Começava há cerca de um ano a certeza de que o mundo estava a ser afetado por uma pandemia que iria mudar a vida de toda a gente e que nos faria mudar a forma como olhamos para os profissionais de saúde: o SNS corria o risco de rebentar pelas costuras.
Se numa primeira vaga, Portugal conseguiu dar o exemplo e evitar um cenário semelhante ao de países como Espanha e Itália, facto é que a segunda e terceira vagas viriam a colocar-nos em situação semelhante: hospitais sobrelotados; falta de pessoal médico, trabalhadores de saúde exaustos e, na sequência de tudo isso, um número crescente de mortos e a incapacidade de o SNS de dar resposta a todos os doentes.
No rescaldo de um ano de pandemia estivemos à conversa com a bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Sempre disposta a dar a cara pelos "seus enfermeiros", Ana Rita Cavaco lembra as dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde e não poupa críticas ao Governo por ter continuado a oferecer condições precárias aos que deram "o suor e as lágrimas" durante esta luta. Considerando que se tomaram "mais decisões políticas", do que decisões com base em conhecimentos técnicos e científicos, a bastonária sublinha que é preciso tomar decisões a pensar no bem das pessoas e não nas eleições que se avizinham.
A polémica em torno da vacinação indevida também não foi posta de parte nesta conversa, sendo que Ana Rita Cavaco reitera as críticas, defendendo que se tratou de um "comportamento criminoso" e que a "culpa pública e vergonha que deviam ter ninguém lhes tira".
Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Assinalou-se, na semana passada, um ano de pandemia. Que rescaldo faz e o que é que acha que a pandemia nos veio ensinar?
Foi um ano muito complicado para todos nós, sobretudo para os profissionais de saúde, porque nós sabíamos tanto como as outras pessoas que não são desta área. Foi muito difícil lidar com uma coisa que não conhecíamos - e que ainda hoje conhecemos muito pouco - e ainda estamos a aprender e a lidar com as novas variantes, e a eficácia da vacina nessas variantes.
A par disso, há o problema da produção de vacinas e de se estar à espera de um objetivo que não vai acontecer. Porque nós não vamos ter 70% da população vacinada no final do verão. Com sorte teremos 30%, e isso tem que ver com a produção de vacinas e o número de vacinas que chegam a Portugal.
E esse é o grande problema [na gestão da pandemia], é a questão da comunicação, porque é preciso mais técnicos e menos políticos, e é preciso ouvir-se mais os profissionais e mais as ordens profissionais, porque nós – a Ordem dos Enfermeiros e não só - fomos ouvidos por nossa iniciativa, nós é que fomos proativos e enviávamos as propostas, as sugestões e, regra geral, andámos sempre à frente dos políticos. Prova disso, é o facto de termos instituído o uso obrigatório de máscaras quando ainda nem se falava disso em Portugal.
Porque é que faltou essa iniciativa ao Governo?
Porque nós temos de escolher uma forma de fazer política, ou fazemos política a pensar em eleições ou para as pessoas. E essa é a grande questão. Eu vejo a política como uma forma de melhorar a vida de toda a gente. Se estivermos a tomar decisões com base em eleições, e eu também as tenho, nenhum de nós faria aquilo que é o mais correto.
Veja o caso dos enfermeiros, que é quem eu represento. Andámos cinco anos a dizer uma coisa que era óbvia e que ficou à vista de todos: Portugal é o país da OCDE com o número mais baixo de enfermeiros por mil habitantes e propusemos um plano para isso. Se ele tivesse sido posto em marcha, eu não tenho dúvidas de que tinha havido mortes evitadas, porque não basta comprar ventiladores e exportar enfermeiros, que é o que nós fazemos.
Em ano de pandemia, deixámos emigrar cerca de 1.200 enfermeiros e eles fazem-no porque não são aqui contratados com vínculos definitivos, são mal pagos e não têm condições. E a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), logo no início da pandemia, alertou os estados membros que havia um bem escasso e que tinha de ser fixado nos seus países e disse, especificamente, que eram os enfermeiros.
