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"Boicote é argumento hipócrita de quem posa de anjinho e virgem ofendida"

Assumidamente militante do PSD, muitos têm acusado a bastonária da Ordem dos Enfermeiros de liderar um manifesto que visa deitar abaixo o Governo.

Notícia

© Blas Manuel

Andrea Pinto
22/09/2017 12:30 ‧ 22/09/2017 por Andrea Pinto

País

Ana Rita Cavaco

Na segunda parte da entrevista ao Vozes ao Minuto, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros defende-se de quem a acusa de estar a tentar boicotar o Governo por ser militante do PSD.

Ana Rita Cavaco avalia, ainda, as propostas apresentadas para melhorar a situação dos enfermeiros, considerando que é preciso "ver para crer", porque de promessas sem concretização já os enfermeiros estão fartos.

É uma assumida militante do PSD e, como tal, foi acusada pela oposição de estar a tentar boicotar o Governo. Como reage a estas acusações?

Não sei onde é que estavam essas pessoas quando tive várias intervenções no Conselho Nacional, na presença do senhor primeiro-ministro da altura [Passos Coelho], e em que fui muito dura. Em que, na frente do senhor ministro da Saúde, porque os ministros eram todos convidados, tive de chocar com senhor primeiro-ministro que era do meu partido. Agora dizem que eu não disse nada, mas é público, andou em todo o lado. Tive um processo disciplinar por causa disso e quem me pôs o processo foi preso por causa do processo da Octapharma. A hipocrisia é uma coisa que grassa muito em Portugal e também ela contribui para aquilo que se passa na Saúde, que é a área mais estruturante do país. Esta área tem de estar acima de qualquer partido.

Também não conheço outra forma de intervir publicamente a não ser através dos partidos. Porque acho que ao ouvir todos os comentadores que andam por aí na televisão, nos canais públicos e privados, que vão para ali com ar de virgens ofendidas quando eles próprios têm um partido político conhecido e atacam a bastonária porque ‘Ai meu deus que é do PSD’.

Que eu saiba a Constituição dá-nos o direito de ter uma ideologia partidária. E depois as pessoas conhecem muito pouco de história. Essa coisa de encostar os partidos a Esquerda e à Direita… as pessoas são o que são. Nós não somos todos iguais. Não é porque somos militantes do PSD ou do PS que agora vestimos uma carapuça e somos todos iguais. Eu considero-me do braço esquerdo do PSD, que, aliás, é um partido que tem origem nos ideais de Esquerda. Não é impossível ser-se do PSD e defender o SNS. Isso não é uma bandeira dos outros partidos. É das pessoas.

Sonho com o dia em que os partidos não vão ter nada para fazer porque as pessoas pura e simplesmente vão entender que mais do que os partidos contam as ideias. O que eu sempre disse é, quando estamos a defender uma causa, temos de fazer duas coisas: ser honestos para connosco e não mentir a nós próprios e ser honestos e dignos e leais para com as pessoas que representamos. E eu, neste momento, estou a representar os enfermeiros.

Esse argumento é um argumento hipócrita e infelizmente difundido por pessoas que posam de anjinhos e virgens ofendidas quando têm interesses em partidos políticos. Quando quiserem discutir comigo os interesses do SNS, das pessoas, cá estarei. Quando quiserem fazer hipocrisia e política com a vida das pessoas, não contam comigo.

Como é possível sistematicamente o governo injetar dinheiro na banca e depois não ter dinheiro para a saúde?

O ministro das Finanças diz compreender a situação dos enfermeiros mas que não pode esticar o orçamento. É uma desculpa?

Ele tem possibilidade de esticar o orçamento. Eu percebo o défice, os sacrifícios, o que aconteceu com a troika. Nós não somos tontinhos e todos fizemos sacrifícios. Mas há uma coisa que não percebo. Há uns dias saiu uma notícia em que foi o próprio FMI que veio dizer que Portugal não tem enfermeiros suficientes e sabemos que não o fez por gostar muito das pessoas, porque é uma instituição com uma grande eficiência orçamental. Então se até o FMI o diz, alguma coisa não está bem no nosso país. Porque já no memorando da troika havia uma área de exceção nos cortes, que era a contratação de enfermeiros. Já nesse memorando era reconhecido que o rácio de enfermeiros por mil habitantes era baixíssimo. A troika e o FMI sabem perfeitamente que serviços onde o número de enfermeiros é o correto são mais eficientes e onde se gasta menos dinheiro. Se nós tivéssemos um serviço com condições adequadas, significa que íamos poupar 58 milhões por ano nas taxas de infeções, menos 11% em internamentos, e com o aumento da mortalidade.

Se somarmos isto tudo, o senhor ministros das Finanças tem orçamento para esticar. Isto, ainda, aliado ao desperdício que se vê na corrupção. Como é possível sistematicamente o governo injetar dinheiro na banca e depois não ter dinheiro para a saúde? Não vale a pena dizer que há milhares de milhões de euros para a CGD e para os enfermeiros não  há 200 milhões, que é o que estamos a falar.

Como é que se justifica, sobretudo com o anterior governo, que se tenha seguido tão à risca as imposições do FMI e não tenha cumprido esse ponto?

