O ano político em Portugal não fica apenas marcado pelas eleições europeias, em outubro há legislativas. O trabalho da Geringonça será, ao que tudo indica, já avaliado nas europeias. Marisa Matias assume a importância que a união dos partidos da Esquerda teve no contexto que se vivia há quatro anos, mas ressalva que “ficou muito aquém daquilo que seria necessário”.
O Bloco de Esquerda continua a insistir na reestruturação multilateral da dívida e no papel que a nova Lei de Bases da Saúde terá no futuro do SNS.
A eurodeputada ressalva que ainda é cedo para se falar na repetição da Geringonça e deixa os “prognósticos para o fim do jogo”, ou seja para depois das legislativas.
Marisa Matias aborda ainda a presidência de Bolsonaro, no Brasil, e a situação na Venezuela.
Os portugueses vão avaliar o trabalho da Geringonça já nas europeias e depois principalmente nas legislativas. Como é que a Marisa Matias analisa esse trabalho da união à Esquerda?
Era aquilo que era preciso fazer num contexto de destruição da economia nacional, com impactos muitos significativos, com um regresso da emigração em força por falta de oportunidades aqui. Os portugueses e não só, as pessoas que vivem cá, pagaram um preço muito elevado com a austeridade. As pessoas sabem que quem elege o Governo é o Parlamento e não o voto direto, ao contrário da ideia que se tenta passar quando se diz que o Governo é ilegítimo. Não, não é ilegítimo porque tem um apoio parlamentar maioritário.
Era uma questão de responsabilidade e de assumir que todos deviam estar disponíveis para uma solução que melhorasse a vida no país. Foi um acordo que ficou muito aquém daquilo que seria necessário. Incidiu em dimensões muito restritas, há muitas outras que ficaram fora do acordo e que seriam fundamentais. Mas foi o acordo possível porque foi aquele em que estas forças estavam de acordo. Não se faz um acordo sobre coisas em que se está em desacordo. Mas isso permitiu por um lado provar que não há nenhuma inconsistência entre se manter a identidade e poder convergir naquilo em que se está em acordo. Acho que o balanço é positivo, no sentido em que permitiu recuperar rendimentos, aumentar o salário mínimo quatro vezes, parar processos de privatização, entrar em domínios fundamentais na vida das pessoas, como garantir taxas sociais, por exemplo da eletricidade e de outros bens de primeira necessidade. Ficou muito aquém porque as reformas continuam muito baixas, os salários continuam muito baixos, os serviços públicos precisam de mais investimento e ainda há situações de enorme injustiça por resolver, como a questão dos cuidadores informais ou o reconhecimentos das carreiras de profissionais em setores como a saúde, por exemplo dos enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica. Não se lidou de forma séria com a questão dos professores e da progressão na carreira.
Enfim, há muita coisa que ficou longe de ser perfeita, mas seguramente que com esta conjugação os resultados para a sociedade portuguesa foram muito mais positivos do que se tivesse sido aplicado o programa económico do PSD ou do PS, onde ainda se previam cortes nas pensões. No caso do programa económico do PS eram 600 milhões de euros de cortes em pensões. Não havia reposição de salários e de pensões, o salário mínimo ficaria aquém dos aumentos obtidos. Apesar de tudo, esta conjugação de esforços permitiu que o programa executado fosse melhor do que se fosse o programa de Mário Centeno.
Mário Centeno? Há uma contradição grande nesses dois papéis e nem tudo se justifica para ser presidente do EurogrupoJá disse que Mário Centeno, presidente do Eurogrupo, age de forma diferente do Mário Centeno, ministro das Finanças. Pode dizer-se que é uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde?