Durante a primeira vaga, nós avisámos que não estávamos preparados do ponto de vista dos equipamentos de proteção individual e fomos todos apanhados de surpresa. Mas o problema da segunda vaga foi por falta de enfermeiros. Só que ainda assim, o Governo continuou a fazer os chamados contratos precários. Eu não destrato alguém que está a combater uma pandemia quase sem meios. Não se trata assim gente que deu a vida, o suor e as lágrimas, quando não havia mais ninguém.
Houve uma rutura de enfermeiros e andámos, do ponto de vista de recursos humanos, a combater a pandemia com fisgas
E porque é que a Ordem se mostrou contra a contratação de enfermeiros com formação estrangeira, contratação essa que visava colmatar a falta de profissionais nesta área no SNS?
Isso é uma questão que não tem que ver com esta. A dada altura, o Governo, nomeadamente a ministra da Saúde, pediu que fizéssemos um levantamento e os ajudássemos a dizer quais é que eram os enfermeiros que estavam disponíveis no mercado para contratar. E nós assim fizemos, ‘n’ vezes, durante meses. Foi havendo alguns enfermeiros disponíveis no mercado e a dada altura houve um ponto de rutura. Foi uma situação complicada porque nós tínhamos pedido ao Governo que fizesse um pacote de medidas para que estes regressassem, porque como se sabe temos 20 mil enfermeiros no estrangeiro. E muitos manifestaram intenção de voltar, nem que fosse dois ou três meses, e nós alertámos o Governo para isso. Outros mostraram até intenção de voltar definitivamente mas era preciso que os contratos não fossem por quatro meses, porque eles não podiam largar um vínculo estável e uma obrigação que têm para com outros países assim. O Governo não fez nada disso e nós continuámos, do ponto de vista de recursos humanos, a combater a pandemia com fisgas
Enquanto tudo isto estava a acontecer, sentimo-nos obrigados a agir legalmente. O Governo fez sair um decreto em Conselho de Ministros em que aqueles enfermeiros que pretendiam contratar não tinham de estar na Ordem. Isto viola não sei quantos decretos, viola a legislação e, ainda por cima, a própria legislação das ordens profissionais. Mas isso não é o que nos preocupa mais. O que nos preocupa é a segurança e a vida das pessoas. Porque estamos a falar de pessoas que podem nem sequer ser enfermeiros. Nós já detetámos pessoas com diplomas falsos e as instituições não têm capacidade para ir obter as mesmas informações que a Ordem obtém, porque é assim que se faz o processo de inscrição, que é um processo sério. Há uma série de medidas de segurança, de proteção de todos nós e da proteção da vida de todos nós [que têm de ser cumpridas]. Uma delas é a língua. Nenhum enfermeiro português vai trabalhar para o Reino Unido sem dominar a língua. São até muito exigentes e pedem inclusive um grau mais elevado na prova linguística do que nós aqui.
Portanto, foi uma imprudência do Conselho de Ministros e ao que nós sabemos não foi contratado nenhum enfermeiro estrangeiro. Era um decreto que vigorava durante o estado de emergência, é um facto, mas a pandemia não pode servir de desculpa para nós fazermos as coisas sem qualidade e pôr a vida dos nossos cidadãos em risco.
Vamos ter uma 4.ª vaga e é importante ouvirem mais os profissionais de saúde e as ordens profissionais e não só especialistas que o Governo escolheu para fazer política em vez de fazer aquilo que deve em termos técnicos
A pandemia veio tornar pública a fragilidade do nosso Serviço Nacional de Saúde, algo que era há muito já denunciado pelos profissionais de saúde. Acredita que é agora, e graças à pandemia, que alguns destes problemas se podem resolver?
