Depois de ter esmiuçado a sua carreira política, de se ter debruçado sobre o falhanço do sonho europeu e sobre o estado da cultura em Portugal, que pode ler aqui, Manuel Maria Carrilho, aborda o “lamaçal” em que está a vida política portuguesa, devido a escândalos como a Operação Marquês. O PS, a Geringonça, José Sócrates, Passos Coelho - aliás, a generalidade da classe política portuguesa - não escapam ao olhar atento do sempre filósofo e por vezes político Carrilho.
Fazendo aqui a ponte para o PS e que acabou por formar governo quando não foi vencedor nas eleições. Há aqui uma solução denominada de ‘geringonça’, como vê está jogada da parte do Partido Socialista?
O fundamental é que seja democrático e que tenha apoio parlamentar maioritário, é isso que define um governo: ser democrático e ter legitimidade. Nós não tínhamos essa experiência, daí o choque. Houve manifestamente ali uma manobra tática de grande dimensão na operação que o António Costa fez. Ele tem uma capacidade tática que não me surpreendeu, como sabe, eu fui vice-presidente da bancada do PS quando ele foi presidente. Trabalhei com ele dois anos no governo e portanto não me surpreendeu muito. E digo-lhe mais, acho que há uma coisa muito positiva no que Costa fez que foi acabar com um tabu em Portugal. A democracia é um regime de diálogo e compromisso entre todas as forças políticas em que a vontade da população tem consequência no modo como é governada… Nós tínhamos aqui um tabu que à Esquerda não se podia fazer nada, não se podia conversar, não se conseguia formar governo.
Acho que foi bom acabar com o governo do Passos Coelho. Podendo estar de acordo com medidas pontuais que ele tomou, acho que globalmente estava na hora de sair. Em termos de gestão da crise e discurso sobre o país era verdadeiramente lastimável. Um discurso castigador, não motivador para o país etc… Acho que foi ótimo para o país haver mudança.
Depois, quanto ao outro aspeto da união que se fez, porque não há coligação, vivemos numa situação de fachada. O limite da dita Geringonça é que é um bocado absurdo uma união entre um partido europeísta e outro que é contra, um que é favor da NATO e outro que contra a NATO, enfim, em vermos uma governação que ora sustenta medidas com a Direita, ora com a Esquerda. Eu sou a favor de compromisso e compromisso com estratégias claras.
Mas não há?
Isso não há. Vemos uma coligação de fachada que sustenta o Governo com o objetivo nuclear, que eu até posso estar de acordo, que é de impedir a Direita de chegar ao poder. Agora, sobre questões de que falámos desde a qualificação à Europa, ao poder da economia, tem de haver posições absolutamente claras. Não pode haver uma meia responsabilidade, eu apoio no Parlamento mas não apoio no Governo. O que é isto? Há um lado positivo e há um lado negativo.
Tudo me opunha a José Sócrates e sempre deixei isso escritoFalou no governo de Passos Coelho que está muito associado aos tempos da troika e de austeridade. E em relação ao governo que lhe antecedeu, de José Sócrates, que tentou evitar ao máximo recorrer a ajudas externas, como vê essa governação por parte do Partido Socialista?
Como sabe, eu fui talvez o único crítico de José Sócrates no PS. No início acompanhado pelo Henrique Neto que também foi um crítico desde 2004, portanto como candidato a secretário-geral eu escrevi dois artigos no Público na altura das eleições para a substituição de Ferro Rodrigues a que me opus dizendo o que pensava, que Sócrates não tinha as qualidade éticas e políticas para liderar o país. De resto, não apoiei essa candidatura a secretário-geral.
