que a Acreditar conta? Como é que se financia?
Nós vivemos sobretudo de apoios da sociedade civil, de donativos de particulares e empresas, e temos uma percentagem de apoio da Segurança Social que vem para as casas de Lisboa e Coimbra. O apoio da Segurança Social cobre entre 15% a 20% do total das nossas necessidades. E o resto é da sociedade civil, empresas e particulares, mais ou menos em igualdade de circunstâncias. Nos particulares estou a considerar a consignação do IRS, que é uma receita importante para nós. Foi feito um estudo, não há muito tempo, que dizia que só 15% dos contribuintes é que tinham conhecimento e faziam-no efetivamente. Muitas pessoas não sabem que não tem custos, que basta assinalar a associação que querem apoiar. E é uma coisa importantíssima para a Acreditar, porque a receita do IRS dá para sustentarmos pelo menos duas casas durante um ano. Seria extraordinário que as pessoas tivessem a noção que uma coisa que não dá trabalho rigorosamente nenhum e sem qualquer despesa é tão importante para a Acreditar e para qualquer outra associação.
As pessoas nas casas não pagam nada. A estadia é sempre gratuita e é a forma que encontramos para colocar a sociedade a ajudar estas famílias a ter uma vida melhor. Porque não somos nós, é a sociedade que está a ajudarE sem ser com a consignação do IRS, como é que as pessoas podem apoiar a Acreditar?
Normalmente, as pessoas ou dão dinheiro ou dão bens. A nível de dinheiro é muito fácil, até já temos MB Way. Há muita gente que quer dar a um projeto concreto e nós alocamos esse dinheiro a esse projeto. Procuramos ir dando conhecimento à população do que é que vamos fazendo para saberem onde é que o dinheiro delas está a ser alocado. É por isso que as pessoas nas casas não pagam nada. A estadia é sempre gratuita e é a forma como encontramos para colocar a sociedade a ajudar estas famílias a ter uma vida melhor. Porque não somos nós, é a sociedade que está a ajudar. E muitas com bens.
Por exemplo, nós publicamos ou damos a conhecer às pessoas quais são os alimentos que necessitamos para os cabazes e muita gente faz recolhas e até, muitas vezes, nos empregos. E depois há outras formas de ajudar como inscreverem-se como dadores de medula, para dar sangue. Não ajuda a Acreditar diretamente, mas é uma forma de ajudar a mesma causa, como o voluntariado.
O cancro é um problema grande e os números estão a crescer. É de tal maneira grande que o cancro pediátrico fica algures num cantinho esquecido porque é uma realidade que afeta pouca gente, mas afeta toda uma família Com 25 anos de existência quais são as dificuldades e os desafios que continuam por responder?
A principal dificuldade é fazer entender a toda a sociedade e aos decisores que o cancro pediátrico é um cancro que afeta pouca gente mas que tem um enorme impacto na família e, por isso, seria muito importante direcionar algumas medidas de apoio a esta vertente de forma a melhorar significativamente as suas vidas. Por exemplo, o investimento em investigação nesta área é praticamente inexistente. O investimento aos apoios sociais a estas famílias devia ser olhado de uma forma mais consistente e melhorada, embora tenha havido algumas evoluções, é toda uma área que merecia outro tipo de acompanhamento.
O cancro, de uma forma geral, é um problema da sociedade moderna e é um problema grande e os números estão a crescer. É de tal maneira grande que o cancro pediátrico fica algures num cantinho esquecido porque é uma realidade que afeta pouca gente, mas afeta toda uma família. Além disso, um sobrevivente de cancro pediátrico tem muitos anos de vida pela frente, muitos anos de sobrevida que, quanto maior qualidade tiver, mais útil é à própria sociedade.
O investimento que nós fizermos hoje nestas crianças e nestes jovens não é um custo, é uma forma de os tornar cidadãos de pleno direito e muito mais capazes de participar. Se nós hoje em dia investirmos no apoio psicológico para estas famílias, se calhar estamos a apostar no equilíbrio destas crianças e jovens no futuro que os permite ter outro tipo de participação. Se estivermos a investir ao nível do melhoramento dos tratamentos, se calhar estamos a ter cada vez menos sequelas e sequelas cada vez menos agressivas que os permite também participar mais.
A falta de conhecimento sobre esta área também me preocupa porque te m a ver com a falta de investimento, mas tem também a ver com ignorância. Esta falta do despertar da sociedade é uma coisa que me preocupa.
