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"Não é Deus que nos tira a vida, é a doença incurável e fatal"

Um cancro nas cordas vocais tirou-lhe a voz, mas nunca a confiança na cura. E assim foi. A doença é, agora, "um assunto arrumado" para João Semedo, o médico que é político, e o político que é médico. E agora, candidato à segunda maior câmara do país.

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Melissa Lopes
12/04/2017 09:00 ‧ 12/04/2017 por Melissa Lopes

Política

João Semedo

Tinha apenas 16 anos quando a política lhe 'piscou o olho' e aos 21 entrou para o PCP, por ser a única forma de combater o fascismo, a PIDE e a guerra colonial, e de lutar pela liberdade, a democracia, eleições livres e o fim do colonialismo. Um partido que deixaria nos anos 90 por considerar que estava "esgotado" para passar a erguer a bandeira do Bloco de Esquerda. Depois de uma década como deputado, em 2013, a doença bateu-lhe à porta e roubou-lhe a voz.

João Semedo está de volta à arena política, mas a verdade é que nunca deixou o debate: a despenalização da morte assistida tem sido uma das suas frentes de batalha. 

Não tem "qualquer dúvida" de que a liderança do Bloco está em boas mãos e, afiança, na Geringonça, "ninguém está refém de ninguém".

Semedo quer 'conquistar' o Porto nas autárquicas do dia 1 de outubro, mas para isso tem de 'destronar' o atual presidente, Rui Moreira, um candidato com independência "relativa", faz notar, considerando a sua atuação "frustrante e desequilibrada". "Muita promessa, muito anúncio mas pouca obra", critica.

Já sobre Marcelo Rebelo de Sousa, destaca que se comporta, "demasiadas vezes, como primeiro-ministro", invadindo o campo do Governo e condicionando-o. E fá-lo não por causa da veia de comentador, mas sim por "motivações políticas", analisa. 

Começo por lhe perguntar como está a sua saúde? Pode dizer-se que venceu o cancro?

A minha saúde está ótima, estou curado depois das cirurgias e tratamentos que fiz a um cancro das cordas vocais. A situação está completamente resolvida, estou muito bem, a única coisa que mudou foi a minha voz, é mais metálica e rouca do que era.

Recuando ao ano em que soube da doença, lembra-se do dia em que recebeu o diagnóstico?

Claro que lembro, apesar de já ter sido em 2013. Foi logo a seguir à campanha das autárquicas daquele ano, estava muito rouco, pensei que seria de ter esforçado excessivamente a voz durante a campanha. Procurei um médico otorrino e o diagnóstico foi claro, a lesão numa corda vocal era maligna, não deixava qualquer dúvida.

A recuperação física e da voz está concluída, estou muito bem de saúde e falo de forma a que todos me entendam perfeitamenteComo foi o processo de tratamento? Em que ponto está a recuperação da voz?

O processo teve várias fases, no princípio foi uma primeira cirurgia, seguida de radioterapia. Mais tarde foi necessário voltar a operar mais algumas vezes, enfim, tentativas de conservar as cordas vocais tanto quanto possível mas, finalmente, em meados de 2015, verificou-se que isso não era possível. Para acabar com a doença, era preciso retirar as cordas vocais. E assim foi. A recuperação física e da voz está concluída, como já disse estou muito bem de saúde e falo de forma a que todos me entendam perfeitamente.

Disse numa entrevista que as hipóteses de sucesso de cura eram de 96%, mas que, afinal, estava do outro lado da barricada. Essa fase foi particularmente difícil?

Sim, disse isso exatamente, mas relativamente ao tratamento inicial. Em 96% dos casos, a cirurgia inicial e a radioterapia travam o desenvolvimento do cancro das cordas vocais, não sendo necessário removê-las. Não sou eu que digo, são as estatísticas que o mostram. Mas nós nunca sabemos de que lado da estatística estamos... Sobre as dificuldades que tive ou não tive, são momentos que guardo para mim, nunca falei nem quero falar disso. Passou, está arrumado, não se fala nem pensa mais nisso. É passado, ponto final.