Escrevi em 2007 três artigos no DN muito críticos sobre a governação e passei o ano de 2010 a fazer crónicas semanais no DN e duas intervenções na TVI e na TVI 24 semanais em que a minha posição sobre o governo era absolutamente clara. Acho que disse tudo na altura em que devia dizer, não faz muito o meu estilo estar a bater em quem está nas circunstâncias em que ele está agora. Tudo me opunha a José Sócrates e sempre deixei isso escrito. Não me surpreendeu nada, acho que foi negativo para o país e o resto são processos que se verá no que dão…
Carrilho é um estudioso da área da filosofia, José Sócrates foi para Paris estudar filosofia nem essa ligação amenizou as coisas? Também na UNESCO tiveram grandes divergências sobre que candidato apoiar…
Eu conduzi a campanha contra a eleição de candidato do ditador Mubarak, eram oito canditados, é por voltas e a votação final foi entre esse candidato, um homem que tinha perseguido jornalistas, proibido feiras do livro, feito censura, e, do outro lado, a candidata que chegou à última volta, Irina Bokova, que terminou agora o segundo mandato, que era uma excelente candidata e que todos os europeus apoiavam, até o Berlusconi.
E na véspera da votação final recebi um telefonema de José Sócrates a dizer que tinha falado com o presidente Mubarak e que nós votávamos em Mubarak. Eu disse que não votava em Mubarak, portanto houve a solução elegante que depois o Luís Amado encontrou: fazer votar o número dois da embaixada, eu não sei em quem ele votou, mas não fui eu que votei.
Quanto à parte da filosofia, acho que faz parte da encenação socrática. Nunca levei isso a sério, quer dizer, nunca lhe ouvi qualquer… Não tem qualquer realidade o interesse dele pela Filosofia.
Essas tomadas de posição prejudicaram-no enquanto político no seio do PS?
Provavelmente, mas isso nunca me preocupou muito O que me fez sair da universidade e ir para a política foi construir o Ministério da Cultura. O PS tinha uma maioria relativa, eu sempre pensei que ia durar dois ou três anos. Nunca pensei estar tantotempo na política. Claro que toda a gente diz que é muito difícil sair e é verdade. Há uma série de coisas que me fizeram estar na política muito mais tempo do que alguma vez pensei. Nunca quis fazer uma carreira política propriamente dita. Há quem diga que eu fui em exílio para a UNESCO porque Sócrates me cria castigar, não sei o que há de verdade ou não, mas para mim uma coisa era clara, era o meu último posto político.
Tudo isto é um lamaçal inconcebível em que a vida portuguesa está. O que mais me custa é pensar que vai durar anos Como vê agora, de fora, a Operação Marquês e o caso de Manuel Pinho que levou até à desfiliação de José Sócrates do PS com palavras que davam conta de “embaraço mútuo”?
Não quero muito falar de José Sócrates nem dos seus governantes porque tudo isto é um lamaçal inconcebível em que a vida portuguesa está. O que mais me custa é pensar que vai durar anos. Ter um antigo primeiro-ministro com este tipo de acusações, haver todos os dias descobertas como as que se têm vindo a fazer com ministros tão importantes como o da Economia, isto contamina toda a elite portuguesa. A banca, toda ela, tem andado nestas situações. Neste momento, quando se olha para a vida pública portuguesa uma pessoa olha para um lamaçal tremendo que não se vê que tenha solução a curto-prazo, quer em termos jurídicos, quer em termos do mal que faz ao país. Acho que nunca se fez tão mal ao país – desde que vivemos em democracia – como nestes anos. Isto quebra alma de um país, isto diminui, isto envergonha. Não quero entrar em detalhes que são de senso comum.
O Partido Socialista tem lidado bem com esta matéria?
Não, acho que não tem lidado bem, desde o princípio, na minha maneira de ver as coisas. Agora, a Ana Gomes fala de introspeções, mas o que tem de se exigir à política é permanente espírito de responsabilidade. De responder pelos seus atos. Quando se fez o congresso de Matosinhos (2011), ainda com Sócrates, todos estes barões do PS conheciam a situação. Como é que nós podemos olhar para eles? Eu percebo que haja cálculo político mas há uma coisa que é fundamental na política que é pensar que as pessoas são inteligentes.
A classe política portuguesa é escandalosamente inculta e escandalosamente irresponsável
Mas Manuel Maria Carrilho diz aqui no livro que “a classe política portuguesa é escandalosamente inculta”.
É escandalosamente inculta e escandalosamente irresponsável.
Por saber que dificilmente seria responsabilizada?
