JMJ? "Uma concentração tão grande de gente ali é de risco incomensurável"
João Paulo Saraiva, presidente da APROSOC - Associação de Proteção Civil, é o entrevistado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.
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País Associação de Proteção Civil
João Paulo Saraiva, presidente da APROSOC - Associação de Proteção Civil, considera que não é possível estarmos completamente preparados para um eventual sismo em Lisboa. Ainda assim, defende, é necessário envolver mais os cidadãos, individuais e familiares, para evitar danos maiores, criticando a "inércia" de quem tem o poder de decidir.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, João Paulo Saraiva diz que se arrisca estar a acreditar numa "ajuda divina", apontando a falta de investimento e a possibilidade de vários meios de socorro ficarem impossibilitados de cumprir as missões de salvamento no caso de uma catástrofe.
Está, ou não, Lisboa preparada para um possível sismo de grande magnitude?
É a questão que mais tem surgido nos últimos tempos, e a resposta que lhe posso dar, e que é a nossa convicção na APROSOC, é que nenhuma cidade do mundo está preparada e nenhum cidadão está preparado. Isto quer dizer que nunca estaremos suficientemente preparados, mas isto não invalida que não deixemos de nos preparar. Há um trabalho de preparação que é contínuo, nunca estará completamente feito. Agora, se me questiona se, comparativamente a outras cidades europeias ou mundiais, Lisboa é uma das mais resistentes a sismos... não. Esta é uma preocupação muito recente por parte dos decisores políticos.
A comunidade científica há muito que vem alertando para as vulnerabilidades da cidade de Lisboa, do edificado, e de outro património, mas só muito recentemente é que se conseguiu um revés na legislação depois de um passo mal dado em 2014 que suspendeu a regulamentação que vinha ao encontro das necessidades. Só recentemente é que a autarquia de Lisboa tem um programa - o ReSist - preocupado com a resistência sísmica dos edifícios e, neste caso, essencialmente dos edifícios que estão sob a alçada da Câmara Municipal de Lisboa. Ao considerar que um universo de cerca de 5 mil edifícios estão sob a alçada da CML, e que não estão, ainda, preparados, em alguns ainda estão a decorrer os primeiros trabalhos de reforço de resistência antissísmica... considerar-se que só isto é suficiente para dizer que Lisboa está "extremamente preparada" é falacioso.Acredita-se muito na ajuda divina e na proteção divina e acreditamos, ainda, muito pouco que a Proteção Civil é cada um de nós e, além disso, o que possa existir é sorte
E o que é que está por trás dessa demora em agir?
O que acreditamos que possa estar na base desta inércia é a inépcia. A falta de conhecimento, o facto de acharmos que só acontece aos outros e não nos acontece a nós. Também algumas convicções ideológicas, porque se acredita muito na ajuda divina e na proteção divina e acreditamos, ainda, muito pouco que a Proteção Civil é cada um de nós e, além disso, o que possa existir é sorte.
Falta uma consciência de Proteção Civil na sociedade civil em geral e, em particular, nos decisores políticos
No quotidiano, por exemplo, já se falha. Diariamente, em situações de catástrofe, o nosso sistema não tem capacidade de resposta, nem é expectável que tenha. A cooperação da ajuda internacional serve, também, para isso. Quer no respeito à prevenção, quer no respeito à mitigação, quer no respeito à intervenção, creio, com base no que frequentemente surge nas reuniões da associação, que a ideia generalizada é de que falta uma consciência de Proteção Civil na sociedade civil em geral e, em particular, nos decisores políticos.
Muitos desses meios operacionais, que achamos que vão estar operacionais, vão estar inoperacionais, confinados, impossibilitados de transitar
Mas, então, o que é que urge mais para controlar, pelo menos, os danos que eventuais catástrofes possam causar?
Há outras consequências para lá dos danos materiais. Os danos humanos também são mais uma consequência e é a mais vulnerável de todas. Falta fazer quase tudo. Além de proteção material, que, por inerência, vai implicar também a proteção das pessoas, ou seja, o aumento da resistência dos edifícios, não apenas a resistência estrutural mas também tendo em conta um outro aspeto que é normalmente descurado, que é a resistência dos acabamentos.