Não sei. Porque isso depende daquilo que o Governo aprendeu ou não relativamente àquilo que tem de fazer para o SNS. Nós precisamos de definir claramente, em Portugal, qual é a prioridade que queremos em termos de setores chave da sociedade. E essa prioridade tem de ficar muito clara. Ou quero salvar a TAP e enterrar não sei quantos milhares ou quero ter um SNS universal, acessível a toda a gente e não para pobrezinhos. Porque agora ficou à vista de todos que, se não fosse o SNS, teria havido ainda mais mortes. Além de tudo aquilo que ficou pelo caminho, porque há muita coisa que deixámos para trás ao longo deste tempo, em termos de rastreio, de promoção, tratamento de outras doenças...
Portanto, primeiro, eu quero investir na saúde e na vida dos portugueses, ou quero investir na TAP e nos bancos? E segundo, por detrás disto tem de haver uma política séria de recursos humanos em que eu tenho de ter a noção de que não posso estar a combater uma pandemia que não sei quando acaba com estas condições. Todos os países europeus estão a entrar numa nova vaga e a começar a confinar e Portugal também espera uma quarta vaga. Isto deve ficar bem patente, que é para depois não vir o Governo e o senhor Presidente da República dizerem que não sabiam, porque toda a gente sabe e sempre teve acesso às mesmas informações.
Quando isto começou a acontecer em dezembro, lembro-me de uma entrevista do Sr. Presidente a dizer que a culpa era dele e que ninguém previu. É mentira. Todos nós sabíamos o que estava em cima da mesa e é por isso que é tão importante ouvirem mais os profissionais de saúde e as ordens profissionais e não só especialistas que o Governo escolheu para fazer política em vez de fazer aquilo que deve em termos técnicos.
Nós vamos ter uma 4.ª vaga e sem uma política de recursos humanos não vamos combater essa pandemia. Nós vamos precisar muito destes enfermeiros para recuperar tudo aquilo que perdemos em termos de promoção, saúde, prevenção, e tratamento. Não há só mortes evitáveis na Covid, há mortes evitáveis que aconteceram em não-Covid, porque nós não conseguimos chegar a essas pessoas.
Esta 4.º vaga de que fala será provocada por novas variantes, é consequência do desconfinamento que já iniciámos...
É evidente que não podemos viver a vida fechados. Temos de ter planeamento mas não podemos viver a vida fechados, não só pela questão da economia mas também da saúde mental. Esta quarta vaga tem que ver, essencialmente, com as novas variantes e com a eficácia da vacina contra as novas variantes e com a capacidade que teremos de ter para alterar essa vacina para as novas variantes. Enquanto tudo isto acontece, porque não é de um dia para o outro, enfrentamos sucessivas vagas, como é natural.
Mas já no início, quando tudo isto aconteceu, todos nós sabíamos que pelo menos três vagas íamos ter. Não era impossível, nem era difícil ter planeado as coisas. Agora, planear implica ouvir os técnicos, ter uma comunicação eficaz e não tomar decisões políticas com base em processos eleitorais e nós temos aí as autárquicas à porta e temos é de pensar nas pessoas.
Perante essa possibilidade de uma 4.ª vaga, concorda com o plano de desconfinamento apresentado pelo Governo e que teve início esta semana?
A única dúvida que nós na Ordem temos tem que ver com a Páscoa e com a abertura das escolas antes da Páscoa. Pensamos que aí poderia ter-se esperado mais. Há aliás uma dissonância interessante entre o discurso do primeiro-ministro e do Presidente da República que dá a ideia de que um queria uma coisa e o outro, outra. Temos de governar para aquilo que efetivamente podemos fazer para melhorar a vida de todos.