Não, não creio que seja isso. Eu acho é que ele no Eurogrupo está mais à vontade, está mais confortável. No Eurogrupo ele pode realmente pôr em prática o seu programa, em Portugal esse programa é condicionado pelo acordo que existe com as esquerdas e se calhar estará mais à vontade no Eurogrupo do que no Ministério das Finanças. Há uma contradição grande nesses dois papéis e nem tudo se justifica para ser presidente do Eurogrupo. Alguma maior correspondência ao que tem sido o papel como governante provavelmente seria desejável.
Às vezes fico com a sensação de que se ficarmos à espera do Partido Socialista podemos esperar sentadosA reestruturação multilateral da dívida não foi concretizada nesta legislatura, mas continua a ser uma das bandeiras do Bloco. Já gera mais consenso no panorama político nacional. Acredita que será possível avançar com isto numa próxima legislatura?
Sinceramente às vezes fico com a sensação de que se ficarmos à espera do Partido Socialista podemos esperar sentados. Não sei se há esse consenso. É verdade que o PS disse que também estaria empenhado em avançar nessa direção, mas depois também disse que era necessário esperar pelas eleições em Itália porque não era um bom momento político, depois disse que era necessário esperar pelas eleições na Alemanha porque não era um bom momento político, e entretanto já estamos em novas eleições legislativas e ainda estamos à espera. É uma necessidade, é uma urgência. Há muitos países da União Europeia que não conseguem cumprir o critério da dívida. A culpa não é das pessoas, ao contrário do que foi dito. Temos ainda muitos fatores de endividamento que resultam da nossa dependência externa, em setores como a energia e outros. Uma parte significativa da dívida tem a ver com o funcionamento dos mercados financeiros e resulta diretamente daí, todos esses mecanismos têm de ser tidos em consideração. Tem de haver uma política nacional que reduza os nossos fatores de dependência externa, mas ao mesmo tempo uma renegociação multilateral no sentido de saber identificar os problemas e onde é que o sistema financeiro está a agravar aquilo que são as condições de endividamento de alguns dos países.
É ideal que se faça, desse ponto de vista, de uma forma multilateral porque há muitos países que estão nessa situação, não é apenas Portugal. Creio que devemos continuar a avançar e a reivindicar essa aposta, e não sei se existe esse consenso mas espero que venha a existir. E mais depressa do que tarde porque não é apenas uma declaração de intenções que é preciso, é preciso mesmo avançar para uma reestruturação e renegociação da dívida nesses termos.
Grande parte das fragilidades do SNS tem a ver com as Parcerias Público-PrivadasSei que considera que uma das áreas em que a Geringonça foi incapaz foi a do SNS. Nesta altura ainda decorrem negociações entre o Governo e os partidos. Continua a achar que o PS está inclinado para a Direita neste processo?
Vamos ver como chegam ao fim as negociações. Durante vários anos o PS ameaçou que só faria negociações nestes domínios com a Direita, foram várias as situações em que houve a ameaça de que a Esquerda não seria parceira para negociar a Lei de Bases da Saúde. Depois mudou de ideias e do meu ponto de vista bem, agora não sei qual será a conclusão das negociações. Pode ser que se consiga evitar o pior e que se retome o caminho de financiamento do Serviço Nacional de Saúde, que é seguramente a maior conquista da democracia em Portugal.
A Lei de Bases da Saúde é fundamental para salvar o SNS?
Completamente porque grande parte das fragilidades do SNS tem a ver com as Parcerias Público-Privadas, com os custos que se pagam a privados em meios de diagnóstico, por exemplo. Tem a ver com o não reconhecimento das carreiras ou da valorização dos profissionais deste setor, e acho que só com uma lei mais abrangente é que se consegue pôr todas estas dimensões em cima da mesa e creio que não podíamos ter melhor base do que aquela que foi deixada por António Arnaut e João Semedo. É uma base muito boa para se avançar na Lei de Bases da Saúde.
Em Portugal quebrou-se o tabu de que não havia solução governativa fora do arco da governaçãoMiguel Guimarães, o bastonário da Ordem dos Médicos, chegou a dizer que não fazia sentido uma nova Lei de Bases da Saúde sem estatuto do cuidador informal. Concorda?
