Admite que não tem perfil de militante partidário, mas foi o que foi desde os 12 anos. Esteve no PCP até aos 20, não por "ingenuidade", mas porque todos os caminhos - o seu e o da família - tinham esse destino. Mais tarde, militante e dirigente do Bloco, partido do qual saiu há quatro anos. Orgulha-se de o ter ajudado a construir. Hoje, sem qualquer atividade partidária, ocupa um lugar de destaque no comentário televisivo e no escrito, onde, desenganem-se, "não basta mandar uns bitaites". Gosta da contradição.
Daniel Oliveira diz não ser um 'gooder' e alguém que se esforce para "ser gostado". É-lhe completamente indiferente o que as pessoas pensam de si. Não é neutro, nem podia sê-lo. É, acima de tudo, coerente com as suas convicções que, frisa, nunca deixa à porta do trabalho. Só não diz que nunca voltará a ter atividade partidária por uma questão de auto-preservação. "Agora é nunca". Até porque, apesar de a felicidade não ser para si "a coisa mais importante da vida", diz ser muito mais feliz fora dos partidos.
Olha com desagrado para aquilo que está a acontecer no mundo, em parte, por culpa das redes sociais, que estão a fazer com que se deixe de pensar. "O sorriso das férias em Cancun e a fome em África têm exatamente o mesmo valor. Não há inteligência. E isso só pode causar uma brutal ansiedade", lamenta.
Da vida pessoal e da família não gosta de falar, porque isso "não cabe numa entrevista". Não quis ser conhecido como o filho de. Isso seria "uma tragédia". Não por ser filho de quem é - Herberto Helder -, mas por uma questão de afirmação profissional.
Estou a falar com o político, comentador ou jornalista?
Eu penso política, intervenho politicamente. Abandonei a vida política quando saí do Bloco, apoiei e envolvi-me na candidatura do Livre nas últimas legislativas. Um político é alguém ou que é dirigente de um partido ou que exerce funções de Estado, eu não faço nenhuma das coisas. Não exerço, não sou candidato a elas, não tenho militância partidária, não tenho qualquer tipo de intervenção política, a não ser aquela que todos os cidadãos devem ter. Participo no debate político, tenho opiniões políticas e não as mascaro de análise. Depois há os outros comentadores políticos que são opinião política fingindo que estão a fazer análises. Dou a minha opinião.
Foi um interesse que começou muito cedo.
Tirando a parte do comentador, que foi uma coisa inesperada na minha vida, a política e o jornalismo acompanham-me desde muito cedo. A política desde os 12 anos, o jornalismo, pelo menos como vontade, antes disso. Decidi que queria ser jornalista na quarta classe e tornei-me aos 18 anos. Entrei para a Juventude Comunista aos 12 anos. São duas coisas que sempre me acompanharam e que eu não acho incompatíveis. Incompatível é fazer jornalismo político e fazer política ao mesmo tempo. E as duas paixões nascem da mesma coisa. O comentário político junta as duas coisas, o gostar de escrever e a política. Nunca quis ser jornalista por gostar de estar numa redação ou por gostar de escrever, apesar de gostar muito de o fazer. O interesse pelo jornalismo é a mesma origem do interesse pela política – o interesse pela coisa pública.
Cresci numa família onde esse interesse também começou muito cedo. Acho estranho é que pessoas que chegam ao jornalismo nunca, antes, se interessaram por política. No jornalismo é que se interessaram pelo mundo? É suposto sermos jornalistas porque nos interessamos pelo mundo. Está a falar com o que sou: comentador, jornalista e um cidadão empenhado com opiniões políticas. Nunca deixarei de ter opiniões políticas.
Não sou uma borboleta, não ando a saltitar nas minhas opiniões conforme o tema. O meu pensamento tem coerência políticaEnquanto jornalista e opinion maker, preocupa-o a neutralidade?
Não sou neutro. Não sou, nunca quis ser e não tenho interesse nenhum em ouvir pessoas que querem parecer neutras. Não sou uma borboleta, não ando a saltitar nas minhas opiniões conforme o tema. O meu pensamento tem coerência política. Não sou aquele género de comentadores que são de Esquerda numas coisas e de Direita noutras e depois de Centro noutras. O nosso pensamento é coerente, as coisas não estão desligadas. Há pessoas que dizem que em questões económicas são de Direita mas em questões sociais são de Esquerda. Isso é um disparate. As questões económicas e as sociais estão ligadas. Se temos políticas económicas de Direita, o resultado social será aquele que a Direita defende. Tenho um pensamento coerente que não é pré-fabricado.
Que é?
