Portugal assinalou, recentemente, um ano desde que foi diagnosticado no país o primeiro caso de SARS-CoV-2. Como foi este ano pelos olhos de quem o 'viveu' nos corredores hospitalares?
José Artur Paiva, diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João, deu 'voz' a este 'retrato' da evolução da pandemia nas unidades de cuidados intensivos, tantas vezes pressionadas pelo aumento de casos graves de Covid-19.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o especialista, que é também responsável pela pasta da Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, defendeu que o desconfinamento deve ser "regulado, gradualista e monitorizado".
No entendimento de José Artur Paiva, "necessitamos sobretudo de um robustecimento grande da resposta da saúde pública", cujos pilares assentam numa testagem "extensiva" e na realização de "inquéritos epidemiológicos em 24 horas". Pela primeira vez, o especialista vê "esperança de não haver uma quarta onda". Mas deixa o alerta: "Ela pode existir".
Portugal começa agora a sair da terceira vaga de Covid-19, a mais severa desde que a pandemia chegou ao país. Considerando a pressão sobre as unidades de cuidados intensivos (UCI), como se adaptou o Serviço de Medicina Intensiva para responder às necessidades?
A primeira, a segunda e a terceira vaga foram bastante heterogéneas à escala nacional. No Norte do país, os períodos mais difíceis foram março e abril do ano passado, na primeira vaga, que teve uma expressão muito vincada a Norte. Depois, na segunda onda, o final de novembro foi um momento bastante difícil. A terceira vaga teve no Norte uma expressão menos marcada do que em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) e no Alentejo e muita da nossa atenção, aqui no Centro Universitário e Hospitalar de São João (CUHSJ) foi até dirigida para a forma como podíamos ajudar essas regiões que estavam com mais dificuldades.
Esta Instituição tem um ADN de grande resposta a estes momentos. Este não é o primeiro até porque já tivemos a gripe A, há 10/11 anos, e problemas de natureza não infeciosa. Agora, foi claramente nossa perceção que a acessibilidade à Medicina Intensiva pelo doente com Covid-19 grave era um forte determinante da redução da letalidade, isto é, se o acesso à Medicina Intensiva fosse difícil, a letalidade da doença ia aumentar.
Por isso, foi claro para nós que garantir esta acessibilidade à Medicina Intensiva dependia fundamentalmente de dois vetores. Um deles prende-se com a necessidade de uma grande plasticidade de infraestrutura, ou seja, de sermos capazes de transformar áreas que não são habitualmente de UCI em novas áreas de Medicina Intensiva. A segunda diz respeito à capacidade de fazer um aumento dos recursos humanos que eram, à escala nacional, o grande défice.
E quando é que esse trabalho começou a ser colocado em prática?
Esse trabalho começou a ser feito muito precocemente. Logo em fevereiro [de 2020] começámos a preparar-nos perante as notícias que vinham de outros países europeus. Transformámos uma área de enfermaria de Cirurgia Geral, que era contígua a uma das nossas unidades funcionais, e ganhámos 12 camas. E fizemos ‘upgrade’ de áreas do nosso Serviço que eram normalmente de cuidados intermédios para cuidados intensivos.
Quando entrámos na primeira onda, já tínhamos este ‘upgrade’ de camas intermédias em intensivas e um ganho de 12 camas em relação às nossas habituais 62. Depois, foi persistentemente assim, isto é, fomos sempre fazendo adaptações. Chegámos a ter, em outubro/novembro, uma outra área de enfermaria, desta vez de Cirurgia Vascular, que foi transformada numa outra UCI. E finalmente uma unidade intermédia que era de Cirurgia Cardiotorácica, que foi também transformada numa unidade intensiva, neste caso de não Covid. Tivemos sempre uma preocupação muito grande em manter os cuidados críticos também aos doentes não covid-19.
Chegámos a ter 116 camas de Medicina Intensiva global, que é um grande aumento em relação às 72 que foram o início da resposta. E destas 116 fomos alternando algo como 60% para Covid-19 e 40% para não Covid-19 e o inverso, conforme a evolução da curva epidemiológica. E não só numa lógica de resposta para dentro da Instituição e para a nossa população de referência direta, mas numa lógica de apoio e de supletividade a outras instituições e outras geografias que estavam com mais dificuldades em cada altura.
Não iria haver priorização de doentes, não iríamos escolher entre dois doentes críticos
Neste processo de continua adaptação do Hospital perante o aumento de casos de Covid-19 foram definidas ‘linhas vermelhas’?