Eu percebo que as crianças tenham que ir para a escola, não só pela questão dos pais e também da própria saúde mental delas, mas é uma decisão que nos deixa muitas reservas, porque levou a incluir a comunidade escolar no plano de vacinação. Estamos a falar de um plano que já de si é frágil, que teve um início desastroso, em que tivemos milhares de doses desviadas para gente indevidamente e eu espero que eles paguem muito caro por aquilo que fizeram, porque as pessoas têm de ter a noção disto: cada pessoa que se vacinou indevidamente tirou a vez a alguém que pode ter morrido de Covid-19. Isto é muito duro de dizer, mas é verdade. E não vale a pena continuarmos com esta hipocrisia. Temos um plano que teve este início desastroso, só aqui na Ordem devemos ter enviado cerca de 60 casos de vacinação indevida ao Estado. E atenção, 60 casos sendo que cada um deles tem muita gente incluída. E depois há as duas doses, porque dando a primeira o mal já está feito e não podemos deixar de dar a segunda.
Fazer agora esta alteração quando eu não tenho os mais frágeis vacinados… Ainda não tenho os enfermeiros e médicos todos vacinados. Não tenho os maiores de 80 anos todos vacinados e já estou aqui a enfiar a comunidade escolar? E porquê? Como disse, estão aí as eleições autárquicas e todos eles votam. Mas as decisões que se tomam não podem ser eleitoralistas mas sim com base em dados científicos e muito claros. E aqui na Ordem ainda ninguém consegue explicar onde é que está esse critério científico e técnico para a prioridade na vacinação.
O Governo decidiu suspender a administração da vacina da AstraZeneca, concorda com a decisão? Preocupa-a o impacto que isto poderá ter no plano de vacinação?
O meu medo não é só no impacto no plano da vacinação, é na confiança das pessoas relativamente às vacinas. Acho que, mais uma vez, os Estados membros deviam ter tido uma estratégia melhor, porque olhando para os estudos aquilo que são as reações é [um número] muito baixo. Acontece com qualquer outra vacina. A ser tomada essa decisão, devia ter sido tomada pelos organismos a que de facto compete e de uma forma conjunta. Não é hoje a Alemanha, amanhã a França e depois a Itália…
Houve aqui, claramente, uma falta de estratégia e de comunicação que pode minar a confiança das pessoas nas vacinas e que não deve ser minada porque estamos a falar de reações que não são fora daquilo que já era expetável. Nós sabemos que todas as vacinas, ou um simples paracetamol, podem ter uma reação diferente em cada pessoa. E portanto, devíamos ter tido uma estratégia diferente em termos de ação.
Falando em estratégia de atuação, o que pensa da articulação, ou falta de articulação, que houve entre o sistema de saúde público e privado durante a pandemia?
Na altura, quando estivemos com o Presidente da República, alertámos logo que a negociação com os privados tinha de ser centralizada e que não podia ser feita por cada ARS ou localmente. Isto exigia uma decisão política e que tinha de ser feita com a ministra da Saúde, tinha de haver um acordo claro. E dou um exemplo muito claro. Quando agora aconteceu o problema com a falta de oxigénio no Amadora-Sintra, em que se transferiram doentes para o Hospital da Luz, e ainda bem, até devia ter sido feito mais cedo, mas mandaram os doentes e as equipas de enfermeiros. Isto não é nada. Então, se estou em overbooking no Amadora-Sintra vou deixar a descoberto os doentes que lá estão, tenho de transferir doentes mas não as equipas de saúde. Estamos a falar de um hospital que tem equipas competentes e que não precisava das do Amadora-Sintra.
Mas tratou-se de uma questão monetária?
Não sabemos. Não sabemos, mas o que sabemos é que a articulação entre público e privado sofreu da mesma desorganização que o processo das vacinas.
No que concerne à questão da vacinação indevida e à polémica dos alegados ‘fura filas’, atribui alguma responsabilidade do que aconteceu ao coordenador da task force, na altura, Francisco Ramos?