Considero que aquilo que marca o meu pensamento político, como pessoa de Esquerda que sou, são as questões económicas e sociais que se concentram, sobretudo, na questão da igualdade. Acredito que a riqueza das pessoas não resulta do mérito. Como tal, acredito na igualdade de oportunidades e na redistribuição da riqueza, dentro dos limites que a social-democracia prevê. E defendo os direitos humanos, e isso inclui os direitos das minorias. Essas são as minhas posições chaves. Fora disso tenho posições muitíssimo heterodoxas e que muitas delas irritam a Esquerda porque acha que quando se é de Esquerda tem de se ter o pacote inteiro.
Como o gostar de ir a touradas?
Por exemplo. É a polémica onde acabo sempre envolvido. Ou seja, aquilo que eu disse são os meus dois compromissos. Acrescento um terceiro que corresponde a uma nova geração de políticas que interfere com todos os outros que é a questão ambiental. Assumir que o planeta tem recursos finitos e que o nosso dever é deixar a casa onde chegámos como a encontrámos para os que venham a seguir.
Não deixo de ter estas convicções quando sou jornalista, quando sou opinador, não guardo estas convicções para a minha atividade política. Isto é anterior a qualquer uma das minhas atividades. É o que sou enquanto cidadão. Não consigo perceber as pessoas que têm um pensamento político, uma mundividência, uma forma de olhar o mundo, e acham que na sua profissão isso fica à porta. Não fica. António Hespanha, um historiador, escreveu uma vez um título que repito muitas vezes: ‘O meu trabalho é política’. Fui um ano publicitário, não foi por acaso que só consegui ser um ano. A felicidade é muito sobrevalorizada, a coisa mais importante na vida não é a felicidade – a felicidade é um bem consumível.
A coisa mais importante na vida não é a felicidade. A coisa mais importante na vida é nós chegarmos ao fim dela e pensarmos se fez algum sentido andarmos cá
Se não é a felicidade é o quê?
A coisa mais importante na vida é nós chegarmos ao fim dela e pensarmos se fez algum sentido andarmos cá. Em princípio não fez. Mas, aquele que possamos encontrar para nós é: ‘eu, na minha insignificância, tornei este sítio onde estou um bocadinho melhor ou pior’. E isso não tem a ver com convicções políticas, tem a ver com que somos pessoalmente, com a nossa família, noutros sítios, e no nosso trabalho. No tipo de trabalho que faço é difícil medir se ele contribui para melhorar a vida das pessoas. Mas gosto de pensar, pelo menos, que no trabalho sou coerente com o que sou na política.
Mas isso não lhe traz felicidade?
Não é felicidade. É satisfação. Aquilo que realmente é relevante na vida implica demasiado trabalho no meio para estarmos a pensar se somos felizes ou não. Acredito mesmo que se alguma coisa explica a nossa vida é a diferença que fazemos. Não é o sucesso. Isso é uma coisa a que eu não ligo rigorosamente nada. Isso nem sempre traz felicidade. Houve pessoas que fizeram uma enorme diferença nas nossas vidas e que, para fazerem isso, não tiveram essa oportunidade de serem felizes. Pessoas que, por exemplo, viveram em ditaduras. E, no entanto, acho que a vida deles fez mais sentido do que a de outros.
O seu entusiasmo a discutir política é visível a nível físico. Isto é, no Eixo do Mal vemo-lo a dar saltos na cadeira. Essa paixão pela discussão começou quando?
Vou tendo vários tiques. Estou a tentar resolver esse [risos]. A paixão pela discussão nasceu comigo. O entusiasmo faz parte da minha natureza e as pessoas confundem muitas vezes com o ser impulsivo. Não sou nada impulsivo, não sou na minha vida e muito menos na política. Entusiasmo e empenho não significam ser impulsivo. Na minha família materna toda a gente discute política e sempre se discutiu assim, à italiana e com muito empenho.
Daniel Oliveira tornou-se militante do Partido Comunista aos 12 anos© Blas Manuel
E chateiam-se?
Durante cinco minutos, sim. Eu sou a ala Direita da minha família. Percebe-se que o espectro político não é muito alargado [risos].
Tem graça ser o mais à Direita.
Pode dizer-se que sou o mais moderado, o mais reformista. Tenho um irmão que é do PCP, passando por outro irmão que é dirigente do Bloco de Esquerda, e, de resto, toda a família alargada, tios, primos, toda a gente discute política.
Se não discutisse muito, provavelmente, tinha continuado a ser comunista, nunca me teria confrontado a mim próprio com as fragilidades dos meus argumentos
O que é que numa discussão o tira do sério?