A morte passou-lhe pela cabeça?

Sempre confiei nos tratamentos e na cura, a equipa do IPO – médicos, enfermeiros, terapeutas, auxiliares, enfim todo o serviço de otorrino foi fantástico, a minha confiança fundava-se no que me diziam e na forma como estava a ser tratado.

E já que falamos em morte, crê que o direito a morrer vai, um dia, passar a ser lei em Portugal?

Os partidos estão divididos...Julgo que a pergunta é, não sobre o direito a morrer, mas sim sobre a aprovação de uma lei que despenalize a morte assistida em determinadas circunstâncias: lesão ou doença grave, irreversível, sem cura, fatal, num quadro de intenso e duradouro sofrimento, num doente adulto, com inteira capacidade de exprimir livre, consciente e reiteradamente a sua vontade.

Sim, acredito e tenho bastantes razões para isso: julgo que há uma maioria de deputados favoráveis à despenalização, apesar de não ser uma opinião unânime em alguns partidos, e que, também na sociedade, a maioria dos portugueses é favorável, como têm mostrado os estudos de opinião e sondagens entretanto realizados.

Não creio que referendar direitos individuais seja uma escolha democrática. O que é de todos não pode ser proibido por alguns

Afasta por completo a possibilidade de referendo?

Sim, não creio que referendar direitos individuais seja uma escolha democrática. Um direito que a lei consagra e atribui a todos – desde que o queiram praticar - não pode ser impedido pelo voto de alguns. O que é de todos não pode ser proibido por alguns.

Faz algum sentido referendar o direito à saúde ou ao trabalho? Nem a saúde nem o trabalho de toda uma sociedade pode ficar dependente das opiniões, opções e voto de um grupo que queira pôr em causa esses dois direitos – saúde e trabalho – que são reconhecidos a todos os cidadãos. Isso não seria democrático, ao contrário, seria a ditadura de um grupo sobre todos, a imposição da vontade de uns quantos sobre todos os outros.

A despenalização não obriga ninguém a recorrer à morte assistida mas permite que todos que o pretendam o possam fazer. Julgo que isto assim é que é democracia, respeitar o direito e a vontade de todos e de cada um.

Há hipocrisia no SNS quanto a este assunto? Os médicos não praticam já alguma forma de eutanásia?

Não devemos confundir as situações. Hoje a Ordem dos Médicos (OM) considera como boa prática médica, em determinadas situações de muita gravidade, deixar morrer. Significa isto que, naquelas situações definidas e autorizadas pela OM, os médicos podem suspender os tratamentos ou não iniciar novos tratamentos. É o que chamamos deixar morrer, como disse.

Há uma outra situação, ligada à sedação e analgesia dos doentes em fase terminal, com barbitúricos e morfina por exemplo, cuja administração tem como consequência abreviar a agonia, acelerando a morte, mesmo que não seja essa a intenção do médico.

Nenhuma destas situações se pode comparar com a morte assistida, em que há uma decisão do doente de antecipar a sua morte para acabar com o sofrimento. A questão que se põe é saber se há alguma diferença ética, moral digamos, entre deixar morrer, acelerar a morte ou antecipar a morte. Na minha opinião, não há, são tudo situações eticamente aceitáveis sem qualquer mácula, desde que correspondam à vontade do doente.

Reconhece que, para muita gente, encarar a morte como um bem mais precioso do que a vida é difícil de assimilar?

Mas há alguém que encare a morte como um bem mais precioso do que a vida? Eu não conheço ninguém. Aliás, a despenalização da morte assistida, é exatamente para que cada um possa decidir em função da sua vontade, dos seus critérios e padrões de vida, como quer viver os últimos momentos da vida.

É preciso não mistificar as situações: não é Deus, não são os médicos, não são os doentes que nos tiram a vida, o que nos mata, o que nos tira a vida é a doença, é a doença incurável, fatal, da qual só há uma coisa a esperar: a morte.