Temos edifícios que podem ter alguma resistência estrutural antissísmica, mas, depois, têm acabamentos com pedras que se soltam facilmente, mesmo sem um sismo, então, no caso de um sismo ainda mais, podendo fazer estragos e vítimas. Depois, há que preparar a população, e a população não está a ser minimamente preparada. Os exercícios que se praticam anualmente de autoproteção relativamente aos sismos são manifestamente insuficientes e praticamente inócuos relativamente ao que é necessário. Se atentarmos às imagens que estamos a receber atualmente da Síria, vamos perceber que é necessário que cada cidadão tenha conhecimentos fortes, alguns objetos consigo, como um apito para, se ficar soterrado, poder sinalizar a sua presença.
É necessário que a sociedade conheça as radiocomunicações como alternativa às telecomunicações, que normalmente colapsam. É necessário que a população se prepare para a sua autossuficiência em termos de alimentação, agasalhos, medicação, para uma autonomia mínima de 72 horas. Todo este trabalho está por fazer, e há aqui uma incomensurável inércia, quer a nível nacional, quer a nível municipal. Não há aqui um trabalho conducente à formação da sociedade civil porque, felizmente, em Portugal, estas situações raramente ocorrem. A memória é curta, mesmo em relação aos incêndios que ocorrem anualmente. Chega o inverno e esquecemo-nos dos efeitos e das consequências destes incêndios. Então, não fazemos tudo aquilo que era necessário fazer e, no verão seguinte, voltamo-nos a deparar exatamente com os mesmos problemas, muitas vezes agravados por outras circunstâncias.
Lisboa é uma ilha do ponto de vista rodoviário porque todos os seus acessos se fazem através de pontes ou túneis, que podem colapsar ou ficar mais vulneráveis
No que respeita ao risco sísmico, isto é, antes de mais, um problema de consciência e um problema de falta de cultura de Proteção Civil da sociedade, porque isto de que falamos, Bombeiros, Proteção Civil, Cruz Vermelha, INEM, em situação de catástrofe, tudo junto, é muito pouco, e as vulnerabilidades existentes nos edifícios e no ordenamento do território farão com que, face às nossas caraterísticas de distribuição territorial, muitos desses meios operacionais, que achamos que vão estar operacionais, vão estar inoperacionais, confinados, impossibilitados de transitar. Temos veículos inadequados para estas situações, não temos veículos de todo-o-terreno em quantidade suficiente. Lisboa é uma ilha do ponto de vista rodoviário porque todos os seus acessos se fazem através de pontes ou túneis, que podem colapsar ou ficar mais vulneráveis. Quando falamos de todas estas organizações, falamos de quintas e quintais. Preparar a população é contrário aos interesses de algumas entidades.
Como assim?
Se em cada cidadão estiver alguém que faz parte da solução, e não parte do problema, não há negócio da intervenção em Portugal, ou terá uma expressão diminuta. Se todo o cidadão souber primeiros socorros ou tiver conhecimentos e formação de emergência pré-hospitalar, os serviços como o INEM ou os Bombeiros terão muito menos trabalho, portanto um menor volume de negócios para todas as entidades que disso dependem. As empresas de transformação de veículos em ambulâncias, os fornecedores de equipamentos...
Não há nenhum envolvimento dos cidadãos, porque esse envolvimento dos cidadãos é contrário aos interesses instalados no negócio da intervenção
Mas está a dizer que há uma inércia voluntária para manter esse negócio?
Obviamente que sim. Ao nível municipal, não há a menor dúvida, há grandes evidências disso. A grande evidência disso é que a esmagadora maioria dos concelhos, embora esteja no âmbito da legislação vigente, nomeadamente, não faz sensibilização à população. Oeiras, por exemplo, um concelho que se diz 'muito à frente', só tem Serviço Municipal de Proteção Civil desde 3 de novembro de 2022. Não há uma única Unidade Local de Proteção Civil criada. Ou seja, não há nenhum envolvimento dos cidadãos, porque esse envolvimento dos cidadãos é contrário aos interesses instalados no negócio da intervenção.Os programas falaciosos como a Aldeia Segura ou a Pessoa Segura são uma mão cheia de nada
A APROSOC mencionou, num comunicado enviado às redações, a falta de investimento nas Unidades Locais de Proteção Civil.
Acompanhamos isto ao longo de muitos anos, e existem boas práticas e bons modelos. Por exemplo, na sequência dos incêndios de 2017 [em Pedrógão Grande], convidei o atual comandante dos Bombeiros de Óbidos e o coordenador do Serviço Municipal de Proteção Civil de Óbidos para fazer uma palestra e o tema que atribuí foi o envolvimento da sociedade na Proteção Civil. Entretanto, convidei-os a analisar o que são as Community Emergency Response Teams (CERTs, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, compreender como é que funcionavam e que adaptação é que se podia fazer em Portugal. Isso foi implementando em Óbidos.
