"É o acontecimento mais marcante da história do concelho das últimas décadas", diz à agência Lusa o presidente da Câmara de Barrancos entre 1993 e 2001 e desde 2005, António Tereno.
Segundo o autarca, a criação do regime de exceção para as touradas com touros de morte, o "prato forte" das festas anuais da vila raiana do distrito de Beja, é um "marco" entre "o antes, a fase de clandestinidade, e o depois, a consagração na lei de uma tradição de Barrancos desde tempos imemoriais".
Também para Nelson Berjano, que liderou o município entre 2001 e 2005, a criação do regime é "o acontecimento mais relevante" da história recente de Barrancos.
"Foi o resultado de uma luta do povo de Barrancos", que começou nos finais da década de 90 do século XX, quando "associações de defesa dos animais tentaram eliminar a tradição e uma componente das festas" da vila, frisa Nelson Berjano à agência Lusa.
Segundo António Tereno, "antes de os media começarem a fazer a cobertura das festas, apesar de a lei em Portugal proibir touros de morte e atendendo à diferença cultural do povo de Barrancos, havia uma condescendência tácita das autoridades em relação às touradas de morte na vila e vingou um pouco o deixa andar".
No entanto, "com a cobertura dos media, que fizeram o que tinham de fazer, ou seja, divulgar o país real, surgiu a contestação de grupos um pouco fundamentalistas que não aceitavam a diferença do povo de Barrancos", conta o autarca.
A "grande pressão" das associações de defesa dos animais "começou em 1997 e gerou um sentimento de união na população barranquenha, e em todos os que respeitam as diferenças culturais dos outros, na defesa da tradição de touros de morte em Barrancos", lembra António Tereno.
Durante aquele período, frisa o autarca, Barrancos cumpriu a tradição e as touradas acabaram sempre com touros de morte, mas enfrentou mais de 100 processos judiciais e "ganhou-os todos", porque "tinha razão" e "graças à competência" do então advogado da autarquia, Fialho Mendes.
"O chamariz da ilegalidade, da tensão e do possível confronto com as forças de autoridade atraiu milhares de visitantes e deu muito rendimento ao comércio local, mas chegou-se a um patamar em que já não havia capacidade de resposta", diz Nelson Berjano, precisando que em cada uma das edições das festas nos anos da polémica passaram por Barrancos "cerca de 20 mil pessoas, dez vezes mais do que a população da vila".
Segundo Nelson Berjano, as declarações sobre a tradição de Barrancos, a 12 de junho de 2002, do então Presidente da República, Jorge Sampaio, durante uma vista à vila, "foram um passo crucial para que tudo se resolvesse".
Na Praça da Liberdade de Barrancos, onde anualmente, é construída a praça de touros improvisada para as festas, Jorge Sampaio defendeu uma solução jurídica capaz de conciliar a lei com a tradição da morte de touros na arena nas festas do concelho.
"O Presidente é a favor da legalidade, mas, acreditando na autoridade democrática, recomenda que tentemos preservar as tradições e perceber os povos mais distantes. Há tradições que seria conveniente enquadrar legalmente de outra maneira", disse Jorge Sampaio.
As declarações de Jorge Sampaio levaram os grupos parlamentares de então do CDS-PP, PSD e PCP a apresentarem um projeto conjunto que criou um regime de exceção para espetáculos com touros de morte em Barrancos e foi aprovado, a 17 de julho de 2002, no Parlamento, com 116 votos a favor, 92 contra e nove abstenções.
"Duvido que a questão se tivesse resolvido tão rapidamente se Jorge Sampaio não tivesse dito o que disse", sublinha Nelson Berjano, lembrando que a lei com o regime de exceção para Barrancos foi publicada em julho de 2002 e as touradas com touros de morte das festas em agosto daquele ano já decorreram legalmente.
"Fizemos vingar, e com que o respeitassem, o nosso direito à diferença. A consagração da tradição dos touros de morte na lei em 2002 foi uma luta do povo bem conseguida", afirma António Tereno.
A 30 de agosto de 2002, o espanhol Luís Mariscal conquistou um lugar na história das festas de Barrancos ao tornar-se o primeiro toureiro a matar um touro legalmente na vila.
"Ser o primeiro toureiro a, na legalidade, poder matar touros nesta vila é uma grande honra e um privilégio, porque esta é uma praça com particularidades únicas", disse à Lusa Luís Mariscal, naquele dia, no final da primeira corrida com touros de morte legalizada em Barrancos.
Lembrando o ditado popular, segundo o qual "o fruto proibido é o mais apetecido", António Tereno conclui que, após a legalização dos touros de morte em Barrancos, as festas, que decorrem nos últimos quatro dias de agosto, "perderam os milhares de visitantes atraídos pela polémica, mas recuperaram o espírito familiar, mais apreciado pela população".