Só me zango com a estupidez. É a única coisa a que, politicamente, sou intolerante e não devia ser. Ela não é distinguida democraticamente e não há maneira como resolver isso. Só me chateio ou com a estupidez ou com a desonestidade. Quando as pessoas dizem que a discussão não vai chegar a lado nenhum. Pois, as discussões não servem para chegar a lado nenhum, servem para as pessoas confrontarem as suas convicções até consigo próprias. Eu era comunista, a maior parte dos meus amigos não era, e eu deixei de ser comunista porque discutia muito. Se não discutisse muito, provavelmente, tinha continuado a ser comunista, nunca me teria confrontado a mim próprio com as fragilidades dos meus argumentos e com a falta de convicção a defendê-los.
Desinteresso-me por aquele demagogo que, num debate, arranja truques. Interrompe como uma técnica para o outro não se ouvir, que arranjou umas frases que sabe que a audiência vai gostar, mas não tem como acreditar nelas. Desinteresso-me porque, felizmente, não tenho de praticar uma política partidária e, portanto, não tenho de ganhar os votos de ninguém, nem sequer o apoio. Acho que em Portugal se discute muito mal política.
Porquê?
Para já, acho que as pessoas se repetem. Devo dizer que, por disciplina, vou lendo o que os outros escrevem, há umas que gosto muito de ler e outras que gosto muito de ouvir, mas evito ser submergido pela banalidade. Tento o retrato geral, o que é que as pessoas estão a ver e depois ir ler as coisas que me interessam. Porque quero contribuir para um debate que não seja a mera repetição do que os outros já disseram. Não é por ser original, é para ser debate. É um fenómeno o que acontece no debate mediático. Ouvimos um ou dois comentadores a dizer uma coisa, depois passamos a semana toda a ouvir outros a repetir ipsis verbis. Não é repetir ideias, é repetir as palavras. Gosto de ouvir coisas novas e tentar dizer coisas que ajudem, de alguma forma, a pensar. Nem que seja pela irritação.
Usa muito essa técnica?
Não. Não uso muito. Sou informal a discutir. Sou um provocador natural, mas não uso a provocação como uma táctica para dar nas vistas. O que veem de provocação minha é natural. Desde miúdo que sou provocador, é uma coisa que me sai naturalmente, mas que não uso como táctica de puxar holofotes ou polémicas inúteis. Porque gosto pouco de ser obrigado a discutir a palavra que utilizei, gosto mesmo é de discutir o conteúdo. Dos momentos que mais me irritam em discussões é quando percebo que fui mal entendido. Pior ainda, quando sinto que as pessoas quiseram mal entender. Escrevi uma vez num texto que "a vida do ser humano mais asqueroso vale mais do que a de um animal".
Disse que a vida do Hitler valia mais do que a da minha cadela. Vivermos num tempo em que frases se viralizam é a morte do debateFoi um texto que se tornou viral nas redes sociais.
Não era um texto leve. Não estou a dizer que era um texto filosófico. A questão central era porque é que nós valorizamos a vida humana. Era um texto que tinha a ver com o facto de considerarmos a vida humana irrepetível. Cada uma. Nós somos portadores de uma coisa que os outros animais não são, que é o livre arbítrio. A liberdade que temos torna-nos irrepetíveis. Era um debate em torno da singularidade da vida humana. Essa frase espalhou-se pelas redes sociais. Até expliquei mais, disse que a vida do Hitler valia mais do que a da minha cadela. Vivermos num tempo em que frases se viralizam é a morte do debate. Ninguém quis saber o que é que eu pensava do assunto. Vivemos – e se calhar contribuo para isso – uma indignação permanente, vazia, histérica e totalmente inconsequente.
Acredito ferozmente na liberdade de todos falarmos, nem todos temos o direito de ser ouvidosÉ o que mais o aborrece nas redes sociais que tanto usa?
Uso as redes sociais, mas tenho uma página que não me permite ver as redes sociais dos outros. Aquilo para mim é um blog. Não consigo estar a ver o Facebook e saltar em dez segundos do gato querido para as férias nas Canárias, para o aquecimento global, os impostos e o jogo do Benfica, tudo seguido. Não consigo pensar assim e acho que não se pensa assim. Isto é a nova forma de não pensar. Quem quiser continuar a pensar vai ter de continuar a pensar de outra maneira e concentrar-se. Depois, irrita-me a falta de mediação. Não acredito no debate não mediado. Tenho no meu Facebook 3 mil pessoas bloqueadas. Acredito ferozmente na liberdade de todos falarmos, nem todos temos o direito de ser ouvidos. Quando se vê nas caixas de comentários dos jornais 80% dos comentários são insultos sem qualquer conteúdo político, a textos, por exemplo, de opinião, percebe-se que não é debate. Acho que nunca debatemos tão pouco.
