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Eutanásia? "Não creio que PR tenha espaço para a não promulgação da lei"

José Manuel Pureza, antigo deputado do Bloco de Esquerda com assento parlamentar, é o entrevistado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

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Inês Frade Freire
16/03/2023 08:58 ‧ 16/03/2023 por Inês Frade Freire

Política

Eutanásia

Depois de o diploma sobre a legalização da eutanásia e morte medicamente assistida ter sido aprovado pela terceira vez no Parlamento, em dezembro de 2022, os juízes do Tribunal Constitucional (TC) foram chamados pelo Presidente da República, em janeiro de 2023, pela segunda vez, a fiscalizar preventivamente aquela lei.

No fim do mesmo mês, o TC voltou a considerar "inconstitucional" o diploma do Parlamento. Após esta decisão, Marcelo devolveu o diploma ao Parlamento, que o irá reapreciar em plenário no dia 31 de março.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, José Manuel Pureza, antigo deputado do Bloco de Esquerda com assento parlamentar, que esteve envolvido nos processos legislativos anteriores sobre o tema, aponta que, sobre a norma declarada inconstitucional pelo TC, "não é difícil" que seja clarificada, embora tenha considerado a interpretação "surpreendente".

Além disso, na sua ótica, a aprovação do decreto-lei sobre a morte medicamente assistida poderá acontecer "nas próximas semanas, nos próximos meses".

À margem da entrevista, o militante do partido comentou ainda a decisão de Catarina Martins de abandonar a liderança do Bloco de Esquerda, elogiando-a. De acordo com José Manuel Pureza, terá sido fruto de um "desgaste grande" após "anos naturalmente muito exigentes" e uma "nova fase da vida política" que "decorre da visível deterioração da maioria absoluta do partido socialista".

Última decisão do TC tem como principal aspeto precisamente esse de 'contrariar de alguma maneira’ aquilo que era o raciocínio do PR nesta matéria

Primeiro que tudo, como vê o novo pedido de fiscalização que foi feito pelo Presidente da República (PR) ao Tribunal Constitucional (TC)? 

O Presidente da República apresentou ao TC um pedido de fiscalização por considerar que tinha havido uma alteração da redação [do decreto] no Parlamento. 

Segundo o Presidente, essa alteração ampliava muito o leque de hipóteses em que se colocava a questão da antecipação da morte porque deixava de se considerar exclusivamente as situações de doença fatal e, nesse raciocínio, havia uma ampliação das coisas. E portanto, foi isso que levou o Presidente a levar a lei de novo ao TC.

O TC foi muito claro a este respeito e declarou que não havia qualquer inconstitucionalidade no que diz respeito a essa questão que o Presidente suscitava.

Eu acho que esta última decisão do TC tem como principal aspeto precisamente esse de 'contrariar de alguma maneira’ aquilo que era o raciocínio do PR nesta matéria. O que o tribunal fez foi decidir que aquilo que o Presidente alega não é inconstitucional, não tendo nada de juízo de inconstitucionalidade, portanto não há qualquer excesso na lei a este respeito.

No entanto, depois o TC fez um outro raciocínio que foi aquele que levou à declaração de inconstitucionalidade e que é o de que há ali uma norma que diz respeito à definição de sofrimento e que, no entender do tribunal, precisa de uma redação mais clara para evitar qualquer equívoco.

Foi esse o juízo, que esse é que a meu ver foi um pouco surpreendente, mas enfim, foi o que foi.

Depois dessa norma do decreto-lei que regula a morte medicamente assistida ter sido declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, por uma questão de “semântica”, considera que as correções serão facilmente realizadas? 

Eu acho que a maneira como o TC apresenta a questão, no sentido de haver várias adjetivações ou qualificações do sofrimento, da pessoa que está numa situação de doença irreversível, de extrema gravidade, lesão definitiva, o que seja… significa que há ali três ou quatro qualificações de sofrimento físico, moral, psíquico, espiritual, requerendo uma clarificação sobre se isso é cumulativo ou alternativo.

Bom, a redação parece ser muito clara - não vejo grande dúvida sobre isso - mas como a questão que o tribunal coloca é apenas esta e apenas neste espaço (digamos assim), eu, de fora, uma vez que agora estou afastado do processo legislativo, diria que não me parece difícil que haja aquela clarificação que o TC quer.

Sabemos bem quem são as correntes de opinião que entendem que deveria continuar a haver uma responsabilidade criminal dos médicos que aceitassem colaborar nestes processos

Para além do Tribunal Constitucional, poderão haver ainda outras barreiras até ser aprovada a lei?  

Com franqueza, não. Até ser aprovada a lei, não. 

Na verdade, este já é um processo muito longo. O debate que foi tido no contexto do processo legislativo do Parlamento extraordinariamente amplo e, portanto, digamos, o envolvimento sempre plural e contraditório dos diversos atores sociais faz parte deste processo e, portanto, não creio que daí venha qualquer tipo de alteração.

