"As pessoas não se sentem tão pobres, mas estão tão pobres como antes"

A poucos dias da grande campanha de recolha de alimentos do Banco Alimentar Contra a Fome, a presidente da instituição de Lisboa, Isabel Jonet, é a entrevistada desta semana do Vozes ao Minuto.

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Patrícia Martins Carvalho
30/11/2016 08:40 ‧ 30/11/2016 por Patrícia Martins Carvalho

País

Isabel Jonet

Os anos da crise foram muito difíceis para os portugueses e também para o Banco Alimentar Contra a Fome que teve de repensar a sua estratégia de angariação de alimentos para poder distribui-los pelos mais carenciados.

O estilo de vida consumista dos portugueses, a polémica dos ‘bifes’ e os créditos ao consumo foram outros dos temas em cima da mesa.

Durante esta entrevista exclusiva ao Notícias ao Minuto*, Isabel Jonet garante que "ainda não acabámos de passar tempos difíceis" e que os portugueses continuam pobres, mas não se sentem tão pobres como no início da crise.

Como foram os tempos de crise para o Banco Alimentar Contra a Fome?

Os tempos que se viveram em Portugal foram mesmo muito difíceis. Perderam-se apoios sociais, houve muitas pessoas que ficaram desempregadas e muitas famílias perderam as suas casas. Se não fossem as IPSS nós não teríamos tido a paz social que tivemos.

O Banco Alimentar não escapou à crise porque vive de doações diárias de excedentes da indústria e da agricultura, das cadeias de distribuição e também das duas grandes campanhas de recolha anuais. Mas quando há crise as empresas produzem menos, se produzem menos têm menos excedentes, se têm menos excedentes dão menos. Então tivemos que arranjar soluções que nos permitissem compensar esse decréscimo. Em 2010 lançámos a campanha ‘Papel por Alimentos’ e conseguimos recolher mais de dez mil toneladas de papel ao longo de três anos que fomos trocando por alimentos. Mas quando olho para trás, parece-me que o primeiro grande embate que houve no Banco Alimentar foi em 2009. Em 2010 melhorou, mas depois piorou em 2011 e 2012. E já em 2007, numa entrevista, eu tinha dito que estava a surgir uma nova categoria de pessoas que designei como novos pobres e por causa disso caiu-me o céu e a terra em cima.

Como se apercebe do surgimento destes novos pobres?

Através dos pedidos que recebemos. Nessa altura não tinha nada a ver com a crise económica, mas sim com o sobre-endividamento das famílias. Já havia muitas famílias de classe média que tinham obtido empréstimos superiores à sua capacidade financeira para pagar, porque era muito fácil obter um crédito e, por isso, havia muitas famílias que recorriam ao crédito para viver acima das suas possibilidades. Depois a situação económica piorou em 2009. Em 2010 apesar de tudo houve um respirar das famílias, porque aumentou a dívida pública, e a partir de 2011 a situação degradou-se. Os anos de 2011, 2012 e 2013 foram mesmo os piores.

As condições de vida destas famílias estão melhor atualmente?

Hoje em dia não é que a situação das famílias tenha melhorado, só que houve um ajustamento das expetativas e do modo de vida. As pessoas hoje vivem com menos do que viviam há cinco anos, mas já não têm a expetativa de virem a viver acima das possibilidades. Ou seja, houve um ajustar das expetativas e portanto as pessoas não se sentem tão pobres, mas estão tão pobres como estavam há cinco anos, a diferença é que agora gastam menos dinheiro.

E já em 2007, numa entrevista, eu tinha dito que estava a surgir uma nova categoria de pessoas que designei como novos pobres e por causa disso caiu-me o céu e a terra em cimaA diferença está então no estilo de vida…

Sim. As pessoas compravam os gadgets todos e é legítimo, porque uma pessoa que tem um determinado salário tem o direito de gastar onde quer. Contudo, deve fazê-lo dentro das possibilidades do seu orçamento. No entanto, tinha-se criado um estilo de vida em que nós todos achávamos que haveria sempre dinheiro para tudo, porque se não tivéssemos pedíamos um crédito. O crédito era uma coisa demasiado fácil e atrativa. Mesmo as famílias mais pobres tinham a maior facilidade em obter créditos de cinco mil euros. No Banco Alimentar colaboram muitas dessas pessoas que pediram esses créditos, mas fizeram-no sem a consciência de que tinham de pagar juros.