As redes sociais trouxeram vantagens, permitem que eu possa ler pessoas que nunca leria nos jornais, tenho acesso a informação que nunca tive. Acho que todas as coisas novas trazem o inferno e o paraíso juntas. Há um lado nas redes sociais que eu não suporto que é a histeria. Acho bem que as pessoas se indignem mas não se indignem todos os dias com tudo. Que não utilizem a palavra ladrão, ou cambada, e outras, com toda a gente, a todo o momento. E que não escrevam nada que não fossem capaz de dizer.
Até sou a favor da hipocrisia. O meu problema com quase tudo é a inconsequência. Não há maior pecadoProvavelmente indignamo-nos todos os dias nas redes sociais e depois na rua nem uma vez por mês.
Há pessoas que me insultam e depois na rua são de uma enorme simpatia. Mas isso é hipocrisia e eu até sou a favor da hipocrisia. O meu problema com quase tudo é a inconsequência. Não há maior pecado que a inconsequência. Todos nós, eu incluído, somos contraditórios e não fazemos na vida o mesmo que apregoamos. É muito difícil. Não queria viver com alguém que fizesse da sua vida aquilo tudo que dizia. São pessoas planas e aborrecidas. Devemos ser consequentes e as palavras são importantes. As pessoas despejam palavras sem sentido, que não pensaram, que não querem saber. E uma das razões é que provavelmente nem todas as pessoas estão habilitadas a escrever. As opiniões não valem todas o mesmo. 90% das coisas que eu vejo nas redes sociais não mereceram o tempo que eu gastei com elas. Pergunto muitas vezes a quem deixa comentários se leu o texto. Respondem que não. Então porque é que me obriga a ler o seu comentário se não perdeu tempo a ler o meu texto?
Para além de terem o direito de falar, as pessoas precisam de merecer ser ouvidas. Merecer ser ouvido significa empenharem-se. Vivemos numa fase de inconsequência e numa brutal crise de mediação e estamos a pagar esse preço. O jornalismo serve para mediar. A realidade não é compreensível por si só. Se receber agora toda a informação que existe no mundo, toda ao mesmo tempo, provavelmente tenho um ataque cardíaco. A realidade sempre foi apreendida de uma forma organizada. As redes sociais são absolutamente disruptivas desse ponto de vista porque nos dão informação totalmente desorganizada onde tudo vale o mesmo. O sorriso das férias em Cancun e a fome em África têm exatamente o mesmo valor. Não há inteligência. E isso só pode causar uma brutal ansiedade. As pessoas estão brutalmente ansiosas. Tenho a sensação todas as semanas que o mundo acaba e isto já está a ter repercussões políticas. Acho que há razões para ter medo e que estão a acontecer coisas assustadoras no mundo. Estamos a perder todos os instrumentos de mediação, os jornais, os partidos políticos, o Estado – não acredito em democracia sem nações, o fim da soberania de um país é o fim do Estado. Isto tem limites, não é um caminho sem fim, não é possível viver assim. E um momento de rutura pode levar-nos a lugares bem assustadores.
É comentador no Eixo do Mal e escreve opinião diariamente para o Expresso © Blas Manuel
Quão próximo estamos dessa rutura e desses lugares?
Já temos o Trump. Estamos lá mesmo em cima. Acho que há muita gente que não está a perceber o que está a acontecer. E começaria pelos da minha profissão, os jornalistas. Se eu deixar as redes sociais e ligar a televisão e vir um direto, a minha ansiedade diminui? Não. Aumenta. Infelizmente, a informação não vem mais selecionada. Fazer direto, hoje uma coisa tão valorizada, é o contrário do jornalismo. O jornalismo só é deferido. Quando é direto é o câmara. O jornalista ali é só um mestre de cerimónias.
Há uma coisa que eu não faço, não sou carpideira de serviço. Hoje, os jornalistas são todos carpideiras
Como é que faz para se refugiar dessa ansiedade toda?
