"O caso Sócrates passa uma péssima imagem da justiça". As palavras são da bastonária da Ordem dos Advogados que, em entrevista ao Notícias ao Minuto, reforçou a necessidade de haver um pacto na justiça, tal como defendido pelo Presidente da República.
As violações do segredo de justiça, a falta de celeridade dos tribunais e a contrarreforma que já está em curso foram alguns dos temas abordados por Elina Fraga que avaliou também aquela que foi a prestação da anterior ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.
Já disse anteriormente que falta confiança na Justiça. Porquê?
Não é uma conclusão minha, é uma conclusão que resulta de vários estudos e análises. Na minha opinião, essa falta de confiança resulta, num primeiro momento, pelo facto de a justiça ter uma falta de celeridade que tem um impacto negativo na sua imagem junto do cidadão. É evidente que nunca haverá confiança enquanto não houver celeridade nas decisões judiciais. Por outro lado, o facto de também durante os últimos anos os vários agentes da justiça não terem dialogado entre si e não terem assumido compromissos, acaba por afetar a imagem de coesão, de unidade e de respeitabilidade da própria justiça.
A que se deve essa falta de celeridade?
Deve-se sobretudo à falta de recursos humanos, mas também à falta de planeamento do próprio Ministério da Justiça. É evidente que não pode haver celeridade quando temos, em tribunais de Execução de Penas, juízes com três e quatro mil processos para tramitar ou quando temos tribunais de Família e Menores, onde há processos urgentes, em que se demora seis meses a autuar um processo porque não há funcionários judiciais. Por isso, mais importante do que legislar compulsivamente, como foi feito no passado, é importante que se repondere aquilo que são as prioridades.
Resolver o planeamento dos tribunais e aumentar a celeridade vai melhorar a imagem que os cidadãos têm da Justiça?
Sim, se bem que essa imagem também é muito promovida pelos casos mediáticos que existem, porque a imagem da justiça também é um resultado que decorre da mediatização de processos que não são a regra no país. Nem todos os processos têm os atrasos que se verificam em outros processos que, por força da sua complexidade, é mais recorrente esse mesmo atraso. Não podemos avaliar a justiça com base em quatro ou cinco casos mediáticos, uma vez que há centenas de milhares de processos nos tribunais a serem diariamente decididos em tempo útil.
Que imagem é que o caso do engenheiro José Sócrates passa da Justiça?
Passa uma péssima imagem. Se um cidadão, independentemente de quem ele seja, é preso e, se decorridos dois anos, continua a não haver uma acusação formulada contra ele, naturalmente que isso traz consequências negativas para a imagem da justiça.
Caso do engenheiro José Sócrates passa uma péssima imagem da JustiçaÉ incompreensível que numa República se possa deixar um cidadão tanto tempo sem que seja formalmente acusado da prática de qualquer crime. Muitas vezes isso tem a ver com o facto de a investigação querer reunir um conjunto de provas contra aquele cidadão num só processo, gerando os megaprocessos. Uma das soluções que a Ordem preconiza é que haja a desapensação de processos e, ao invés de se fazer uma investigação quase kafkiana a um cidadão, que se vá investigando cada um dos crimes e que se vá formulando as acusações respetivas.
Então é esse o erro do Ministério Público neste caso em concreto?
Não posso falar do caso em concreto até porque não o conheço. Mas posso dizer daquilo que é público, em geral, neste tipo de crimes, geram-se megaprocessos muito complexos e longos. Essa aglomeração não só atrasa como leva muitas vezes a absolvições. O que nos diz a experiência é que em geral nesses megaprocessos abundam as absolvições e são muito escassas as condenações.
Como é que se combate a violação do segredo de Justiça?
Há várias formas de combater este flagelo. A verdade é que recorrentemente há violação do segredo de Justiça quando o processo ainda está no seu início e o acesso a esse processo ainda é muito delimitado. E é aí que se deve atuar e não quando o processo já passou por um número infinito de pessoas.
O combate faz-se também por meio de uma política por parte do Ministério da Justiça e com algumas ferramentas, como marcas de água que se colocam nas páginas dos processos e que permitem identificar a pessoa que violou o segredo de Justiça.
A verdade é que a violação do segredo de Justiça não acabará enquanto persistir este sentimento de impunidade quer por parte dos órgãos de comunicação social, quer por parte dos agentes sejam eles advogados, procuradores, juízes ou funcionários judiciais.
Porque é que há esta necessidade de violar o segredo de justiça?
Muitas vezes a comunicação social é utilizada e está ao serviço, ainda que não tenha consciência disso, de interesses que cada uma das partes pode ter. O Ministério Público pode ter interesse em instrumentalizar a opinião pública como outros agentes podem ter interesse em utilizar a comunicação social para reforçarem as suas posições.