A linha vermelha que traçámos dizia respeito ao número mínimo abaixo do qual não passaríamos para doentes não Covid. Deixámos claro desde o início que havia um compromisso de natureza ética que era exatamente igual para o doente com Covid-19 e para o doente não Covid-19. Não iria haver priorização de doentes, não iríamos escolher entre dois doentes críticos. A priorização entre dois doentes críticos não podia existir e não existiu na nossa Instituição.
A priorização que se fez foi, a certa altura, resultante da necessidade de adiar uma série de atividade eletiva programada de natureza não prioritária, nomeadamente cirurgias eletivas não prioritárias.
As unidades de cuidados intensivos têm sido severamente pressionadas ao longo da pandemia. Como estão as equipas que aí trabalham um ano depois do ‘pesadelo’ ter começado?
A grande dificuldade [durante este percurso] foi de recursos humanos. O país fez uma preparação boa, sistémica, em termos de equipamentos, ventiladores, bombas e seringas de perfusão. Mas em recursos humanos partimos com um défice muito significativo. O país tinha poucos recursos humanos de Medicina Intensiva, em relação à média europeia, e os esforços de facilitação de contratação pública de médicos e enfermeiros só muito tardiamente é que foram postos à disposição da administração hospitalar. A autonomia da administração hospitalar não era suficiente no início desta resposta.
A estratégia adotada passou por necessariamente ter de ir buscar pessoas fora da Medicina Intensiva que tinham alguma experiência na área, que já tinham trabalhado connosco e que estavam em áreas não muito diferentes e que percebiam a nossa linguagem. Só foi possível sobreviver a esta duplicação de área de trabalho, de camas e de doentes, através da integração de profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, técnicos de diagnóstico e terapêutica que normalmente trabalhavam noutras áreas e que foram integrados nas nossas equipas sob a liderança dos profissionais dos intensivos. Houve profissionais que vieram de áreas como o bloco operatório, unidades de recobro, Cirurgia Cardiotorácica e só assim foi possível responder.
E mesmo com esta ajuda, o número de horas realizado por cada um de nós foi muitíssimo superior àquilo que é o normal. E mais do que isso, a própria intensidade de trabalho era muito maior do que é habitual. A equipa está extremamente cansada nesta altura e uma das nossas preocupações neste nadir pandémico é precisamente tentar ter tempo de descanso para estas equipas, quer para as que trataram de doentes Covid-19, quer para as que estiveram a tratar de doentes não Covid-19.
Foi o cenário talvez mais desafiante, do ponto de vista de intensidade
Este foi o pior cenário a que já assistiu durante a atividade assistencial?
Foi o cenário talvez mais desafiante, do ponto de vista de intensidade. Na altura da Gripe A, tivemos quase seis meses para nos prepararmos porque ela começou no hemisfério sul (com a diferença de invernos entre um hemisfério e outro) e neste caso tivemos basicamente um mês/mês e meio para nos prepararmos.
E foi mais desafiante pela intensidade de preparação, pelas dúvidas no início acerca do tipo de transmissão, do agente infecioso e dos equipamentos de proteção individual que deviam ser usados, por uma certa reclusão a que todos nós nos devotamos em relação às nossas famílias, aos nossos amigos e à nossa sociabilização normal. E depois por uma intensidade de trabalho que pensávamos que ia ser, no início, de dois/três meses, mas que acabou por ser extremamente prolongada.
Por isso, do ponto de vista destes vetores, esta foi certamente a fase mais intensa da minha vida. Talvez não diga a mais difícil porque fiz coisas mais complicadas, mas certamente a mais intensa e a mais cansativa.
Ao longo deste ano, o perfil do doente crítico Covid-19 foi mudando? Ou a necessidade, no domínio da Medicina Intensiva, foi-se mantendo?
Não podemos dizer que, em termos de Medicina Intensiva, se note uma diferença muito significativa, mas há diferenças. A primeira é que, embora a idade média, comparando a primeira onda com a segunda e a terceira, seja a mesma, o percentual de doentes jovens é claramente maior na segunda e na terceira do que na primeira vaga.
A segunda diferença é que, a certa altura, na segunda/terceira onda, sobretudo a partir de novembro, começámos a ver chegar os doentes mais tarde em relação ao início de sintomas. Na primeira onda, os critérios de internamento eram totalmente diferentes e chegavam a ser internados doentes com muito baixa gravidade. Agora não. O tempo entre sintomas e vinda ao hospital aumentou muito, o que pode decorrer de um acesso um bocadinho mais complicado ao próprio diagnóstico.