Sou cirúrgico. Não me mantenho alheado porque é o que eu faço. De manhã vejo as newsletters dos jornais nacionais, vejo os internacionais, escolho um tema, e é sobre ele que escrevo. Escrevo comentário todos os dias e às vezes sou o único cá em casa que não sabe que aconteceu determinada coisa. Não quero ser infetado pela ansiedade porque ela nos impede de pensar. Faço comentário todos os dias, estou em cima do acontecimento, tenho de me proteger ainda mais da falta de perspetiva. Há uma coisa que eu não faço, não sou carpideira de serviço. Hoje, os jornalistas são todos carpideiras. Querem traduzir na televisão o que as pessoas estão a sentir em casa porque querem ser gostados. Um político também tem de fazer isso. O meu papel não é esse. O meu papel não é dizer às pessoas o quão emocionado estou.
Era isso que não suportava na política?
Era.
Devo dizer que não sou um 'gooder', uma pessoa boazinha. Não me importo nada que as pessoas não gostem de mim, não quero ser popular
E foi o que levou a sair dela?
Foi por outras razões. Mas devo dizer que não sou um 'gooder', uma pessoa boazinha, não sou a pessoa que diz aquela frase no momento, que, agora nos incêndios, fica 10 minutos antes a pensar na frase certa. Não me importo nada que as pessoas não gostem de mim, não quero ser popular. Fico às vezes até estarrecido como me é totalmente indiferente.
Sobre o que pensam de si?
Sobre mim é, sobre o que eu penso, não. Como figura pública só existo nas minhas opiniões. É tudo o que interessa. Não quero saber se as pessoas acham que sou bom, mau, que gosto muito da minha cadela, que sou um óptimo marido. Não me interessa. As pessoas querem cada vez mais saber o que os politicos sentem e não o que pensam. A mim não me interessa para nada saber o que Marcelo e o António Costa sentem. Não aguento mais esta coisa que parece ser sentimento e não é mais do que o negócio da dor. Da dor, da alegria, é um negócio. Cada pessoa que vai para a televisão vai fazer o número para demonstrar que está a sofrer tanto quanto os outros.
Ser comentador com tanto reconhecimento como o Daniel é uma responsabilidade mas também um privilégio?
A vida das pessoas ultrapassa aquilo que é o espaço mediático. Ainda assim, tenho a responsabilidade de ajudar a formar opiniões e a criar um pensamento hegemónico. No meu caso, sou um comentador minoritário no espaço público, a contrariar o pensamento dominante. Apesar de não representar o sofrimento das pessoas, devemos dar-lhe voz. Não é sentir por elas, é dar-lhes voz. E é privilégio porque nós todos temos opiniões. Privilégio é eu poder dá-las com grande destaque. Tem de se fazer por merecer todos os dias, apesar de as pessoas pensarem que é só mandar uns bitaites. Sendo generalista como qualquer jornalista, não sou especializado, sei sempre menos do que muita gente sobre cada assunto que escrevo. E nunca, em dois dias, saberei tanto para ensinar alguém. O que eu tento fazer é informar-me para dar uma opinião informada. Já errei muita vez, já escrevi disparates e coisas que estavam erradas, mas fi-lo sempre com a honestidade de tentar saber o máximo sobre aquilo com o tempo que tenho para poder ter uma convição sobre o assunto. Se não tiver, em princípio não escrevo sobre esse assunto.
Disse em 2012 que o seu “boneco televisivo é mais estúpido do que na realidade”
É sempre.
Mas porquê mais estúpido?
Porque a televisão é um meio estúpido. No sentido em que, enquanto falo tenho de pensar na minha postura física, tenho poucos minutos para falar.
Está sempre muito condicionado pela questão do tempo?
Condicionado de uma forma absurda. Absurda não, tem que ser. Mas não há nenhuma ideia sofisticada que possa passar na televisão. A televisão é para picar, para resumir, para dizer umas ideias. Depois, estou condicionado pelo boneco que as pessoas fazem de mim. Tenho as sobrancelhas carregadas, tenho ar de mau e isso marca as opiniões. É, nesse sentido, que o boneco é mais estúpido. Nós somos para o exterior simplificações. Há pessoas que têm uma arte admirável que é parecerem mais inteligentes do que são. Não são assim tão poucas. Eu gosto de acreditar que pareço mais estúpido do que sou. Quando disse isso estava a elogiar-me, não me estava a criticar, estava a dizer bem de mim [risos]. Ou seja, acho que há uma complexidade, uma densidade que o boneco mediático não consegue passar. A televisão não chega para passar, por exemplo, as contradições. Sou uma pessoa contraditória. Acho uma coisa extraordinária. Dos temas que gosto mais são os que não são claros. Temas que são mais estimulantes para a discussão. E são as piores discussões para se ter em televisão onde o que é bom é o preto e branco, prós e contras. Isso é sempre mais redutor. Em geral, as pessoas inteligentes gosto mais de as ler. As superficiais gosto mais de as ouvir, perco menos tempo.