O presidente da autarquia entendeu que era uma vantagem, não queria passar por aquilo que estava a passar o presidente da autarquia de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos. E isto possibilita envolver os cidadãos como força complementar da capacidade de resposta. Ou seja, os bombeiros, por exemplo, deixam de estar preocupados com a parte da alimentação, porque eles tratam da alimentação. Os bombeiros que chegam de outros concelhos, que não conhecem a zona, são encaminhados por veículos todo-o-terreno desses batedores voluntários das Unidades Locais de Proteção Civil. Eles fazem o reconhecimento das situações e reportam-nas, têm conhecimentos de primeiros socorros para primeira intervenção e equipamento básico para tal, para estabilizar até à chegada de uma ajuda mais diferenciada...
Este envolvimento é necessário ao nível da aldeia... não programas falaciosos como a Aldeia Segura ou a Pessoa Segura, que isso é uma mão cheia de nada. Necessitamos de programas de capacitação dos cidadãos, como, por exemplo, o ReSist, que está a dar os primeiros passos, para capacitar os cidadãos a nível da aldeia ou do bairro, do quarteirão. E temos de pensar nisto a nível do planeamento familiar de emergência, no sentido de que a família esteja preparada para a sua autoproteção, tenha competências e habilidades que possa aplicar e não seja mais uma família a fazer parte do problema, mas sim parte da solução, porque é capaz de se autoproteger e organizar a casa no sentido de perceber o que é que pode cair, ou causar ferimentos.
Há toda esta sensibilização para ser feita, que é um trabalho fundamental, mas que é contrário aos negócios instalados, quer a nível municipal, quer a nível da administração central. Temos de perceber que isto é do superior interesse público.
Falou da preparação nas aldeias e fora dos centros urbanos. Fala-se de um sismo em Lisboa, mas o risco não está circunscrito à capital. Há outras zonas, nomeadamente no Algarve, onde se corre esse risco, certo?
O risco é sempre uma incógnita. Conhecem-se alguns elementos que possibilitam identificar que o maior risco de atividade sísmica é, efetivamente, na região sul, mas nada impede que ocorram, e até já têm ocorrido, sismos na região centro, embora de baixa magnitude.
Embora esta seja, neste momento, a zona de maior risco, as falhas são dinâmicas, o planeta é dinâmico, então nada impede o surgimento de outras falhas. Somos, felizmente, um território relativamente seguro, mas recordo-me que, há uns anos, houve um sismo no Alentejo e o grau de preparação era tão grande, mesmo a nível da Proteção Civil, que ficou ali tudo 'à toa', porque ninguém atendia os telefones nos comandos distritais. Ninguém se lembrou sequer que se fazia exploração da rede rádio e que podiam utilizar o rádio para comunicar lá para baixo. Há esta falta de preparação. Depois dizem que têm sido feitos exercícios para avaliar a capacidade de resposta... ok, mas que capacidade de resposta é essa? Partindo do princípio que todos aqueles meios estão operacionais.
Neste momento, conhecemos sismos até uma determinada quantidade de energia, mas nada impossibilita que a Mãe Natureza não nos dê outros exemplos
Mas algum meio pode falhar?
Por exemplo, falando de Lisboa, o quartel da Avenida D. Carlos I, em caso de sismo, é de elevada vulnerabilidade e, se o sismo ocorrer agora, muito provavelmente aqueles meios não vão sair dali. Por outro lado, temos outros quartéis estratégicos na cidade em que, ainda que os meios saiam, podem-se deparar com constrangimentos de vias obstruídas ou por tráfico ou escombros de edifícios. É importante que estes exercícios sejam realizados, mas isso não nos possibilita ter uma noção da capacidade real de resposta. Até porque vai depender de uma grande variável, que é a energia libertada pelo sismo. Neste momento, conhecemos sismos até uma determinada quantidade de energia, mas nada impossibilita que a Mãe Natureza nos dê outros exemplos.
Nunca estaremos totalmente preparados, pelo que consideramos ser desadequado dizer que Lisboa está "extremamente preparada"
Não querendo soar catastrofista... isso quer dizer que, por mais que nos preparemos, sendo a terra dinâmica, nunca estaremos totalmente preparados?
Claro, nunca estaremos totalmente preparados, pelo que consideramos ser desadequado dizer que Lisboa está "extremamente preparada". Mas como assim está extremamente preparada? Esse conceito não existe sequer.