Eles não são alegados furas filas, eles são mesmo porque eles próprios confirmaram que tinham sido vacinados. Uns com umas desculpas mais criativas do que outros, mas efetivamente confirmaram que tinham sido vacinados. Eles são o que são e essa culpa pública e vergonha que deviam ter ninguém lhes tira.
Quando se falou disto, a Ordem foi a primeira a denunciar e fomos ouvidos na Comissão da Gestão da Pandemia, na Assembleia da República. Tínhamos, na altura, recebido os primeiros casos de vacinação indevida e eu falei sobre isso e denunciei a situação na comissão. Isto foi um dia antes de sair o primeiro caso publicamente, o do presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz, sendo que logo depois surgiram muitos outros, tendo a Procuradoria depois vindo a anunciar que se tratava de um crime.
Acho que houve uma culpa do primeiro coordenador da task force a partir do momento em que, com tudo isto a acontecer, o Francisco Ramos disse uma coisa publicamente que me chocou imenso. Ele disse que o plano estava concebido para vacinar as pessoas e não para procurar quem andava a fazer batota. Isto é do mais errado que pode existir. Essa é a culpa que ele tem. Essa culpa ninguém lhe tira porque eu não posso conceber um sistema para vacinar pessoas que são prioritárias e vir branquear publicamente o comportamento criminoso destas pessoas. Algumas delas têm ainda mais responsabilidade do que outras porque são presidentes de Câmaras e de Assembleias Municipais. Eles juraram proteger as pessoas que representam e fizeram precisamente o contrário: foram pôr-se à frente delas e acho que quem faz isto não tem capacidade nem caráter para liderar nada.
"Eu não posso conceber um sistema para vacinar pessoas que são prioritárias e vir branquear publicamente o comportamento criminoso destas pessoas", crítica, referindo-se a Francisco Ramos© Ordem dos Enfermeiros
A mudança de liderança na task force da vacinação faz já notar alguma diferença?
Faz, nós temos tidos várias reuniões com o senhor vice almirante [Gouveia e Melo] e a diferença é da noite para o dia em termos de organização e, portanto, ficámos muito contentes quando percebemos que as coisas estavam a ser geridas assim porque também é assim que as gerimos na Ordem dos Enfermeiros.
Desde então, ajudámos a fazer o levantamento dos enfermeiros que ainda faltavam vacinar e foi com base no levantamento que a Ordem fez que a task force deu ordem às instituições para que eles fossem chamados. Não se compreendia o que estava acontecer.
Desses processos apresentados, já obteve algumas resposta de qual poderá ser a sanção a aplicar aos casos de vacinação indevida?
Não, da reunião que tivemos com o vice almirante [Gouveia e Melo] ele também nos disse que estava a enviar ele próprio os casos de que tinha conhecimento diretamente para a PJ. Entretanto, das denúncias que tínhamos enviado ao Ministério Público começámos a receber pedidos da PJ e num desses processo eu fui ouvida, mas está em segredo de justiça.
Alguma coisa tem de mudar efetivamente nesta mentalidade que as pessoas têm quando vão para um cargo público. As pessoas tem de deixar de se comportar como se fossem os donos disto tudo
Expôs estas situações através das redes sociais, isto valeu-lhe algumas críticas e até uma participação disciplinar. Arrepende-se de alguma coisa que tenha escrito nestas plataformas?
Pelo contrário. Eu percebo que as pessoas fiquem chocadas. É pena que só se choquem com aquilo que não é essencial, porque chocam-se com o termo, estou a falar por exemplo da presidente da Câmara de Portimão , mas não se chocam com aquilo que ela fez, o que é extraordinário. E isso ilustra bem aquilo que temos de retirar do que está a acontecer na pandemia, nomeadamente sobre a forma como nos comportamos em sociedade. Se não tenho feito isso desta forma, provavelmente não tinha sido dada tanta importância a esta situação. Eu usei a minha voz, que a tenho, felizmente, para chamar a atenção para uma situação que é, a nosso ver, crime. E crime praticado por pessoas com responsabilidade públicas. Aliás, vimos nos últimos dias mais uma vacinação indevida, essa não a recebemos aqui na Ordem, que foi a do marido da dra. Edite Estrela. O que não deixa de ser curioso porque ela é responsável pela vacinação Covid no Parlamento.