Ainda há muita gente que vê no Daniel Oliveira um rosto do Bloco de Esquerda?
Imensa. Todos os dias recebo comentários do estilo ‘vocês no Bloco'. Saí do Bloco há quatro anos.
O Bloco de Esquerda não é, seguramente, uma coisa da qual me arrependaComo é que lida com isso? Não o incomoda?
Corrijo. Mas não me incomoda. O Bloco não é, seguramente, uma coisa da qual me arrependa.
O Bloco que deixou há quatro anos é hoje um Bloco muito diferente?
Irreconhecível. Para já, já não conheço muita gente. Depois, esta experiência [a 'Geringonça'] acho que teve algum impacto. Mas ainda há coisas que continuam um pouco iguais.
Como por exemplo?
Continua a ser um partido organicamente muito pequeno. O Bloco é um muito pequeno partido a nível de militantes e médio de eleitores. Isso cria distorções terríveis, cria falta de implantação social. O BE depende muito do voto e é, ainda, um partido muito marcado pelas correntes dos grupos originais, que o fizeram nascer, que é uma coisa já anacrónica e que impede o partido de evoluir mais depressa. O Bloco melhorou depois da minha saída. Não teve nada a ver com a minha saída. Acho que cresceu. A Catarina Martins, ao contrário das minhas expetativas, é uma boa líder. Se o Bloco crescesse e conseguisse ter uma implantação social proporcional à sua implantação eleitoral, aí daria um grande salto. Os tempos não ajudam mas acho que o Bloco nunca fez grande esforço para isso. Mas, ter participado no nascimento do primeiro partido que rompeu com os quatro partidos do sistema político é uma das coisas de que me posso orgulhar na vida.
Passa-lhe pela cabeça voltar a ser dirigente de algum partido?
Não. Só não posso dizer nunca porque qualquer pessoa que se aproxima dos 50 sabe que essa palavra não se usa por uma questão de auto-preservação. A minha convicção hoje é nunca. Sabe-se lá o que é que vai acontecer. Não tenho qualquer vontade de ter vida partidária. Acho que sou útil de outras formas. Apesar de achar que a felicidade é sobrevalorizada, sou mais feliz fora dos partidos.
Sozinhos não somos nada livres, somos escravos. Várias vezes me calei. Mas nunca deixei de dizer coisas em que acreditavaE mais livre?
Isso sempre fui. Há um lado da falta de liberdade auto-imposta nos partidos que é bonita e comporta alguma generosidade que é, em vez de se dizer tudo o que se pensa, sacrifica-se algumas convicções em nome do coletivo. Isto é compromisso e é bonito. Não desprezo o compromisso. Não me verá a fazer discursos sobre a “carneirada” dos partidos. Acredito que o compromisso é uma coisa fundamental na vida e não acredito nada em pessoas que acham que sozinhas são muito livres. Sozinhos não somos nada livres, somos escravos. Mas, nunca me vi obrigado a defender em partidos coisas em que não acreditava. Várias vezes me calei. Mas nunca deixei de dizer coisas em que acreditava. Nunca me violentei a esse ponto. Nunca deixei que me violentassem a esse ponto. Sempre disse que, em nome do compromisso, sou capaz de deixar de falar em determinado assunto se para mim ele não é uma questão de vida ou de morte. Não como comentador. Isso não o fiz. Foi um dos meus problemas.
Ainda assim, como comentador, nessa altura, tinha de ter alguns filtros?
Não tinha [risos]. Passou a ser muito difícil de gerir. Como comentador tive mesmo de fazer várias vezes o esforço de esquecer que era militante do Bloco de Esquerda. Critiquei o partido várias vezes, quando nem sequer estava na luta interna dele. Provavelmente não teria saído tão rápido do BE se não estivesse a mesma exposição pública. Não é que tenha sido empurrado para fora do partido, mas obrigou-me dentro dele a assumir confrontos políticos que provavelmente não teria assumido. Era uma coisa injusta para mim e, muitas vezes, para o partido. Falava e as pessoas julgavam que era a opinião do Bloco e muitas vezes era contrária à do partido. Era uma posição muito difícil. Seja como for, não foi por isso que saí.
A razão por que não quero voltar a ter atividade partidária é aquela em que passamos a ter de nos preocupar com o que nós pensamos e não o que pensar de nós. Não consigo fazer essa parte do teatro. Sou o oposto do Marcelo Rebelo de Sousa, não consigo fazer aquele número todo sempre tão genuíno. Não consigo treinar tão bem a minha espontaneidade. Não consigo e não quero.