Depois, outro aspeto diferente é que, na segunda/terceira onda, usámos um fármaco que não usámos na primeira, a dexametasona. Este medicamento é um corticoide, um anti-inflamatório, e quando o doente respondia a esta terapêutica saía bem em poucos dias. Mas os pacientes que não respondiam a esta terapêutica acabavam por ter uma gravidade maior do que os da primeira onda.
Com estes fatores, a letalidade do doente crítico com Covid-19 foi, na segunda/terceira onda, superior à da primeira. Mas, de qualquer maneira, no Centro Hospitalar de São João, sempre tivemos resultados de letalidade bastante baixos. Na primeira onda, tivemos uma letalidade, dentro do Serviço de Medicina Intensiva, de 16% e uma letalidade à saída do hospital de 21%. Agora, na segunda/terceira onda, estes valores passaram para 28% e 30%. São dos valores mais baixos à escala mundial.
O abrandamento das medidas no Natal foi apontado como uma das causas desta terceira vaga. Partilha da mesmo entendimento?
Há três razões que a justificam, na minha opinião, e a primeira prende-se com a circulação das pessoas, que aumentou muito a partir de duas semanas antes do Natal e aumentou ainda mais durante e após o Natal. Esse desconfinamento, o encontro das pessoas muitas vezes desprotegido, levou a um aumento da transmissão do vírus.
Depois, a transmissão do vírus foi ainda maior porque apareceu cá a variante de Kent [do Reino Unido] - B.1.1.7 -, que, como é mais transmissível, se tornou rapidamente a mais prevalente. E o terceiro fator também não pode ser esquecido: confinou-se muito tarde. Demorou-se muito tempo a tomar a decisão de confinamento e, quando se tomou, fez-se de forma gradualista. Estes três fatores foram determinantes para a magnitude dessa terceira vaga, onde, não tendo havido rutura, estivemos muito próximo dela.
É preciso que este desconfinamento seja regulado, gradualista e monitorizado e que essas métricas sejam claras
O primeiro-ministro anunciou ontem o plano de desconfinamento. Este é o momento certo para desconfinar?
Há uma perceção que temos de ter: já começámos a desconfinar. O cidadão e o seu comportamento têm um efeito regulador imediato. Da mesma maneira que o cidadão português percebeu, talvez antes até do encerramento das escolas e da legislação real do Governo, que deveria confinar, este revela agora uma fadiga de confinamento. Todos nós já percebemos - e os índices também nos mostram isso - que a circulação de pessoas aumentou e o próprio Rt também. Nos últimos dias já está com uma tendência ligeiramente crescente, embora ainda bastante baixo.
O desconfinamento não é para discutir se sim ou não, o desconfinamento vai existir e tem de existir. E já que vai existir a mensagem principal é que deve ser regulado. Temos de continuar a dar dados, indicadores e planos ao cidadão e torná-lo parte integrante desse plano, torná-lo responsável pela sua implementação e efetivação e isso só se faz com liderança.
É preciso que este desconfinamento seja regulado, gradualista e monitorizado e que essas métricas sejam claras. Para que este processo de desconfinamento ocorra, é claro que precisamos de taxas de transmissão do vírus mais baixas como, aliás, já conseguimos. E precisamos do 'respirar' do sistema hospitalar, que está também já em boa evolução. Mas necessitamos sobretudo de um robustecimento grande da resposta da saúde pública.
Por onde passa esse “robustecimento” da saúde pública?
A matriz em que este desconfinamento se fará de forma gradual e em tranquilidade decorre deste magma de robustez da saúde pública, que se expressa por aquilo que tenho vindo a dar ênfase: a capacidade de testar de uma forma extensiva. Devemos testar todos aqueles que são casos suspeitos, os contactos de casos diagnosticados e também todos aqueles que têm uma exposição maior e, portanto, maior probabilidade de aquisição da infeção. E este número de testes tem de ir claramente para 50 vezes acima do número de diagnósticos.
Depois, deve-se fazer rastreamento e isolamento de contactos e inquéritos epidemiológicos em 24 horas para evitar o aparecimento de cadeias de transmissão. E temos de estender o nosso plano de vacinação. Creio que aí está uma boa notícia. É percetível que há um acelerar do programa de vacinação, considerando que há um problema à escala europeia de fornecimento de vacinas. Temos de caminhar de forma rápida e várias ações foram tomadas nesta área nos últimos tempos, o que é positivo.