Portugal não tem os ensaios clínicos que poderia e deveria ter até atendendo à dimensão de casos que nós temos e à dimensão do paísA nível do cancro pediátrico, o que é que acha que ainda falha em Portugal? Onde é que é necessário mais investimento?
Não há praticamente ensaios clínicos na área da oncologia pediátrica e estes são necessários para que os tratamentos melhorem, para que sejam mais controlados e para que as sequelas possam ser minoradas. Temos estado a sensibilizar toda a gente sobre esta necessidade. Portugal não tem os ensaios clínicos que poderia e deveria ter até atendendo à dimensão de casos que nós temos e à dimensão do país. Tem de haver mais para que possamos melhorar e para que o país possa avançar do ponto de vista científico.
Esta falta de investimento não é só de Portugal, é uma realidade mais global que Portugal. É óbvio que há umas deficiências que são mais portuguesas mas, de forma geral, o investimento nesta área é pouco a nível mundial porque os números são pequenos. As pessoas não pensam que, apesar de os números serem pequenos, o cancro é ainda a segunda causa de morte pediátrica no mundo ocidental. As sequelas afetam 50% dos sobreviventes e, desses 50%, dois terços têm sequelas graves ou muito graves, do ponto de vista da continuidade da sobrevida. Deve definitivamente haver mais ensaios clínicos que permitam um tratamento mais adequado, mais refinado.
E há também a questão das consultas de seguimento dos sobreviventes que, praticamente, são inexistentes em Portugal, certo?
Sim e achamos que são imprescindíveis! Os nossos jovens estão a lutar desesperadamente para que existam consultas de seguimento de sobreviventes em todo o país, com regras que estejam claramente definidas. Eles precisam de ser seguidos ao longo da vida porque, hoje em dia, sabe-se que alguns tratamentos podem motivar, por exemplo, um problema cardíaco e, se eles forem monitorizados com alguma periodicidade, podem evitar determinado tipo de sequelas. Estas consultas são imprescindíveis e só são feitas em Lisboa para um número limitado de casos. Não é de todo uma prática nacional e nós achamos que é imprescindível para a qualidade de vida deles. É claro que nem todos os casos precisam de uma consulta anual. O que nós precisamos é de uma definição que regulamente cada caso.
A qualidade da pediatria oncológica em Portugal é muito boa a nível médico e a nível de profissionais de saúde. Eles fazem o que podem e, às vezes, o que não podem. Envolvem-se quase pessoalmente, muitos deles investigam em casa. Eles não têm é meios para fazer estas consultasE porque é que isso não está já a acontecer?
Na maior parte dos casos, os hospitais não o fazem porque não têm capacidade de o fazer porque não têm recursos. O IPO de Lisboa ainda faz mas está a pensar alargar muito os períodos de consulta porque, eles próprios, à medida que vai aumentando o número de sobreviventes, começam a deixar de ter capacidade. E isso é uma coisa que me preocupa. Não está a avançar e, pelo contrário, aquilo que existia aqui em Lisboa vai regredir. Todos os indicadores me dizem que, nesta questão, a situação vai regredir.
Podiam prevenir em vez de tratar mas, mais uma vez, estamos perante um caso em que a falta de prevenção vai levar a custos necessariamente mais elevados para toda a gente Então trata-se de falta de recursos?
A qualidade da pediatria oncológica em Portugal é muito boa a nível médico e a nível de profissionais de saúde. Eles fazem o que podem e, às vezes, o que não podem. Envolvem-se quase pessoalmente, muitos deles investigam em casa. Eles não têm é meios para fazer estas consultas. Acho muito complicado que conseguiam fazer mais do que fazem. Portanto, tem de haver é a perceção, por parte do poder político, relativamente ao impacto que tem o facto de não haver esse seguimento na vida das pessoas. E qual é o custo para o Serviço Nacional de Saúde pelo facto de isto não ser feito, porque o investimento não é feito aqui mas o gasto será feito no futuro e com outras consequências. Podiam prevenir em vez de tratar mas, mais uma vez, estamos perante um caso em que a falta de prevenção vai levar a custos necessariamente mais elevados para toda a gente.
Nós temos os melhores tratamentos que se fazem no mundo. Não temos é registo das coisas. Aparecemos como um país em desenvolvimento o que não me parece justo para a ciência em PortugalOutra preocupação da associação continua a ser a ausência de dados relevantes e atuais na oncologia pediátrica. Porque é que estes dados continuam a não ser atualizados? Quem são os responsáveis? E quais as consequências desta desatualização?