Não quer ser militante de partido algum, mas começou por ser do PCP muito cedo e do Bloco até há pouco tempo.
É uma coisa extraordinária, não tenho perfil de militante e, no entanto, fui militante grande parte da vida. Era de uma família comunista. O meu padrasto era deputado na Constituinte, do PCP, a minha mãe era sindicalista, eram praticamente todos militantes do PCP. As pessoas não têm ideia, mas naquela altura revolucionária não se falava de futebol, falava-se de política. Cresci num caldo político. Via telejornais com 6, 7 anos. Comprava jornais a partir dos 10, 11. Foi influência familiar mas não foi só.
Foi também todo um contexto muito específico...
O contexto e o meu interesse. Interessava-me mesmo muito e genuinamente por política. Fiz a escola de quadros do PCP com 14 anos. Era muito precoce politicamente mas não deixava de ser um miúdo. Precoce mas ali com alguma infantilidade, inocência e ingenuidade. Não estou a dizer que fui comunista por ser ingénuo e inocente.
A falta da democracia só se nota quando nós somos contra, quando somos a favor não damos por nadaE saiu do PCP aos 20. O que é que o fez sair?
Que a igreja estivesse contra nós, tudo bem, que o ocidente estivesse contra nós, tudo bem, mas os operários estarem contra nós, já era uma coisa mais complicada na minha cabeça de 14 anos. Começou aí o meu questionamento. Interessava-me por política internacional. Sem saber bem o que isso era, tornei-me eurocomunista, depois, numas discussões internas, comecei a aperceber-me da falta de democracia do PCP. A falta da democracia só se nota quando nós somos contra, quando somos a favor não damos por nada. Comecei a ter confrontos internos e os dois últimos anos já foram a rutura completa. Mantive-me até 89 porque era um corte difícil, era um corte familiar.
E como é que foi a reação da família, tendo em conta que foi o primeiro a sair? ‘Levou nas orelhas’?
Reagiu bem. Foi a vantagem de o divórcio ter sido lento. Como a minha saída demorou, quando saí já não era uma novidade. Aliás, à excceção de três pessoas, acabou tudo por sair.
Quais foram as suas influências?
Foi o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi a pessoa que, aliás, marcou a família. Foi a grande influência, pelo menos na fase inicial, depois as grandes influências foram as pessoas com quem fiz política. Foram sendo pessoas diferentes. Miguel Portas foi a pessoa de quem, depois de sair do PCP, estive politicamente mais próximo durante muito tempo, até à morte dele.
O seu pai, Herberto Helder, nunca quis exposição mediática. Foi fácil manter esse desejo?
Sim. Mas o meu pai nunca mo pediu. Aliás, até me deu jeito. Na fase de afirmação profissional escondi que era filho dele. Quando havia alguém que sabia, pedia para não divulgar. Pode ter sido uma coisa um bocado infantil mas foi importante para, profissionalmente, ter a convicção e a certeza do que o que conseguisse era por mérito meu.
Para mim seria uma tragédia 'ser filho de'. Houve imensa gente que só soube que eu era filho de Herberto Helder quando o meu pai morreuNão quis ser conhecido como o filho de?
Para mim seria uma tragédia. E não era por ser filho de Herberto Helder, era ser filho de. Cada um tem a sua maneira de lidar com estas coisas e a minha é bastante radical. Todos nós nos construímos como pessoas, aos nossos olhos e aos das outras pessoas. Estou-me nas tintas para o que as pessoas pensam, as que não conheço de lado nenhum, não com aquelas com quem trabalho. Sou um ser humano, não sou um sociopata. Era muito importante ter a certeza de que nunca ninguém diria que só faço o que faço porque sou filho de. Hoje ninguém pode dizer isso de mim, tenho a certeza absoluta. Houve imensa gente que só soube que eu era filho do meu pai quando o meu pai morreu, apesar da evidente semelhança física. Mesmo depois da morte do meu pai, continuo a não querer falar da minha vida privada. Só há duas maneiras de expor a vida privada em público: ou através da manipulação ou da pornografia. Manipulação é usarmos a vida privada para as pessoas pensarem coisas boas sobre nós. A pornografia é mostrar não o que queremos que se saiba dela mas tudo.
Saiu do Bloco de Esquerda em 2013© Blas Manuel
Como lida com a exposição mediática?