Claro que custou deixar o Parlamento.Mas já tinha decidido não ser deputado na legislatura que começou em 2015

Voltemos a si. Foi o cancro que ditou a sua saída do Parlamento? Teve pena de ter deixado de ser deputado ao fim de 10 anos de atividade?

Uma coisa é deixarmos de fazer alguma coisa, seja ela qual for, porque assim o decidimos. Outra é sermos obrigados a fazê-lo por doença ou qualquer outra razão que não constitua uma escolha do próprio. Claro que custou, tanto mais que eu gostava de ser deputado, gosto muito da intervenção e da disputa políticas, do debate e da controvérsia parlamentar. Mas, quero dizer-lhe, que já tinha decidido não ser deputado na legislatura que começou em 2015. Três mandatos é tempo suficiente, não nos devemos eternizar no exercício de cargos e funções políticas.

Ser médico ajudou a enfrentar o 'touro pelos cornos'? Ter um conhecimento especializado em saúde ajudou-o a relativizar, ou, por outro lado, a temer tudo com o dobro da preocupação e medo?

Ser médico ou deixar de ser, ser médico ou ter qualquer outra profissão, não muda nada de essencial no processo de estar doente. A doença, o sofrimento, não dependem do canudo académico. O conhecimento tanto ajuda como desajuda, tanto alivia e dá segurança e confiança como tem o efeito contrário, confirma ou antecipa as más notícias.

Já agora, falo com o médico que é político ou com o político que é médico?

Durante a minha vida, incluindo a de médico, nunca deixei de ter intervenção política, não consigo dissociar uma vertente da outra. Mas, neste caso, fala com o candidato do Bloco de Esquerda à Câmara Municipal do Porto, um médico que tem pela frente um interessante desafio político.

Recuando bem atrás no tempo, lembra-se de quando começou a ter consciência política?

De uma forma mais consistente, na sequência da tragédia social que foram as cheias de Lisboa em 1967, eu tinha 16 anos.

Não me restava outra coisa que não fosse sair do PCP e foi isso que fizQue memórias guarda do tempo em que esteve no PCP? Como foi lá parar?

Entrei para a UEC/PCP em 1972. Os comunistas eram a grande força da luta contra o fascismo, a PIDE e a guerra colonial, pela liberdade, a democracia, eleições livres e o fim do colonialismo. Quem como eu queria participar nesse grande combate político, para além da participação que já tinha no movimento estudantil – eu fui dirigente da Associação de Estudantes de Medicina - reconhecia no PCP o espaço privilegiado para essa militância. Foi assim durante vários anos.

Mas, em determinado momento, no início dos anos 90, considerei que o projecto do PCP estava esgotado e que já não havia condições internas para superar os bloqueios que, na minha opinião, condenavam a influência do PCP à estagnação. Portanto, não me restava outra coisa que não fosse sair do PCP e foi isso que fiz. Ninguém gosta de ver frustrada uma expectativa política, sobretudo quando nos empenhamos tantos anos. Mas essa frustração não estraga as boas memórias que tenho desse tempo, como também não foi suficiente para me desmobilizar da acção política e da luta da esquerda. Não deito nada fora de tudo o que vivi, na política e fora dela.

Depois do PCP, porquê e como o Bloco de Esquerda?

À Esquerda, não vejo qualquer outra opção mais válida para quem quer continuar a bater-se pela democracia e o socialismo.

No início, pareceu-lhe boa ideia a "liderança bicéfala"/direção partidária com Catarina Martins? O que falhou?

Claro que sim, caso contrário não teria feito parte dessa liderança a dois, paritária. Aliás, não houve outra proposta que recolhesse mais apoio entre os aderentes do Bloco, razão pela qual fomos eleitos por uma grande maioria. Não sei se falhou alguma coisa, todos tínhamos a consciência de que não iria ser fácil, o Bloco atravessava um momento de maior fragilidade depois dos maus resultados nas legislativas de 2011.

*Pode ler a segunda parte desta entrevista aqui.

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