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tenta-se fazer sistematicamente esta discussão e esta confusão para não avançar nem com uma nem com outra. O estatuto do cuidador informal não é uma questão de saúde, é uma questão social e laboral. Porque a questão de saúde é tratada na área da saúde. O facto de que quem cuida não tem direito a uma carreira contributiva não é questão de saúde. O facto de não ter direito a férias, a descanso, o facto de não ter apoio técnico e profissional. Há partes que tocam com a Lei de Bases da Saúde como a rede de cuidados continuados ou o apoio psicológico, mas há outras que são as mais difíceis de resolver que têm mais a ver com a Segurança Social e com questões laborais e sociais, do que propriamente com questões de saúde. Quem tenta empurrar o estatuto do cuidador informal para a saúde está a tentar que ele fique tão vazio, tão vazio, que não serve de nada aos cuidadores porque podem cuidar a vida inteira mas se tiverem de abdicar do seu trabalho e não puderem fazer descontos para a Segurança Social, quando chegarem à idade de reforma não têm mínimos para se poderem reformar porque essa carreira contributiva não entrou. Portanto, são duas discussões separadas, tocam-se em algumas coisas mas a questão do estatuto do cuidador informal não é parte da Lei de Bases da Saúde.
Eleição de Bolsonaro? Uma tragédia no Brasil, um país maravilhoso com pessoas maravilhosas, mas onde de facto foram ultrapassadas todas as linhas vermelhas
Se houver condições para se repetir um acordo à Esquerda para a próxima legislatura, há disponibilidade da parte do Bloco?
Depende das circunstâncias, depende da relação de forças. Depende da política essencialmente e daquilo que são compromissos políticos, depende de tanta coisa. O que nós sabemos é que em Portugal se quebrou o tabu de que não havia solução governativa fora do arco da governação e as forças governativas, das quais se dizia que jamais poderiam participar numa solução governativa ou de apoio a um Governo, contribuíram de forma efetiva, todas elas, para alterar o rumo da política, e introduziram medidas que viram a luz do dia e que foram aprovadas. Portanto estamos num contexto em que o debate eleitoral já será feito em moldes diferentes do que alguma vez foi feito em Portugal, mas prognósticos só no fim do jogo.
A cabeça de lista do Bloco lamenta que a comunidade internacional esteja a jogar com a crise na Venezuela© Global Imagens
De acordo com uma sondagem, Jair Bolsonaro tem o resultado mais baixo em quase 20 anos nos primeiros 100 dias de presidência. Como é que avalia os primeiros meses da governação de Bolsonaro no Brasil?
Uma tragédia no Brasil, um país maravilhoso com pessoas maravilhosas, mas onde de facto foram ultrapassadas todas as linhas vermelhas. Por exemplo, temos situações como o assassinato de Marielle Franco que até hoje não tem culpados, ou situações em que se pensou em colocar a hipótese de fazer um dia de celebração da ditadura militar que tanta gente massacrou e tanto mal fez ao país, em que a justiça pelas próprias mãos passou a ser algo aceitável na convivência em sociedade, onde há uma afronta tão grande às pessoas mais pobres. Parece que é uma espécie de vingança em relação às melhorias na sociedade brasileira para essas classes mais baixas. É muito triste assistir a isto e perceber como foi possível que Bolsonaro fosse eleito. Fosse em que país do mundo fosse, não apenas no Brasil.
Nas eleições jogamos a nossa vida, não é uma vingaçazinha pessoal, é o futuro que está em jogoMuitos brasileiros admitiram ter votado contra o PT. Isso foi decisivo?