A fama e o sucesso são coisas tão passageiras e irrelevantes que nunca me motivaram. Nunca quis ser famoso, embora nunca o tenha evitado. E a única coisa de que não gosto é não ter direito à minha contradição e aos meus pecados com a vida que tenho hoje. O controlo social. É as pessoas reconhecerem-me. Não é virem falar comigo, isso não me chateia nada. O saber que estou permanentemente sob escrutínio. Na realidade, se pudesse, tinha outra cara na televisão. Era outra pessoa. Eu gosto do anonimato e as probabilidades de pecado reduzem brutalmente. Odeio as virtudes públicas.
Disse que não falava da sua vida pessoal, mas vou arriscar perguntar que memórias guarda do seu pai?
Boas.
Conversavam sobre política?
Não. Era um assunto que não lhe interessava. Para já, o meu pai não gostava de discutir. O jogo argumentativo não era a coisa que mais prazer lhe dava. E não gostava de política. Tínhamos uma espécie de pacto: que as nossas embirrações não tropeçassem nas nossas paixões.
O facto de gostar de escrever bebeu alguma influência na veia poética do seu pai?
Acho que não. Quando era jovem queria, como todos os jovens de todo o mundo, escrever poesia. Felizmente atirei para o lixo e posso acreditar que era boa porque não tenho como confirmar [risos]. É difícil atribuir isso ao meu pai porque cresci numa família onde se escreve, onde se lê. O problema de falarmos na vida privada, lá está, é que simplificamos. Eu precisava, não de uma entrevista mas de um psicanalista para perceber no que é que o meu pai me influenciou. Quando falamos aos jornalistas da nossa vida privada, construímos um guião. Não é a nossa vida privada porque isso não se resolve numa entrevista. Não é como naquelas entrevistas do outro Daniel Oliveira em que as pessoas conseguem contar, numa hora, a sua vida toda a chorar. Acho uma coisa extraordinária. Eu precisava de meses para contar a minha vida e conseguir chorar com ela [risos].
É um bom desafio para o Daniel Oliveira. Para os dois, neste caso.
Não, não. Não aceitaria. Não gosto do género. Quando quero saber da vida das pessoas que não me são próximas leio biografias, são pessoas que, em princípio, já morreram e que já sabemos como acabou a história. E mesmo essas são um olhar muito parcelar sobre as contradições que as pessoas têm. Confesso que não leio nem vejo entrevistas pessoais. A vida das pessoas não cabe numa entrevista. A relação que tive com o meu pai, com a minha mãe, não cabe numa entrevista. É demasiado complexo e intímo.
Porque é que não foi jornalista de internacional como queria ser?
Porque não tenho talento para línguas. Tinha essa dificuldade, apesar de ser, de longe, o assunto que mais dominava. Mas não conseguia escrever em inglês e isso limitava-me depois no trabalho. É a única coisa de que eu tenho ...
Pena?
Sim. Tenho alguma pena.
Espanha tentou deslegitimar o combate democrático à pauladaSe se tivesse especializado em jornalismo internacional, teria sido agora enviado especial à Catalunha. O que é que mais o chocou na questão da catalã, além da violência?
Provavelmente. O que me choca é a cegueira geral. Choca-me a parte de não se perceber que Espanha tem um problema político que tem que ser resolvido politicamente. Não há um problema de ordem pública. Podem prender as pessoas que quiserem. Espanha tem de ser um Estado federal, tem de corresponder ao que a Espanha é. É um Estado plurinacional e recusa-se a assumir isso. Quer o PP, quer o PSOE. Mais no caso do primeiro, que é herdeiro do franquismo. O PP está-se nas tintas para o que os catalães acham ou não acham. O que me incomoda nesta questão é que toda a gente fala do nacionalismo catalão. Eu não defendo nacionalismos, defendo a autodeterminação dos povos e não é só dos pobres. O que me faz confusão é não se perceber que há uma coisa que é o nacionalismo espanhol muitíssimo agressivo e violento, que esmagou a República em Espanha que impediu que se falassem as línguas nacionais no País Basco e na Galiza. E que ainda hoje está vivo com o mesmo grau de intolerância. Não me ponho ao lado do nacionalismo espanhol que é maioritário e fortemente intolerante. E mais, é o elemento central da identidade espanhola.
A Catalunha foi a única que se conseguiu libertar deste domínio desse esmagamento cultural. Espanha tentou deslegitimar o combate democrático à paulada. O referendo foi um ato político, em que o objetivo era ter um momento de desobediência político que levasse Madrid a mostrar o seu verdadeiro rosto e, com isso, ganhar mais gente para o independentismo. Madrid fez o favor. PP e PSOE podem vir a mudar a Constituição por causa da questão das nacionalidades. Se calhar, a desobediência e a irreverência valeram a pena. Para conquistar coisas é preciso lutar por elas.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.