Baía das Águas guarda cápsula do tempo do sismo de 1980 na ilha Terceira

Os destroços de uma cidade arrasada por um sismo há 45 anos estão entulhados na Baía das Águas, em Angra do Heroísmo, nos Açores, uma "cápsula do tempo" que guarda as memórias de uma comunidade.

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Lusa
31/12/2024 09:40 ‧ há 2 dias por Lusa

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Açores

 "O que está lá é, de facto, uma 'cápsula do tempo'. Aquilo foi a vida das pessoas que foi levantada ao ar por pás carregadoras", adianta, em declarações à Lusa, o museólogo Francisco Maduro-Dias.

 

Às 15:42 do dia 01 de janeiro de 1980, um sismo de 7,2 na escala de Richter abalou a tranquilidade de uma tarde de feriado na ilha Terceira, nos Açores.

O terramoto, o mais demolidor dos últimos 200 anos em Portugal, deixou um rastro de destruição nas ilhas de São Jorge, Graciosa e, sobretudo, Terceira. Estima-se que mais de 20 mil pessoas terão ficado desalojadas. Contaram-se mais de 70 mortos e 400 feridos.

"Era dia feriado e as pessoas saíram de casa. Às 20 para as 16:00, já não tiveram casa para voltar. Não tinham lugar para jantar, nem para dormir. Ficaram nos carros, foram dormir para casa de amigos. Foi uma confusão tremenda", recorda Francisco Maduro-Dias, que também viu a casa afetada pelo abalo.

A maioria das ruas da cidade de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, ficou obstruída pelas pedras das cimalhas das casas, que o sismo deitou ao chão.

"Não havia maneira de socorrer ninguém, não havia maneira de levar comida para lado nenhum, não havia maneira de ver como é que a casa estava, para poder tirar alguma coisa que fosse possível salvar, sem passar pelo caminho", lembra o museólogo e historiador.

Era preciso desobstruir as ruas rapidamente para permitir a circulação e restabelecer a normalidade possível na cidade, por isso foram enviadas máquinas, que carregaram a pedra e tudo o que vinha junto: móveis, louças, roupas, fotografias, vidas inteiras de memórias.

Se os moradores estavam presentes à hora marcada era-lhes dado algum tempo para retirarem alguns bens dos escombros, mas as pessoas estavam "em estado de choque", "sem emoção" e muitas, quando regressavam a casa, já só encontravam as pedras do rés do chão.

Os funcionários que manobravam as máquinas respondiam: "Eh senhor, foi no entulho".

O entulho, que encheu dezenas de camiões, acabou depositado na Baía das Águas, à saída da cidade, e foi-se acumulando em camadas, que acabaram por acrescentar alguns metros à linha da costa.

"Meia cidade foi para o calhau", explica Maduro-Dias, especialista em gestão e conservação de património cultural, que anos mais tarde foi diretor do Gabinete da Zona Classificada de Angra do Heroísmo, quando a cidade conseguiu a distinção de património mundial da UNESCO, depois de se reerguer.

"Para as pessoas terem uma ideia do que foi lá parar, é entrarem na sua casa hoje, pararem e olharem. E agora? Isto tudo desapareceu. Conseguem imaginar? Então estão em condições de perceber o que é que as pessoas sentiram", descreve.

É preciso recuar no tempo a uma altura em que o plástico não tinha a presença que tem hoje e a maioria dos produtos era comprada a retalho para compreender que o entulho tenha acabado naquele local.

Não havia recolha de lixo e o pouco que não era reaproveitado era deitado ao mar. A Baía das Águas era um dos locais frequentemente escolhidos para o efeito.

Parte da cantaria foi entulhada noutro local da cidade, por baixo da Rua Gonçalo Velho Cabral.

"As cantarias foram postas, em cima umas das outras, como quem põe livros, e a rua alargou para o dobro", lembra o museólogo.

As pedras em melhor estado foram separadas do restante entulho, mas não chegaram a ser reutilizadas na reabilitação das casas.

"A ideia foi arrumar a pedra e acabou por ficar lá, porque a decisão da engenharia foi de que as cimalhas não deveriam voltar a ser de pedra ou, se fossem de pedra, deviam ter uma zona de betão pelo lado de trás", explicou Maduro-Dias.

Apesar do choque era preciso "enxugar as lágrimas e arregaçar as mangas", como apelou o então presidente do Governo Regional dos Açores, João Bosco Mota Amaral.

Foi criado um Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR), que mais do que distribuir materiais, dava apoio técnico à população, no local, para que começasse a reconstruir as suas casas.

As memórias, que agora estavam entulhadas, traziam "uma profunda dor" e "um profundo desalento", mas era preciso "fazer com que rapidamente as pessoas tivessem uma luz, uma orientação", para seguir em frente.

"Eu diria que nunca vi muita gente a ver aquele monte de entulho do seu passado. Vi mais gente preocupada em voltar a pôr a casa de pé", conta o historiador.

Maduro-Dias indica como "contraponto daquele monte de entulho" a criação do império do Espírito Santo do bairro do Lameirinho, onde se juntaram pessoas de várias freguesias da ilha que tinham ficado desalojadas.

"Trouxeram um contentor, enfeitaram com palmeiras, folhas e flores, puseram umas luzes e fizeram a festa do Espírito Santo ali. O único ponto de união desta gente de diversas comunidades de origem era a necessidade de terem a festa do Espírito Santo. É uma atitude muito dolorida, mas de resistência", salienta.

Mais do que o "terror brutal", é essa capacidade de adaptação e de diálogo com as situações que o historiador destaca da catástrofe que abalou a ilha há 45 anos.

"A boa memória que eu tenho do terramoto de 80 é a glória da reconstrução", remata.

Leia Também: Mar desvenda memórias entulhadas há 45 anos em baía em Angra do Heroísmo

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