"Há animais que, com as políticas atuais, vão passar a vida num canil"

Laurentina Pedroso, provedora do Animal, é a convidada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

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© Provedora do Animal / Facebook

Daniela Filipe
16/12/2022 08:28 ‧ 16/12/2022 por Daniela Filipe

País

Animais

O fluxo de adoções de animais de companhia proporcionado pela pandemia da Covid-19 deu, no regresso à 'normalidade', lugar a uma onda de devoluções às associações e centros de recolha. Quem o garantiu foi a provedora do Animal que, em conversa com o Notícias ao Minuto, salientou a gravidade do fenómeno do abandono animal, num momento de crise económica provocada pela guerra na Ucrânia, que não dá tréguas. 

Na ótica de Laurentina Pedroso, apenas a maldade humana justifica abandonar um ser vulnerável e domesticado, razão pela qual apelou a "mão firme" por parte da Justiça, cuja inação transmite a mensagem de que "maltratar os animais parece não ser um problema".

Nesta conjetura, a antiga bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários equacionou que, face às políticas atuais, que se mostram insuficientes, há animais que "correm o risco de viver a sua vida toda fechados num canil municipal", à medida que as famílias se sentem cada vez mais estranguladas pelo aumento não só do custo de vida, como dos cuidados veterinários.

Nessa linha, com a revisão constitucional à porta, a diretora da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona defendeu a inclusão da proteção dos animais no documento, rejeitando "palavras bonitas e interessantes, mas que só vêm complicar", em detrimento de três termos: "e os animais?"

Se a situação já era difícil para ajudar animais abandonados ao cuidado dos centros de recolha e das associações, neste momento são as próprias famílias que estão sufocadas economicamente

Qual é o panorama do abandono animal atualmente, tendo em conta o cenário de crise económica em que nos encontramos, devido à guerra na Ucrânia, aliado também à pandemia da Covid-19?

Os dados do abandono em Portugal são sempre difíceis de calcular. Temos dados exatos, aqueles que recebemos dos centros de recolha oficiais, das câmaras municipais, [mas] esses dados são publicados anualmente, e os dados de 2022 só serão publicados no primeiro trimestre de 2023. Se me perguntar se está correto, diria que não. Poderíamos trabalhar melhor, de forma a que os dados das recolhas dos centros oficiais fossem conhecidos numa regularidade e periodicidade diferente, porque sem dados não conseguimos avaliar. A outra situação é a realidade dos animais que são recolhidos pelas associações, dos quais não existe um número oficial.

Da limitação dos dados que temos, que merecem começar a ser calculados de uma forma mais efetiva para conseguirmos tomar decisões políticas, a experiência de quem está no terreno é que o número de animais abandonados não vai diminuir em relação ao ano anterior, e está a aumentar. É muito preocupante.

No ano passado, tivemos quase 44 mil animais recolhidos em centro de recolha oficiais. Acrescem a estes os das associações, que não temos um número concreto, mas que, se calhar, é multiplicável por dois ou três. Hoje em dia, a situação parece estar muito, muito difícil. Esta guerra e esta conjuntura económica está a afetar as famílias, [pelo que] está marcadamente a afetar os animais. Há muitos mais pedidos de ajuda às associações, aos hospitais escolares, às pessoas que trabalham no âmbito da causa animal, de famílias que não serão carenciadas ou com intervenção social, mas que, devido a esta conjuntura económica, estão muito estranguladas.

O facto de, juridicamente, não estarmos a atuar, parece que, quando estamos a falar do abandono, [dizemos que] é algo que é aceitável e normal. Não é um assunto que se possa tratar com ligeireza

Algum do abandono e alguma da devolução dos animais às associações e canis municipais tem que ver com facto de as pessoas já não terem dinheiro para alimentar o seu animal, nem para os tratamentos veterinários. Sinceramente, preocupa-me muito, porque se a situação já era difícil para ajudar animais abandonados ao cuidado dos centros de recolha e das associações, neste momento são as próprias famílias que estão sufocadas economicamente, e que têm de decidir entre um tratamento para um animal, ou ter dinheiro para umas sapatilhas para os filhos. Começa a pesar do ponto de vista ético, económico, moral, social e, do ponto de vista político, devia fazer-se mais.