Muito provavelmente. Não estou dentro da cabeça de ninguém mas quando se ocupa cargos públicos tem de haver responsabilidade. A responsabilidade de um governante é para com o povo.
Tudo isto tem contribuído para o descrédito da classe política portuguesa.
Claro que o descrédito da classe política é grande em todo o mundo mas é maior onde há este tipo de escândalos. Como é que é possível acreditar em pessoas que conviveram com esta situação? Ninguém vai acreditar que não sabiam, ninguém vai acreditar que desconheciam por completo as coisas. O povo é inteligente e acho que é uma ilusão pensar que com pequenos truques se enganam as pessoas. Agora, nós sabemos que os partidos são instrumentos muito difíceis, muito fechados em todo o mundo. Para mim, a dificuldade dos partidos é que são incontornáveis e irreformáveis.
Como vê o cenário para as legislativas de 2019?
Ao nível de agitação e de instabilidade em que está tudo não tenho previsões. E há sobretudo problemas novos que estão a aparecer na Europa, que vai ter um ano muito complicado, justamente porque se estão a empurrar os problemas com a barriga. Veja o Macron está há um ano a dizer a mesma coisa. O Macron que é um balão de oxigénio por razões que não têm nada a ver com a política, pela simpatia, pela juventude, pela competência, outro homem de matriz filosófica, cujas ideias, algumas delas eu até apoio inteiramente, mas umas são desfasadas no tempo, não conseguiu fazer nada. Num ano conseguiu mudar o ambiente, mas mais nada mudou.
Disse a Sócrates, quando perdi a corrida à Câmara de Lisboa, que havia dois sítios a que eu nunca voltaria, um porque correu bem demais e outro porque correu mal demais Há pouco disse que o seu cargo na UNESCO seria o seu último cargo político. Não aceitaria um convite para voltar à política ativa? Para voltar ao Ministério da Cultura?
Foi uma coisa que eu disse ao José Sócrates quando perdi a corrida à Câmara de Lisboa, foi que havia dois sítios a que eu nunca voltaria, um porque correu bem demais e outro porque correu mal demais. Que era o Ministério da Cultura e a Câmara de Lisboa, de resto, fiz o erro de estar um ano como vereador, não devia ter estado. Para mim esse trabalho foi feito e o resto é história. Ajudarei em tudo o que puder quem quer que esteja na cultura, do PS como de qualquer outro partido, isso é para mim uma questão secundária. A minha intervenção política eu vejo como muito improvável a qualquer nível. Ocupo-me hoje a escrever os meus livros, tenho vários projetos em curso à volta destes temas de que lhe falei. Estou a trabalhar muito sobre a decifração da época em que estamos a viver.
Não há o mais pequeno litígio que envolva os nossos filhos e é um assunto que para mim tem uma pedra em cimaNo campo pessoal conseguiu agora um acordo para terminar todos os processos que tinha em tribunal contra a sua ex-mulher, Bárbara Guimarães, no âmbito de um processo de divórcio longo que levantou vários episódios problemáticos na sua vida. Está aliviado de ter terminado e de conseguir fechar este capítulo?
Como lhe disse quando aceitei esta entrevista, você faria as perguntas que entendesse mas eu sobre esse assunto não tenho mais nada a dizer a não ser o seguinte, os julgamentos terminaram, há processos que estão em fase de recurso, as coisas correm o seu curso. No que diz respeito ao acordo que foi assinado no dia 4 de janeiro, sobre a crianças chegou-se a um acordo total no Tribunal de Família e Menores. Não há o mais pequeno litígio que envolva os nossos filhos e é um assunto que para mim tem uma pedra em cima, já foram cinco anos, eu agora ocupo-me de outras coisas e procuro pensar o mínimo sobre esse assunto. O que me motiva neste momento é tratar bem da minha vida, dos meus filhos, continuar o meu trabalho e retomar a minha vida que realmente teve aqui, reconheço, um interregno.
Acha que todo este processo e interregno teve consequências políticas ou até de descredibilizar a sua opinião que era mais ouvida anteriormente?
Tudo tem consequências, teve essas como terá tido outras. Como lhe digo, tudo na vida tem consequências.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.