Alguma coisa tem de mudar efetivamente nesta mentalidade que as pessoas têm quando vão para um cargo público e eu não me arrependo. As pessoas tem de deixar de se comportar como se fossem os donos disto tudo. “Eu estou aqui e tenho direito a…”. Não, não tem direito a nada. Eu não fui vacinada e se me tivessem oferecido eu nunca seria vacinada à frente dos meus enfermeiros que estão na prestação direta. Estou à espera da minha vez e assim é que tem de ser. Não é por ser bastonária que tenho direito a uma vacina.
Mas sentiu-se menos apoiada por estes enfermeiros por quem dá a cara?
Não, pelo contrário. Essas pessoas são a minha oposição. Deve ser para aí a terceira vez que fazem uma participação ao conselho judicial. Estamos a falar de pessoas que já cumpriram contratos aqui na Ordem, concorreram contra mim em listas e perderam duas vezes, e que estão no seu direito de fazerem o que entenderem. Também já fizerem em tempos, há cerca de três/quatro anos, uma participação em tribunal, perderam e foram condenados por militância de má-fé porque o juiz achou que estavam a usar o tribunal para fazer oposição aos órgãos que estavam na Ordem. Isso é uma coisa que faz parte… Aliás, estamos a falar de cerca de 20 pessoas inicialmente e depois mais algumas, que não chegaram a 100, num universo de 78 mil enfermeiros. Quase 100 deve ser um trigésimo das mensagens que recebo em sentido contrário. Os enfermeiros sabem que o meu estilo foi sempre este e isso incomoda quem estava nesta casa e a quem ganhei as eleições por duas vezes e que tinha um estilo subserviente.
Entretanto, no meio de todas estas polémicas, surge aqui um convite para regressar à política. Esse regresso está mais próximo do que imaginava?
Não. Primeiro, porque aquilo que nós fazemos, ou seja, qualquer pessoa que é eleita para um cargo destes, faz política todos os dias. Não faz é política partidária, são duas coisas diferentes. Eu tenho um mandado que ainda dura mais três anos e não sei o que vou fazer depois. As pessoas preocupam-se tanto com aquilo que vão fazer e esquecem-se de viver o presente. Tenho em mim, desde há muito tempo, desde que sou enfermeira, uma certeza muito grande, hoje estou aqui a falar consigo, mas amanhã não sei se estou cá. Para quem trabalha na saúde existe esta perceção de que somos finitos. Tenho muita noção de que isto é volátil e efémero e portanto não faço planos com essa longevidade.
Mas assumindo essa possibilidade, acha que a sua luta pelo SNS e pelos enfermeiros poderia ter maior eficácia num cargo político?
Não sei. Sou militante do PSD como toda a gente sabe e fui eleita pelos enfermeiros sabendo exatamente quem eu era, onde é que era filiada, o meu clube de futebol e que sou católica.
Enquanto conselheira nacional fiz muito esse trabalho. No Conselho Nacional do PSD falava sempre sobre o SNS e levava sempre dados e era muito chata para muita gente que lá estava porque na altura apanhámos um governo PSD e eu dizia muitas coisas que não eram nada agradáveis para o ministro Paulo Macedo. Aliás, ele deixou de ir aos conselhos por eu estar 'sempre a bater no ceguinho' e até houve uma altura em que denunciei o presidente da ARS que estava envolvido no caso da Octapharma, o doutor (Luís) Cunha Ribeiro, e fi-lo com o Paulo Macedo na sala e com o primeiro-ministro. Depois tive um processo disciplinar na ARS e tenho ainda um processo no tribunal administrativo que ainda estou à espera dele porque a justiça em Portugal é muitíssimo lenta.