A verdade é que a violação do segredo de Justiça não acabará enquanto persistir este sentimento de impunidade
Sem querer dizer que nunca são os advogados que violam o segredo de justiça, não deixa de ser verdade que as violações acontecem numa fase processual típica que é no inquérito. É minha firme convicção que, na esmagadora maioria dos casos, não são os advogados que violam o segredo de justiça até porque não têm interesse nisso porque ao estarem a violar o segredo estão muitas vezes a contribuir para que a imagem do arguido que representam saia fragilizada na comunicação social. A verdade é que se o Estado não tem meios para preservar o segredo de justiça então deve acabar com ele.
Qual é o papel da comunicação social na violação do segredo de justiça?
Acho que há a cultura do facilitismo. A investigação criminal autónoma e independente fica para segundo plano porque os jornalistas têm acesso direto aos autos. Temos, atualmente, uma comunicação social que aqui ou ali é instrumentalizada pelos poderes, sejam o político ou o económico, mas que na sua esmagadora maioria ainda é independente. É preciso que se acabe com essa cultura de facilitismo, reforçando também o estatuto do próprio jornalista. Uma das surpresas que eu tive enquanto bastonária foi ter tomado também conhecimento das condições em que é exercido o jornalismo em Portugal. A falta de definição e proteção do estatuto de jornalista também torna os jornalistas mais permeáveis às mais diversas pressões e fragiliza a independência da própria comunicação social.
Que comentário tece à polémica entrevista do juiz Carlos Alexandre?
O único comentário que me merece a entrevista do juiz é a frase em que ele insinua que são os advogados que violam o segredo de justiça. Aí recordo que, designadamente, num processo mediático ocorreu uma violação do segredo de justiça flagrante quando não havia advogados constituídos e quando para além dele próprio havia muito pouco contacto de outros agentes com esse processo. Considerei de muito mau gosto e de pouca cultura democrática a imputação insinuada que fez sobre os advogados.
Este tipo de declarações põe de alguma forma em causa a imparcialidade do Carlos Alexandre enquanto titular do processo?
O que eu entendo é que é preciso que todos os agentes da justiça assumam a sua responsabilidade e comentem nos órgãos de comunicação social os casos que estão a decorrer no tribunal com a reserva necessária à credibilização do sistema de justiça. Não sou defensora de uma lei da rolha, mas também não vejo com agrado que casos pendentes abandonem os tribunais para serem debatidos na comunicação social.
O facto de os deputados fazerem as leis e serem ao mesmo tempo advogados belisca a sua imparcialidade? Há promiscuidade entre as duas funções quando exercidas por uma só pessoa?
Não sei se há promiscuidade, mas permite que se formule um juízo de suspeição em relação ao poder legislativo. Por razões de reforço da transparência e para credibilização das instituições democráticas, quem quer ser deputado deve suspender a sua inscrição na Ordem dos Advogados.
Considerei de muito mau gosto e de pouca cultura democrática a imputação insinuada que o juiz Carlos Alexandre fez sobre os advogadosQuando definiram o estatuto da Ordem dos Advogados, os deputados apontaram um conjunto de incompatibilidades e entre elas está ser-se titular de um órgão de soberania. Só que depois abriram uma exceção para eles próprios e eu não percebo como é que os deputados, e bem, formulam um juízo de suspeição, por exemplo em relação aos autarcas e aos funcionários públicos, e que o juízo que eles próprios fazem de suspeição em relação a essas funções não recaia sobre si próprio. Esta é uma situação que seria cómica se não fosse trágica. Mas mais do que haver promiscuidade, a verdade é que o facto de poderem ser deputados legitima por parte dos cidadãos que haja esse juízo de suspeição. A Ordem dos Advogados, no projeto que entregou, defende uma alteração legislativa no sentido de ser eliminada a exceção que existe na lei, consagrando-se a incompatibilidade do exercício de funções de deputado com o exercício da advocacia.
Como reage à acusação que lhe é feita de plagiar o doutor António Barreto?
Isso é ridículo. Quem faz discursos sabe que num discurso de 20 páginas haverá uma frase que é de António Barreto e que não constava entre aspas no discurso. Basta ler o discurso para se perceber há a reprodução de uma frase e não qualquer plágio. É um ataque. Não deixa de ser curioso que o discurso seja de janeiro de 2014, da minha tomada de posse, e que essa acusação absurda feita por uma advogada, apoiante de uma outra candidatura a bastonário, seja feita em plena campanha a 15 dias das eleições.
Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.