É preciso percebermos que não estamos a falar de algo ligeiro. O abandono, a nível de legislação, é considerado como algo que pode ser crime, e ter pena de prisão ou multa. O facto de, juridicamente, não estarmos a atuar, parece que, quando estamos a falar do abandono, [dizemos que] é algo que é aceitável e normal. Não é um assunto que se possa tratar com ligeireza. A própria Justiça parece proteger quem abandona e quem maltrata os animais. Se o abandono é um crime, e eu estou a dizer que há mais abandono, quer dizer que a Justiça não está a olhar para isto na forma que deveria olhar, dando mão pesada, dando o exemplo com condenações para quem abandona. É certo que, muitas vezes, quem abandona é um rosto desconhecido. Mas essas pessoas também são identificadas.

[O abandono] é gravíssimo para o sofrimento animal, mas é, também, gravíssimo do ponto de vista da saúde e segurança pública. Países que estudam bem estes assuntos dizem que há custos diretos – o sofrimento animal –, e há custos indiretos para o ser humano. Acidentes por um animal na via pública, mordeduras em outros animais e pessoas, criação de matilhas. Quem calcula diz que isto pode custar cerca de 10 milhões de libras por ano em termos de saúde pública.

Por que é que há, então, esta inação por parte do Governo?

Faço a mesma pergunta. Mais ainda; se olharmos para os animais que têm sido recolhidos em centros oficiais e [vermos] aqueles que são adotados, ou que tiveram de ser eutanasiados por motivos de bem-estar, em relação aos animais que entram, mais de metade não são adotados. No ano a seguir, entram outros tantos, e só metade é que são adotados. Então, esse número começa a adicionar ao do ano anterior, e do ano anterior, e do ano anterior.

Há animais que, neste momento, com as políticas que temos, correm o risco de viver a sua vida toda fechados num canil municipal

Nos últimos cinco anos, mais de 50 mil animais que entraram em canis ainda não saíram. Se imaginar que um cão tem um tempo expectável de vida de 10 anos, tendo em conta as circunstâncias, estes 50 mil animais que vão crescendo de número todos os anos custam aos Estado mais de 10 mil milhões de euros. Não sei quem está a contabilizar este custo. Nunca um Governo investiu tanto na causa animal, é certo. O Estado dá cerca de 12 milhões de euros para esta causa mas, se continuar a dar este valor nos próximos 10 anos, são 120 milhões de euros. O dinheiro não tem, na balança, o mesmo equilíbrio do custo que o Estado terá, direta ou indiretamente.

Se estivermos a falar do bem-estar animal, acha que um animal que entrou há cinco anos num canil e que não foi adotado tem potencial de o ser, quando continuam a entrar mais animais, e mais jovens? Há animais que, neste momento, com as políticas que temos, correm o risco de viver a sua vida toda fechados num canil municipal.

Nessa linha, que medidas é que deveriam de ser implementadas para colmatar este problema?

Ando há mais de um ano e meio a alertar o Governo, sem resposta, de que deveríamos de ter um sistema nacional de assistência aos animais em risco. Entende-se por animais em risco os animais de famílias que precisam de ajuda, os animais que estão ao cuidado das associações zoófilas e dos centros de recolha oficiais, e aqueles que estão envolvidos numa situação de catástrofe, como um incêndio ou uma inundação. Todos estes animais têm de ter um plano nacional de apoio. A resposta do Governo até hoje? Estou a aguardá-la. Tenho forte esperança de que este plano venha a ser implementado, e que o Governo ouça as recomendações que lhe tenho feito.

Há cerca de 10 anos, em 2013, enquanto bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários, criei um projeto-piloto solidário, que tentava mimicar aquele que é um projeto solidário que o Governo tem há muitos anos, que é o programa do cheque-dentista. Esse programa do cheque veterinário veio a ser implementado em 2014, em parcerias com a Câmara Municipal de Oeiras e a Câmara Municipal e Juntas de Freguesia de Lisboa. É importante e ainda hoje existe, mas já é marcadamente insuficiente para a realidade que temos.

Não podemos continuar a deixar os animais nascer, para depois estarem em prisões o resto da vida, sem direito a saber o que é uma socialização com o homem

Como bastonária que criou o cheque veterinário, como diretora de uma faculdade de Medicina Veterinária que tenta ajudar famílias, associações e centros de recolha todos os dias, tenho experiência mais do que adquirida para montar um sistema nacional de ajuda. Não se trata de um sistema nacional de saúde para todas as pessoas que detêm animais, mas sim para quem não tem capacidade para ajudar o animal em termos de tratamentos médicos. Devia fazer-se muito mais.