Temos de ter um sistema de deteção de novas variantes também muito dotado e atento, apontando sobretudo para a avaliação de pessoas que desenvolvem infeção quando já tiveram ou quando já estão vacinadas. A nossa atenção a variáveis de escape é extremamente importante. Esta ausência de ondas é um dos grandes objetivos de saúde pública para os próximos tempos
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem capacidade para alavancar essas medidas, nomeadamente de testagem e de rastreamento de contactos em 24 horas?
Acho que tem de ter. Talvez sejam esses os dois elos mais fracos desta matriz de segurança e tranquilidade. Talvez sejam os dois elos onde tenhamos de melhorar mais para chegarmos a esse momento de tranquilidade. Creio que em termos de testagem é muito importante que convoquemos a sociedade em geral também.
Tenho notado que há dotação de equipas para a realização de inquéritos epidemiológicos e tenho notado - e quero ter essa esperança - que há uma ênfase nessa preocupação e nessas mensagens de que esta matriz de segurança da saúde pública é essencial para um desconfinamento seguro.
Não temos dúvidas de que o vírus vai ficar cá durante um tempo, provavelmente durante anos, mas o que queremos evitar são os altos e baixos, as ondas. Temos de arranjar uma endemia da existência do vírus, temos de sair do oito e do 80, sair do confinamento e desconfinamento e saber viver com determinadas restrições, mas o mais perto de uma vida social normal. Esta ausência de ondas é um dos grandes objetivos de saúde pública para os próximos tempos. O outro grande objetivo é a recuperação da atividade não Covid.
É a primeira vez que vejo esperança de não haver uma quarta onda. Mas a mensagem não é esta. A mensagem é: ela pode existir e existirá se não houver estes cuidados, estas medidas que nos convocam a todos
Devemos temer uma quarta vaga da pandemia antes da tão ansiada imunidade de grupo?
Devemos estar conscientes que ela pode existir. Não sei se vai existir ou não, tenho esperanças que não e acho que está constituída uma matriz de opinião e de consenso nacional e um contexto de decisões que pode evitá-la.
A primeira vez que me é mais claro que pode não haver uma próxima onda é agora. Sempre disse que a segunda onda existira e que a terceira, quando vi determinadas decisões, também iria existir, embora pudesse ter sido evitada pelo menos naquela magnitude. E é a primeira vez que vejo esperança de não haver uma quarta onda. Mas a mensagem não é esta. A mensagem é: ela pode existir e existirá se não houver estes cuidados, estas medidas que nos convocam a todos.
Considerando que as vacinas não evitam a 100% a infeção pelo SARS-CoV-2, mas reduzem a probabilidade de doença grave, é de esperar um alívio nas UCI?
O efeito [da vacina] é muito maior na evicção da doença moderada e grave do que propriamente na evicção da doença em si. E podemos fazer essa visão para mais vacinas para além das direcionadas para o SARS-CoV-2. Também é verdade para a vacina da gripe. É absolutamente maravilhoso e extraordinário que tenhamos um número de vacinas com um grau de efetividade e segurança deste nível em tão pouco tempo. E mau era que colocássemos em dúvida esse bem que é fundamental.
As grandes dúvidas sobre as vacinas são se elas são capazes de evitar os casos assintomáticos, os casos leves e até a capacidade de transmissão. Essa é uma dúvida que precisamos de mais tempo para tirar. Mas há essa ideia que as vacinas vão permitir reduzir largamente a sobrecarga do sistema hospitalar até de uma forma mais precoce do que o atingimento da imunidade de grupo. Portanto, vamos ter esse efeito das vacinas antes do efeito da imunidade de grupo.
Durante esta crise pandémica, há algum caso de superação nos cuidados intensivos que o tenha marcado de forma particular?
Há histórias extraordinárias, porém eu não gosto de particularizar porque isso também nos individualiza e o nosso papel é de humildade e discrição. Neste ano, vi muitas vezes no Centro Hospitalar de São João doentes com formas gravíssimas de doença, submetidos a suportes orgânicos complicados, extensivos e múltiplos e que, ao fim de muito tempo e com um tempo de recuperação muito elevado, recuperaram para vidas com qualidade e alguns deles foram até surpreendentes para mim.