Não se justifica. Uma das coisas que disse várias vezes em Conselho Nacional é que este problema tinha de ser resolvido. Quando na altura denunciei o presidente da ARS, fi-lo com uma comparação muito simples, dizendo que não tinha enfermeiros no meu serviço e que o dinheiro que aquele senhor gastava, que era desperdício, dava para eu contratar ‘X’ enfermeiros. O esquecimento a que todos os governos sem exceção votaram os enfermeiros não tem justificação.

Quando o primeiro-ministro era candidato ao cargo, gravou um vídeo em que dizia que não se ia esquecer dos enfermeiros, que eram os pilares do SNSO primeiro-ministro disse no fim de semana passado que os enfermeiros iriam ser beneficiados com o descongelamento das carreiras no próximo ano. É este tipo de atitudes que querem ver a ser tomado?

Não é suficiente porque agora também posso dizer que vou dar peluches a todos os enfermeiros. Mas se eu disser que vou dar peluches mas não disser nem quando, nem como, vão olhar para mim de lado. Fico contente com a notícia desde que me digam quando e como porque isto é preciso ver para crer. Essa história de que vamos ter isto e aquilo, estamos a ouvir desde 2005. É essa a zanga dos enfermeiros. Estamos a falar do mesmo primeiro-ministro que em 2015, quando era candidato ao cargo, gravou um vídeo em que dizia que não se ia esquecer deles, que eles eram os pilares do SNS, que tinham sido esquecidos por toda a gente. Estamos em 2017 e ainda não disse como.

Notícias ao Minuto"O esquecimento a que todos os governos sem expeção votaram nos enfermeiros não tem justificação, nem menos durante a troika"© Blas Manuel

E a proposta do aumento de 150 euros para os enfermeiros especialistas divulgada pelo Ministério da Saúde esta semana?

Foi possível fazer uma negociação com outras carreiras da área da saúde que são técnicos superiores. Os enfermeiros são licenciados e neste momento o vencimento base deles não é um vencimento de técnico superior. Se é possível fazer essa negociação para os outros e se vamos colocar nos outros um vencimento ilíquido de um técnico superior, porque é que os enfermeiros ainda não o têm?

Acho natural que os enfermeiros não aceitem. Eu como bastonária, como enfermeira, também entendo que isso não defende a dignidade profissional. Não compreendo as sucessivas reuniões só com o ministério da Saúde, sem a presença do ministério das Finanças, que todos nós sabemos que tem de autorizar o que quer que seja. Por isso é que os enfermeiros sentem que andaram a ser enrolados, porque durante o mês de junho havia um protesto em curso e uma greve convocada. Mas o ministério mostrou boa vontade e os enfermeiros cancelaram [a greve] porque o ministro disse que ia negociar. Tiveram um mês em reuniões técnicas na Administração Central do Sistema de Saúde que está dependente do Ministério da Saúde e no final disse que não tinha mandato político para poder negociar o que quer que seja em termos de valores. Então isto foi para quê? Para os governantes terem férias descansadas e os enfermeiros suspenderem a greve e não se resolver o problema de ninguém? Foi empurrar com a barriga. E agora estão a fazer a mesma coisa. O ministro das Finanças só esteve numa reunião, com o sindicato que não convocou greve, e não conseguiram chegar a acordo. Acho que têm de dizer o que podem dar e os enfermeiros tem de responder o que podem aceitar.

E porque é que há esta prioridade de se reunirem com o sindicato que não convoca a greve ao invés de conversarem com os que estão em greve?

Isso tem de perguntar ao senhor primeiro-ministro, não sei porque é que ele fez isso.

A vida de todos nós está acima de qualquer partidoEsta terça-feira foi aprovada a chamada do ministro da Saúde ao Parlamento para ser ouvido sobre este assunto. Pode ajudar ?

É aprovada a ida do senhor ministro e é chumbada a ida dos bastonários e dos presidentes dos Conselhos de Administração, que não têm autonomia mas têm uma voz, têm coisas a dizer. Chumbada pela maioria de Esquerda que suporta o Governo. O ministro fala sozinho sem contraditório quando no passado disse coisas que não eram exatamente assim. Estamos a falar do mesmo ministro que andou meses a dizer que não se passava nada dentro dos hospitais, que estava tudo na paz do senhor, e as grávidas a serem empurradas de hospital para hospital com condições de insegurança gravíssimas. A vida de todos nós está acima de qualquer partido. Não chega o PCP e o Bloco virem apoiar publicamente os enfermeiros e depois já não quererem que os seus bastonários sejam ouvidos. Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo. É a política mas eu não me enquadro nesta forma de política.

Houve muitos enfermeiros que saíram do país descontentes com as condições na área. A resolver-se a situação acha que estariam dispostos a voltar?

Vou dizer aquilo que eles me escrevem: sonham com o dia em que seja possível haver condições, não as condições ideais, apenas melhores condições para poderem regressar ao seu país. Querem voltar e têm esperança que consigam ter uma carreira e ser valorizados, porque eles vão trabalhar para fora não só pelo dinheiro mas porque os tratam bem. O Governo tem de entender isso.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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