Não é preciso mais dinheiro do que aquele que já está alocado; não tem sido é usado da melhor forma. E acredito que a forma como o Governo planeou os gastos para 2022 e 2023 também não vai resolver problema nenhum. Como provedora, não tenho funções executivas, mas posso alertar a sociedade para o problema, e alertar o Governo que é preciso fazer mais. Esperemos que o Executivo perceba que o estado a que chegou a causa animal e as dificuldades das famílias exigem mais medidas. Neste momento, muitas mais famílias portuguesas além das que estão referenciadas pela ação social vão precisar de ajuda com os seus animais.

Sabemos as raízes do abandono; não há nada que justifique abandonar um animal, a não ser a maldade humana, na minha opinião. Quem gosta mesmo de um animal vai à procura das soluções, e estamos a começar a ouvir essa procura na forma de falta de capacidade para cuidar. O Estado não pode ignorar as pessoas. Não podemos continuar a deixar os animais nascer, para depois estarem em prisões o resto da vida, sem direito a saber o que é uma socialização com o homem. Domesticamos estes animais; ao domesticá-los, tornamo-los vulneráveis, e é a nossa obrigação protegê-los. A esterilização animal é fundamental.

Considera que a crise está, também, a fazer com que o fluxo de donativos para as associações e canis diminua, dificultando o seu trabalho? Quais as consequências?

A missão e o trabalho dos centros de recolha oficiais e das associações é enorme, digno de uma homenagem. O que vemos é o desgaste constante das pessoas que trabalham nestes locais, pela incapacidade de gerir tanta dificuldade. Em proporção aos donativos que vão diminuir, há uma coisa que vai aumentar. Para tratar e alimentar os mesmos animais, o custo é, hoje em dia, superior. Não só os donativos podem ser menos porque aquelas pessoas que ajudam também vão enfrentar dificuldades, mas as verbas já não chegam. É preocupante e espero que o Governo me ouça em algumas das medidas estratégicas nacionais que pedi para serem implementadas, porque essas medidas ajudariam de uma forma eficaz as famílias, as associações e os centros de recolha.

Não é impossível fazer protocolos com as universidades, é uma obrigação. Neste momento, há muitas famílias e muitos animais que precisam dessa ajuda do Estado, e é o Estado que tem de criar os mecanismos. Ajudar os animais, neste momento, é ajudar as pessoas

Uma delas é pôr os hospitais universitários a trabalhar para a causa animal. Os hospitais escolares existem nas regiões com mais associações e maiores centros de recolha, logo situam-se nos locais onde está o problema, tirando o Algarve. Diz o passado que não tem sido possível fazer protocolos com as entidades de ensino superior. Por que é que o Estado precisa de fazer protocolos com ele próprio? As entidades de ensino superior públicas são pertença de quem? As verbas para o ensino, o vencimento dos professores médico-veterinários, e o custo para os materiais vêm dos impostos dos cidadãos. Não é impossível fazer protocolos com as universidades, é uma obrigação. Neste momento, há muitas famílias e muitos animais que precisam dessa ajuda do Estado, e é o Estado que tem de criar os mecanismos. Ajudar os animais, neste momento, é ajudar as pessoas.

Enquanto provedora do Animal, defende a revisão da Constituição para consagrar os maus-tratos a animais; O que é que propõe concretamente?

Há quem diga que ‘há pessoas que tratam melhor os animais do que as próprias pessoas’. Bem, mas tratar bem os animais não é problema. Tratar mal os animais e as pessoas é que é problema. Não há nada de errado com tratar bem ou muito bem dos animais. Quanto muito, está errado é tratarmos mal. Tudo isto tem de mudar. Queremos muito para as pessoas, mas também queremos muito para os animais. [Incluir os animais na Constituição] é fundamental para os proteger, e é do melhor interesse para as gerações futuras.

Os animais são vulneráveis e temos de os proteger, como temos de proteger as crianças, os idosos, as mulheres. Hoje em dia, está mais do que provado que a violência contra os animais está diretamente relacionada com os maus-tratos contra as pessoas. Portanto, colocarmos os animais na Constituição não é mais do que o poder político a dar um sinal para a sociedade de que somos contra a violência. Quem gosta de animais, com certeza que também gosta de pessoas. Por isso, queremos protegê-los a ambos.