Sabemos bem quem são as correntes de opinião que entendem que deveria continuar a haver uma responsabilidade criminal dos médicos que aceitassem colaborar nestes processos mas, enfim, os estudos de opinião que foram recentemente publicados confirmam a ideia que eu tinha, que era a de que uma larga maioria das pessoas em Portugal entende que deve haver uma lei cautelosa e sensata que permita, em casos limite, a antecipação da morte.

Sob esse ponto de vista, não creio que haja nada de novo e, portanto, deve haver, efetivamente, todo um rigor de conformidade com a Constituição da República Portuguesa. Isso é o que o TC tem vindo a exigir, será feito e eu creio que teremos, mais cedo do que tarde, uma lei que permita esta possibilidade.

Outra coisa diferente é depois a sua regulamentação, que é da sua maior importância, porque é na sua regulamentação que se vão concretizar todos os detalhes do cumprimento da aplicação corrente desta lei. Aí esta responsabilidade é sempre do Governo e, portanto, espera-se que haja um trabalho muito fino e meticuloso, que é muito exigente, portanto tem que prever todos os pequenos pormenores. Mas faz parte, porque é isso que é a regulamentação. Essa será a próxima tarefa.

Depois terá de haver uma fiscalização muito apertada do modo de aplicação da lei, mas isso a própria lei prevê os órgãos de acompanhamento e fiscalização. A prática vai exigir que, logo desde a primeira hora, haja um controlo muito apertado.

Não são propriamente obstáculos, são, digamos, requisitos, exigências, que eu acho que uma lei desta natureza - mais do que tudo - exige.

Não será uma decisão atirada para um futuro longínquoJá é a segunda vez que o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se sobre este decreto-lei, sendo também a segunda vez em que este é declarado inconstitucional. Uma vez que esta é uma matéria de enorme sensibilidade, pensa que este decreto demorará até ser efetivado?

Eu, como já disse, estou de fora do processo legislativo e portanto não estou por dentro dos 'timings', mas quero crer que, por aquilo que vou lendo na comunicação social, no que diz respeito ao Parlamento, não será uma decisão atirada para um futuro longínquo. Portanto, eu creio que nas próximas semanas, nos próximos meses, teremos essa decisão por parte do Parlamento.

Estou ainda em crer que o conteúdo desta decisão última do TC já não deixa margem para outro tipo de incidentes de voltar a colocar a decisão ao TC. 

Mesmo relativamente ao próprio Presidente, depois de ter enviado duas vezes para o TC - embora formalmente continue a ter todos os poderes em relação à lei - não creio que politicamente tenha espaço para outra coisa que não a promulgação de uma lei que venha a ser aprovada por uma larga maioria, como tem sido nas vezes anteriores por parte do Parlamento. Desse ponto de vista, não tenho grandes dúvidas.

Quanto à regulamentação, esse é um trabalho que exige tempo mas os contornos da lei estão estabilizados há muito tempo e, portanto, estou convencido que o Governo já terá esboçado um conjunto de elementos dessa regulamentação. Mas sobre isso não sei calcular o tempo.

Sujeitar a referendo os nossos direitos individuais é qualquer coisa que vai contra a própria natureza dos direitos

O que significa ‘chumbar’ de novo esta matéria? Pode significar que realmente deverá existir um referendo, conforme já solicitado por alguns partidos? 

Como é sabido, eu sou contra o referendo por uma razão de princípio. Eu acho que sujeitar a referendo os nossos direitos individuais é qualquer coisa que vai contra a própria natureza dos direitos, ou seja, não concebo como possível porque acho que isso é sujeitar os direitos de cada um e cada uma a uma hipótese quando devem ser uma certeza.

Sobre esse ponto de vista, não creio que haja lugar a esse referendo mas, politicamente, os últimos episódios da proposta do referendo que foi apresentada foram, no mínimo, politicamente rocambolescos. 

Um campeonato entre o Chega e o PSD para ver quem mais veementemente propunha referendo. E a questão do PSD ter chegado à frente com um referendo… e, depois, afinal já não podia ser porque já não cumpria as regras constitucionais aplicáveis. Enfim, uma trapalhada de todo o tamanho.

Percebeu-se, desde a primeira hora, que esse referendo era, puro e simplesmente, uma jogada política sem qualquer firmeza, ou seja, era só uma tentativa de, à 25.ª hora, prolongar ainda mais o tempo de decisão do Parlamento.

Com franqueza, caiu num descrédito total. De princípio, pelas razões que invoco. Descrédito face ao facto de ter ficado tão claro que era uma simples jogada política sem outro propósito que não fosse atrasar o processo.

Podem até voltar a propor, mas, francamente, acho que o descrédito é total.

Ao não se candidatar a uma nova fase de coordenação do Bloco, o que Catarina Martins faz é um serviço ao partido

Sobre a decisão de Catarina Martins de abandonar a liderança do Bloco ao não se candidatar, como vê esta sua decisão?  