Mais uma vez vi a força da espécie humana no seu melhor. Uma das coisas que me lembro muito e que tenho citado é a frase do Albert Camus: “As epidemias mostram sempre o que de melhor tem a espécie humana”. E vi isso dos dois lados. Vi isso do lado dos profissionais de saúde, pelo empenho, entrega e dedicação, pelo esforço, pela sublimação de um cansaço extremo. Mas também vi isso pelo lado dos doentes, pela forma como foram capazes de dar a volta a situações graves, de se empenhar numa recuperação extraordinária.
E vi isso nos 14 dos 17 doentes que tiveram Covid-19 grave, que estiveram mais de três meses em cuidados intensivos aqui no CHUSJ, e que acabaram por sobreviver e ter uma vida normal. Essas 14 pessoas são um exemplo.
Um mês depois da saída do hospital, 80-85% das pessoas têm uma perceção de vitória, de ter valido a pena a batalha
Como é o processo de recuperação de alguém que esteve três meses em cuidados intensivos? Quanto tempo depois a pessoa volta à atividade normal?
Estar em cuidados intensivos prolongadamente, nomeadamente naquilo que as pessoas chamam de coma induzido, traz várias sequelas e a ciência até arranjou um nome para esse quadro: chamamos-lhe Síndrome Pós-Cuidados Intensivos. E este é um quadro que tem várias implicações, do lado psicológico, físico e de perda de independência e de mobilidade, por fraqueza muscular e por vezes com necessidades de reabilitação muito prolongadas.
A Covid-19, nas suas formas mais críticas, tem isto exponencialmente. É uma doença que debilita órgãos fundamentais, como os pulmões. É uma doença que tem cursos de internamento normalmente mais prolongados que as outras doenças de cuidados intensivos. A média está entre as duas/três semanas, mas às vezes é muito mais comprido [o internamento].
E depois é uma doença multissistémica, afeta outros sistemas orgânicos, como o neurológico. A Covid-19 é um excelente balão de ensaio para avaliarmos esta recuperação. Aqui no Serviço, temos uma avaliação de 'follow up' e telefonamos ao doente um mês depois da alta hospitalar e fazemos um inquérito para avaliar a situação. Através desse telefonema, selecionamos os que nos parecem mais precisar de ajuda, e avaliamos em consulta presencial, tentando desbloquear problemas em termos de reabilitação.
Um mês depois da saída do hospital, 80-85% das pessoas têm uma perceção de vitória, de ter valido a pena a batalha e de regresso a uma atividade de socialização normal. Este é um resultado formidável. Mas só metade está completamente independente nas suas atividades domésticas e só um terço está completamente independente nas suas atividades fora de casa.
Antes do início da pandemia, os governantes asseguravam que o SNS estava preparado para a Covid-19. Pelos ‘olhos’ de quem viveu este ano nos corredores hospitalares, o SNS estava, efetivamente, preparado?
Nenhum país europeu estava preparado para uma pandemia desta magnitude no sentido da intensidade, da prevalência e da longevidade do desafio. Nenhum sistema estava preparado sobretudo para uma doença que é nova. Na minha opinião, nenhum sistema se pode dizer preparado. O que é importante dizer é que estamos hoje muito melhor preparados.
A nível da Medicina Intensiva, temos uma maior capacitação, temos mais camas, mais equipamentos e temos um bocadinho mais de pessoas, sendo que precisamos de reforçar mais os recursos humanos. Mas estamos sobretudo mais bem preparados porque trilhámos uma série de processos e de soluções que, embora possam ser desmontadas nestas fases de nadir pandémico, sabemos agora como podem ser escaladas novamente se este ou outro desafio surgir.
O facto de termos conhecimento, de termos inovado e experimentado estes novos processos dá-nos uma capacitação muito grande para ser mais fácil voltar a fazer estes procedimentos, até de forma melhor e menos dolorosa num novo desafio. E há muitas coisas no sistema hospitalar que a pandemia tornou evidente. Estes grandes desafios são sempre reveladores, revelam as pessoas, revelam os grupos, revelam os processos, o que vale a pena e o que não vale. Portanto, esta capacidade que a pandemia teve de nos ensinar é absolutamente fundamental.
A resposta à segunda/terceira onda na Administração Regional de Saúde (ARS) Norte foi mais capaz do que em outras ARS, talvez porque na ARS Norte haja instituições mais maduras no sentido do seu relacionamento e apoio interinstitucional, mas também pelo enorme desafio que foi a primeira onda. Isto é, o processo de capacitação, de resposta e de novos processos que tiveram de ser implementados na primeira onda, que se fez sentir muito no Norte, levou a que na segunda vaga estivéssemos com um treino e resposta mais capaz.
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