Se quisermos fazer algo de bom para a Constituição, [basta usar] a linha alemã e a linha italiana: colocar “e os animais” e não esquecer a biodiversidade e os ecossistemas

Propus que sejamos pragmáticos e objetivos, [uma vez que] temos experiências no mundo sobre esta matéria. O Brasil introduziu os animais na Constituição em 1988, e a Alemanha em 2002. Recentemente, a Itália. Os alemães, pragmáticos como os conhecemos, colocaram simplesmente mais três palavras: “e os animais”. Onde diz “proteger ou defender a natureza e o ambiente”, puseram, a seguir, “e os animais”. Hoje, acrescentaria também a biodiversidade e os ecossistemas.

Aquilo que vejo das propostas de revisão da Constituição dos vários partidos é a criação de linhas altamente complexas; uns mencionam termos que, ainda hoje, os cientistas e os técnicos têm dificuldade em definir. São palavras bonitas, interessantes, mas só vêm complicar. Se quisermos fazer algo de bom para a Constituição, [basta usar] a linha alemã e a linha italiana: colocar “e os animais” e não esquecer a biodiversidade e os ecossistemas.

A tendência que se verificou durante o auge da pandemia no que toca ao aumento da adoção animal ainda se mantém neste momento?

Não se mantém. A pandemia deu-nos uma janela de determinado tipo de necessidades e libertou em nós determinado tipo de emoções que, provavelmente, achávamos que não tínhamos. Muita gente que adotou no tempo da pandemia adotou bem e criou ligações fortíssimas com esses animais. Infelizmente, outros tantos adotaram animais com um grande desconhecimento. Não é a mesma coisa trazer um ser vivo para a nossa casa e trazer um objeto inanimado ou uma planta. Todos precisam de cuidados, mas os cuidados com o animal são mais importantes.

Aquilo que se viu na pandemia viu-se em todos os países: houve um ‘boom’ de adoções e, depois, as pessoas regressaram à sua vida ‘normal’, já não tinham o mesmo tempo, paciência e necessidade, e devolveram os animais

E se, na pandemia, esse cuidado foi ao serviço do homem, porque podíamos sair para passear os animais, quando voltámos ao trabalho, começámos a ter de deixar os animais fechados em casa todo o dia. Aquilo que, num momento da sua vida, foi positivo, passou a ser um fator negativo. O que temos de trabalhar, e penso que o Governo vai trabalhar isso em breve, é o conceito de uma adoção consciente. As pessoas têm de perceber que, quando adotam um animal, é um gesto para mais de 15 anos, e é um ato responsável.

Mas já vimos que, mesmo assim, muita gente começa a ficar muito sufocada e impotente em situações de crise como a que estamos a viver. Aquilo que se viu na pandemia viu-se em todos os países: houve um ‘boom’ de adoções e, depois, as pessoas regressaram à sua vida ‘normal’, já não tinham o mesmo tempo, paciência e necessidade, e devolveram os animais.

O que é que ainda falta fazer para consciencializar as pessoas de que adotar um animal é um compromisso para a vida e para colocar um ponto final ao abandono? 

Falta tanta coisa. Temos de trabalhar a consciência da sociedade sobre a importância dos animais. Os animais são importantíssimos para o ser humano, são úteis para o desenvolvimento das pessoas. Os cães de assistência dão apoio aos cegos, a crianças com autismo, às forças policiais. [Não podemos pensar que] tratar mal de um animal não tem importância e que tratar bem demais pode ser um problema. As decisões dos juízes sobre a possível inconstitucionalidade do crime contra os maus-tratos e abandono [passa a mensagem de que] maltratar os animais parece não ser um problema, e que quem os tratar bem demais é censurado.

Feito todo este trabalho, há questões técnicas. Neste momento, há animais a mais, há animais a precisar de tratamento médico-veterinário, há câmaras e associações a precisar de ajuda; temos de resolver estes problemas.

Existe uma outra forma de resolver estes problemas, que é mão forte. As pessoas que maltratam os animais têm de ser punidas e tem de haver uma mensagem clara da Justiça de que isto não é aceitável.

Leia Também: Inflação pode justificar maior abandono de animais no Porto

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