Primeiro, acho que todas as pessoas compreenderão que 10 anos de grande protagonismo na liderança de uma força política com a importância que o Bloco de Esquerda tem, são anos naturalmente muito exigentes - e foram, realmente, toda a gente o sabe. 

A coordenação do partido, primeiro pelo João Semedo e depois pela Catarina Marins, isoladamente, causa um desgaste grande. Isso é mesmo importante. Não acho que seja uma desculpa, acho que isso é mesmo importante e creio que é de ter em conta.

Segundo, o que a Catarina Martins invocou foi que o país tinha entrado numa nova fase da vida política e que essa nova fase decorre da visível deterioração da maioria absoluta do Partido Socialista. 

Ou seja, a nova fase da vida política não é a maioria absoluta mas a sua deterioração patente num conjunto de indicadores que são, todos eles, muito preocupantes, que têm a ver com sinais de uma cultura de maioria absoluta que é aquela que nós temíamos: uma relação com o poder com pouco controlo e pouca lisura até, às vezes.

Isto, nas palavras da Catarina Martins, suscitaria a necessidade de uma equipa renovada, com uma energia política renovada para conduzir o Bloco de Esquerda nesta nova fase.

A minha opinião pessoal é que, ao não se candidatar a uma nova fase de coordenação do Bloco, o que Catarina Martins faz é um serviço ao partido, dizendo 'bom, agora é altura de gente com uma energia renovada que venha do ativismo, da proposta política, que possa ter estas responsabilidades'.

Eu acho que o Bloco só tem de ficar reconhecido por isso.

Conheço a Mariana [Mortágua] há muitos anos e sei que toda a gente a reconhece, incluindo os seus adversários

Perante o anúncio de Mariana Mortágua à liderança do partido, considera que esta decisão poderá trazer um novo caminho positivo, se assim se concretizar? 

Sim, eu sou subscritor da moção de orientação política que tem a Mariana Mortágua como primeira subscritora e faço-o, não pela Mariana, faço-o pelas ideias, pelas propostas que a moção tem.

Conheço a Mariana há muitos anos e sei que toda a gente a reconhece, incluindo os seus adversários, como alguém com uma trajetória de coerência política inatacável.

A Mariana é alguém que se destacou sempre nos combates mais difíceis contra os poderes instalados e contra os rostos mais fortes desses poderes instalados e que tem, a meu ver, as duas qualidades que mais importa trazer para a liderança do Bloco nesta altura.

E quais são essas qualidades importantes de Mariana Mortágua?

Primeiro, uma ligação forte aos movimentos sociais, isto é, a todas as correntes de opinião que têm emergido e estão a emergir na sociedade portuguesa, de contestação às políticas que deterioram as nossas vidas: a habitação, a escola pública, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), os tribunais, os transportes, etc. A Mariana tem uma ligação umbilical ao movimento social e isso eu acho que é extremamente importante porque, nesta fase, é daí que nasce não apenas a contestação, mas a exigência de uma alternativa.

Em segundo lugar, é alguém que conhece particularmente bem este partido político, conhece todas as suas diferenças, todas as suas dinâmicas, todas as suas componentes e eu acho que quem coordena um partido político com esta vitalidade e com esta energia tem que o conhecer particularmente bem porque o dia-a-dia é feito, justamente, de trazer à superfície. Essa é a responsabilidade da coordenação, é não só dar a cara mas trazer para o combate político aquelas mulheres e aqueles homens que se vão revelando no quotidiano mais capazes de ter uma palavra alternativa, de mobilizar gente, de propor. 

Portanto, acho que a Mariana tem todas as condições para ser esse rosto. Não isoladamente, mas no contexto de uma equipa grande, que será também de energia renovada.

Ainda quanto à questão da liderança interna do Bloco, julga que podem existir candidaturas alternativas?

Sim, já há candidaturas alternativas. O Bloco foi, desde sempre, um partido plural, diverso, com correntes de opinião que disputam a orientação política do Bloco e, no contexto político da convenção política que vai decorrer em maio, já foi tornado público a existência de uma moção que propõe ao partido uma outra orientação política e que, portanto, apresentará uma equipa diferente, no caso de triunfar, para liderar a atuação política do Bloco.

Eu acho que isso é bem, acho que é assim que deve ser. Acho que deve haver uma clareza de propósitos no que diz respeito à orientação política e deve haver - não sendo um campeonato de futebol - camaradas ativistas e aderentes do Bloco que dão rosto a essas orientações políticas diferentes.

Foi assim que eu conheci o Bloco desde o princípio e também não gostava de ser militante de um partido que não tivesse esta caraterística de diversidade.

Considera que isso pode influenciar a coesão interna do partido?

Não acho que interfira na coesão interna do partido, pelo contrário. Evidentemente que há uma perfeita coincidência nos grandes propósitos desta força política e nas suas linhas fundamentais.

Tem de haver lealdade, respeito e eu creio que isso é uma exigência que está aí e que todos temos que honrar com todas as nossas forças.

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