A legislação criou há uns dois anos a necessidade de criar um registo oncológico pediátrico porque é com base nesse registo que é possível saber quantos casos é que há diagnosticados e de que tipos de cancro falamos. Mas isso não está a acontecer como devia. Como é que se pode adotar políticas públicas relativamente a uma determinada realidade se não a se conhece?!
A falta de dados leva a que seja muito difícil tomar medidas e inibe-nos de participar em determinados projetos a nível internacional, porque Portugal não tem dados. Tenho estado em conferências internacionais onde Portugal aparece ao lado de países que não estão, nem de perto nem de longe, no nosso nível de desenvolvimento a nível de tratamento. Nós temos os melhores tratamentos que se fazem no mundo. Não temos é registo das coisas. Aparecemos como um país em desenvolvimento o que não me parece justo para a ciência em Portugal e é inibidor da nossa participação em determinados tipo de estudos e realidades.
Se não há dados como é que se sabe qual é a incidência de determinado cancro na população? Como é que se sabe qual é a taxa de mortalidade? Sabe-se no geral porque os médicos, hospital a hospital, vão fazendo os seus registos. Não há um banco de dados com todos os dados de Portugal inteiro que tenha o detalhe necessário. E isto só acontece com o cancro pediátrico.
E porque é que isto acontece?
Acontece porque foi criado no pressuposto que eram os médicos de deviam fazer este trabalho. Um registo destes por pessoa demora entre 30 a 50 minutos e esta não é nem deve ser a prioridade do médico que está a fazer a consulta. A nível global, existem registadores ou data manager que fazem este trabalho. Pessoas com alguns conhecimentos médicos e de informática.
E quantos registadores precisávamos a nível nacional para combater essa lacuna?
Pelas nossas contas, com quatro ou cinco pessoas, a nível nacional, ficávamos com o problema resolvido.
Já fizeram chegar essa proposta ao poder decisor? Tiveram alguma resposta?
Nós [toda a comunidade que trabalha na oncologia pediátrica portuguesa] fizemos chegar ao poder político esta medida e prometeram-nos que o assunto iria ser resolvido em breve.
Ao fim de cinco dias a maior parte das famílias ainda nem percebeu o que é que lhes aconteceu. (...) Há países que dão 30 dias, há países que dão 60. Nós não temos querido ser muito exagerados a pedir. 30 seria equilibrado. A nível deste pedido não tenho qualquer resposta. Há um autismo total do legisladorUma das questões pelas quais a Acreditar também se tem batido é a licença por morte de familiar. Defendem que, no caso da morte de um filho, esta devia ser de 30 dias e não de cinco, certo?
Esta não é uma questão linear. Aqui há tempos tive uma conversa com deputados de um grupo parlamentar que me disseram que quanto mais depressa as pessoas forem trabalhar, mais depressa recomeçam a integrar-se na sua vida ativa, que a sua capacidade de reação e de recuperação é mais rápida se as pessoas quase forem obrigadas a trabalhar. Ora, se a pessoa quiser sentir esse ímpeto obviamente que sim mas, na maior parte dos casos, as pessoas precisam desesperadamente de recuperar, de descansar. É que não foi só o momento da morte, que é de uma violência atroz pois nós não estamos programados para perder os nossos filhos, é anti-natura, é de uma violência tal que a pessoa precisa fazer o seu luto mesmo, do seu tempo e não de correr de um lado para o outro. Não são cinco dias. Ao fim de cinco dias a maior parte das famílias ainda nem percebeu o que é que lhes aconteceu. Estão completamente aturdidas e, além disso, estão completamente exaustas porque passaram, na maior parte dos casos, anos a lutar pela vida de um filho. Anos. Não foi um mês, não foi uma semana. Foram anos.
Portanto, nós achamos isto uma injustiça e não é só relativamente ao cancro, acho que isto devia ser uma medida para todos os pais. Há países que dão 30 dias, há países que dão 60. Nós não temos querido ser muito exagerados a pedir. 30 seria equilibrado entre a necessidade de a pessoa retomar a sua vida e a necessidade de a pessoa ter o seu tempo. A nível deste pedido não tenho qualquer resposta. Há um autismo total do legislador. Não há debate, parecemos uma vozinha a gritar no deserto e ninguém ouve. E nós já falámos disto na Assembleia da República, já falámos disto com o Governo anterior e já tínhamos falado com o anterior e sentimos que não há a perceção daquilo que nós estamos a falar. Não sinto do lado dos interlocutores o entendimento real daquilo que estamos a dizer.
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* Estudo da e Netsonda, nov. e dez. 2023 produtodoano- pt.com