Sobre o envolvimento das pessoas na preparação antissísmica... disse que a multiculturalidade da cidade pode ser um obstáculo. Como assim? É uma questão de língua?
Não é apenas uma questão de língua, nem de comunicação. Esses são fatores importantes, mas a multiculturalidade prende-se também com crenças religiosas diferentes. Na Turquia, por exemplo, nos primeiros dias, as equipas de socorro depararam-se com o problema de pessoas que não fugiam e que impediam a passagem porque estavam quase que em transe a rezar e a apelar à salvação divina. Ou seja, acreditando muito pouco na ação eficaz do Homem e acreditando que, por magia, por obra divina, poderiam conseguir ter a ajuda de que necessitavam. Há estes aspetos de cariz religioso, mas também há muitos outros. Até as condições individuais. Os japoneses, por exemplo, são pessoas muito mais abertas e despertas para este tipo de situações e para aquilo que deve ser feito, porque têm exercícios anuais, com a população também envolvida, não são só os serviços de Proteção Civil, de participação obrigatória, tal como a tropa, portanto estão mais conscientes dos comportamentos que devem adotar.
Nós nem sequer sabemos quantas pessoas temos, ao certo, na cidade de Lisboa, porque há pessoas que estão em processo de legalização, já para não falar daquelas que, supostamente, estão numa morada e, afinal, é fictícia e estão noutra... Há aqui um conjunto de caraterísticas próprias de cada cultura que podem complicar toda a ação, até mesmo de socorro. Se alguns tentarão ajudar os outros, outros poderão pensar apenas em pilhagens, por exemplo.
Sobre a JMJ, alertou para o alto risco sísmico da zona no Parque Tejo onde estará o maior palco...
E não só é um risco sísmico! Também tem alto risco de inundação.
Uma concentração tão grande de gente ali [no Parque Tejo da JMJ], assim, é, de facto, um risco incomensurável (...). Estamos mesmo a acreditar muito que a proteção divina não vai deixar que nada aconteça
Acha que este palco deveria ter sido montado noutro local?
Não diria que foi uma pobre escolha porque há a questão da oportunidade para se melhorar o território, não apenas para os que vêm, mas também para os que cá estão. Agora, uma concentração tão grande de gente ali, assim, é, de facto, um risco incomensurável. Não apenas a pensar no sismo, que não temos um de grande magnitude desde 1755, mas também em muitas outras situações que devem ser equacionadas.
O risco de terrorismo, por exemplo. Este poderá ser um eventual risco, até pelas diferenças existentes entre diferentes culturas religiosas, entre diferentes países. Se formos alvo de um atentado, as estruturas e os equipamentos são aquilo que são... portanto, vai haver constrangimentos. Se já temos pessoas a esperar, no quotidiano, por vezes, até duas horas por uma ambulância, durante essa semana da JMJ nem quero imaginar.
Conhecemos os picos de insuficiência do SNS, no seu todo, normalmente, na altura do inverno, mas no verão também, então, aqui poderemos ter mais um [pico] com consequências que não serão apenas para aqueles que nos vão visitar, mas também para aqueles que aqui nasceram, que cá vivem, que cá trabalham. Tudo isto é preocupante. Infeliz, acho, é estar tudo a ser pensado de uma forma muito aligeirada. Não fosse um evento de cariz religioso, ou então estamos mesmo a acreditar muito que a proteção divina não vai deixar que nada aconteça, porque, em termos de planeamento, o que está a ser planeado é, de facto, manifestamente insuficiente e, do ponto de vista da avaliação técnica, merece nota negativa.
O que falta fazer é mais que muito para que possamos estar aceitavelmente preparados para qualquer ocorrência
O próprio desastre de 1755 também teve um pendor religioso...
Exatamente. Temos a exposição interativa Quake Lisboa, e eu acho que o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, até porque é uma parceria com a autarquia, precisa de passar por aquela experiência, que é muito gira, para perceber que não faz qualquer sentido a afirmação que fez. Há boas práticas, há bons exemplos, excelentes até, mas nunca estaremos preparados. E o que falta fazer é mais que muito para que possamos estar aceitavelmente preparados para qualquer ocorrência.
A situação na Turquia veio ajudar a criar alguma sensibilização?
Ajudou muito pouco. Daqui a uns meses já ninguém vai falar disto. Vamos esquecer rapidamente isso, como esquecemos mais de uma centena de mortos nos incêndios de 2017. Aqui são milhares de mortos, mas foi na casa do vizinho, ainda por cima um vizinho que não é muito próximo.
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