A questão do PT foi marcante. A imagem de corrupção que se colou ao PT foi muito determinante. Na realidade muitos votos terão sido mais anti-PT do que outra coisa. Mas eu não tenho nenhum feitio nem jeito para desvalorizar ou ser maternalista ou paternalista em relação às opções eleitorais. Nas eleições jogamos a nossa vida, não é uma vingaçazinha pessoal, é o futuro que está em jogo. Quem votou em Bolsonaro fosse por que razões fosse, se o fez como uma vingança contra outro partido ignorou tudo aquilo que se sabia de Bolsonaro, tudo aquilo que ele afirmou. Um homem que elogiou os torturadores de Dilma, que acusou uma colega e disse que nunca seria violada porque nem sequer tem beleza suficiente para ser violada. Sou incapaz de reproduzir todas as coisas que se sabiam e conheciam dele.
Nas eleições nunca se elege o próximo número de divertimento para as nossas vidas. Estamos a eleger as nossas vidas e o nosso futuro e acho que não há desculpas, sejam elas de que natureza forem, até porque havia outros candidatos, como Ciro Gomes. Ele é insuspeito de ter alguma coisa a ver com a linha política de Bolsonaro, mas se alguém quis dar um voto de castigo e optou por um elemento que não é uma caricatura, é perigosíssimo para a democracia, nesse caso a responsabilidade é coletiva. Não acho que haja nada que justifique escolher alguém como Bolsonaro.
Venezuela? A única e possível solução neste cenário era dar ouvidos a António Guterres e às Nações Unidas. Todas as outras parecem-me inviáveis. Maduro é inviável. Já o é há muito tempo. Guaidó nestes termos tambémO impasse na Venezuela mantém-se [a entrevista foi feita antes da tentativa de golpe de estado que está em curso esta terça-feira] e o país é afetado por uma grande crise. A comunidade portuguesa na Venezuela é significativa. Há alguma solução à vista?
Acho que aqui o problema é que está toda a gente a jogar com a Venezuela e ninguém está a pensar no povo venezuelano. Estão todos a jogar para poderem arranjar um posicionamento qualquer que lhes permita ter mais acesso a recursos e salvaguardarem interesses futuros. É uma narrativa muito utilizada por Maduro para desvalorizar tudo o que se passa na Venezuela. É uma narrativa que tem uma parte de verdade, embora não justifique tudo o que se passa na Venezuela, pelo qual Maduro é muito responsável. Fez uma governação muito longe daquilo que se pode apoiar, do meu ponto de vista. Maduro não é solução, mas uma comunidade internacional irresponsável ao ponto de apoiar e de reconhecer como presidente legítimo o presidente da Assembleia Nacional lançou mais óleo na fogueira.
A única e possível solução neste cenário era dar ouvidos a António Guterres e às Nações Unidas, que há muito tempo alertam para a necessidade de eleições democráticas e transparentes, para a necessidade de se prestar atenção ao povo venezuelano, de lhe dar a opção de escolher livremente, de fazer passar os corredores de ajuda humanitária e de ter mediadores num processo que leve a eleições democráticas. Várias pessoas ofereceram-se para isso, como López Obrador, presidente do México, e que teria provavelmente o apoio da comunidade internacional, se a comunidade internacional não estivesse mais interessada em, juntamente com Trump e Bolsonaro, disputar recursos e fazer politiquice em vez de política. Não há muito que inventar. A solução proposta pelas Nações Unidas é a mais viável. Todas as outras parecem-me inviáveis. Maduro é inviável. Já o é há muito tempo. Guaidó nestes termos também.
E depois não podemos ter dois padrões. Não se pode dizer que as eleições que elegeram Maduro não foram transparentes e democráticas e pedir a realização de eleições democráticas e transparentes para que as pessoas possam escolher livremente, quando a mesma lei eleitoral e as mesmas instituições que controlaram essas eleições foram as que elegeram Guaidó para a Assembleia Nacional. A comunidade internacional coloca-se numa situação ridícula ao dizer que umas eleições foram ilegítimas e as outras que foram exatamente no mesmo sistema foram legítimas.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.