Não sabiam que tinham de pagar os juros desses empréstimos?

Não. As pessoas achavam que não porque a publicidade dos créditos induzia as pessoas com baixíssima literacia financeira a acreditar que não iam ter de pagar juros, apenas o capital avançado. Todos os meses tinham juros e nunca liquidavam sequer parte do capital, estavam endividados para anos e não imaginavam que isso fosse possível, porque não têm cultura financeira suficiente para perceber que não há almoços grátis. Acho que houve uma grande responsabilidade de quem oferecia empréstimos. E agora tudo isso voltou. Há outra vez uma pressão da publicidade para que as pessoas voltem a contrair empréstimos que lhes abrem portas para o consumo que é de bens e oportunidades com que estas pessoas sonham, mas que efetivamente não podem ter. É preciso ensinar as pessoas que não podemos comprar tudo e esta educação tem de começar nas escolas.

Em 2012 disse que “se nós não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, então não comemos bifes todos os dias". Foi mal interpretada?

Sim, fui ‘desinterpretada’. Era uma metáfora que significava apenas que não se pode viver acima das suas possibilidades. Isto aplica-se tanto às famílias como aos Estados. Quem ‘desinterpretou’ fez com a real intenção de atingir alguém ou uma instituição que, pelo trabalho que desenvolve, incomoda alguns setores

Porque é que incomoda?

Porque há pessoas que acham que o Estado tem de garantir exclusivamente todas as necessidades. No meu modelo de sociedade, cada um de nós tem a obrigação de contribuir para que o mundo seja mais justo. Para mim o Estado tem de garantir direitos que são básicos e universais. No entanto, cada um de nós tem de fazer a sua parte.

Os tempos difíceis já acabaram ou estão para durar?

Nós não acabámos de passar tempos difíceis. Há uma ilusão de que os tempos difíceis passaram, mas não estão acabados e até a nível europeu a situação económica alterou-se totalmente quando comparado com aquilo que era há seis anos. Hoje vivemos numa Europa que é uma Europa completamente diferente daquela que existia antes de 2011.

Fui 'desinterpretada'. Metáfora dos bifes significava apenas que não se pode viver acima das possibilidadesA perceção dessa Europa e do lugar de cada cidadão nessa Europa alterou-se profundamente. A Europa, ou a União Europeia (UE), hoje não é aquilo que tinha sido, mas sobretudo não vai ser aquilo que se tinha imaginado…

O que é que vai ser então?

Vai ser diferente. Não é possível continuar a pensar-se que a UE vai ser como era. A UE começou a mudar quando se alargou mais a leste e quando passaram a entrar países que eram diferentes dos países iniciais, o que é uma consequência quase que natural, porque os atuais Estados membros são pares que são ímpares e juntos aquilo que podemos assegurar, e que é muito importante, é o clima de paz. E tem havido algumas ameaças a esta paz e os europeus têm de se unir hoje, sobretudo, para preservar, não um padrão de vida, mas esta paz que nos permite ser mais fortes no mundo. E a primeira ameaça a essa paz e estabilidade tem sido os ataques terroristas e isso altera totalmente a forma de pensar das pessoas.

Os europeus têm de se unir, mas a verdade é que já começaram a surgir focos de tensão devido à questão dos refugiados…

Essa é talvez a maior ameaça que houve na Europa depois da guerra. Os migrantes e a forma como nós estamos a lidar com isso.

A ameaça são os refugiados ou a forma como a Europa está a lidar com eles?

A ameaça é a forma como estamos a lidar com eles. Os migrantes e estes movimentos migratórios são como a água, são imparáveis. Estas pessoas vêm a fugir da guerra que existe nos seus países de origem, vêm à procura de paz. Preservar a paz não é fechando fronteiras, mas é regulando e acolhendo da melhor forma que pudermos todas estas pessoas.

Então qual é a solução?

Não sei. Acho mesmo que ninguém sabe. Porque se soubéssemos não havia a quantidade de pessoas que há nos campos de refugiados, que estão meses à espera de poderem entrar na Europa e vivendo em condições indignas de um ser humano. O que há a fazer é na origem destes conflitos e isso não sei como se resolve.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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