Se isso contribuiu para mudar alguma coisa, sem dúvida, acho que sim e voltaria a fazê-lo. Se falarmos de um mandato na Assembleia [da República], é coisa que nunca tive ambição até porque tenho disciplina de voto partidária e acho que as pessoas já perceberam que não me dou com isso. Portanto, não sei, vamos ver… posso fazer alguma coisa nessa área, ou numa área completamente diferente. Não faço planos.
E esta “colagem”, como a própria lhe chamou, que lhe fazem ao Chega, incomoda-a?
Não, acho que só faz parte da hipocrisia nacional que nós temos em Portugal porque que eu saiba o facto de o Ricardo Costa [diretor-geral de Informação da Impresa] ser irmão do primeiro-ministro não faz dele próximo do PS ou do Governo. As pessoas sabem distinguir as coisas, há casos de irmãos em partidos diferentes. O que vão fazer? Deixar de se falar? É só ridículo.
A “colagem” que me fazem ao Chega, faz parte da hipocrisia nacional que nós temos em PortugalVoltando ao tema da pandemia, como é que acha que será o dia em que os profissionais de saúde poderão regressar à normalidade após a pandemia. Como é que vai ser o regresso ao trabalho sem a preocupação de usar máscaras, fatos de proteção, viseiras…
Para eles, vai ser uma alegria. O problema é, como falámos no início, as questões da saúde mental, da exaustão… Nós estamos a terminar um estudo que começou não por causa da pandemia mas que apanhou esta fase e nesse sentido vai ser muito útil, um estudo do impacto das condições de vida e de trabalho dos enfermeiros. Como apanhámos a pandemia, os resultados serão assustadores. Os resultados preliminares já os vimos e são muito maus. E é isso que nos preocupa, nós achamos que há colegas que desistirão da profissão e outros não sabemos em que condições vão continuar a trabalhar.
Nos últimos dias afirmou-se que a pandemia tem sido uma crise maioritariamente de mulheres. Esse impacto é possível de verificar também no vosso dia a dia?
No nosso caso tem de ser assim porque é uma profissão maioritariamente de mulheres. Existiria sempre esse indicador, porque há muito menos homens. Francamente não notamos uma diferença, mas admitimos que são estudos credíveis e que efetivamente afete mais as mulheres até pela sua sensibilidade.
É público também o facto de que tem a sua mãe num lar e que isso a obrigou a manter-se longe da família durante este tempo. Como foi viver este lado mais pessoal da pandemia?
Foi horrível, porque eu estava habituada a ir buscá-la para almoçar, passear e para levá-la a casa da minha família e não faço isso há um ano. Nem a abraço ou lhe dou um beijo há um ano. Felizmente, tem um telemóvel falo com ela todos os dias, mas é muito difícil porque todos os dias ela me pergunta quando é que isto acaba. E eu tenho de lhe dizer a verdade.
E que resposta lhe dá?
Que não sei, ninguém sabe. Ela percebe perfeitamente as coisas e está triste e aborrecida de não poder ir a lado nenhum, tem saudades nossas… não pude trazê-la para o Natal e foi a primeira vez na minha vida que não o fiz.
Esta situação poderá influenciar a tal revolta com que olha para os erros no plano da vacinação?
Não, porque sempre tive esta visão. Acho que as pessoas mais frágeis são as que têm de ser protegidas. E quem tem um cargo público tem a obrigação ou o dever maior de fazer com que assim seja. Se fizer a pergunta ao contrário, ou seja, se o facto de ter vivido sempre com uma mãe especial, que é diferente dos outros, e que precisa de cuidados especiais, moldou a minha personalidade assim na defesa das pessoas mais frágeis? Admito que sim. Acho que lidar com a minha mãe, que é das pessoas mais especiais que conheço, com um ótimo coração, fez seguramente de mim uma pessoa melhor.
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