António Garcia Pereira abandonou a política partidária há dois anos, mas isso não o impede de continuar a "tomar as atitudes" e de "dizer as coisas que entenda que devem ser ditas". Por isso, não poupa nas críticas que faz ao Governo, considerando que o que aconteceu em Pedrógão Grande e depois, nos incêndios de outubro, é "criminoso".
O Parlamento, diz, deveria ter sido dissolvido em junho por Marcelo Rebelo de Sousa, "um jogador emérito". Sobre o PCP e Bloco de Esquerda, a postura crítica mantém-se. "Continuam a comer à mesa do Orçamento, apoiam o Governo mas não fazem parte dele, quando as coisas esticam muito põem-se um pouco de lado e fazem umas críticas", analisa.
O advogado realça as potencialidades de Portugal e, nesse sentido, considera que o nosso país deveria sair da zona euro e da União Europeia.
Por duas vezes, Garcia Pereira concorreu às eleições presidenciais. Neste momento, confessa que não se imagina a candidatar-se a uma terceira, mas, sublinha, "tudo depende das situações que se criarem e das condições que existam".
Há uma espécie de missa hipnótica, mais ou menos pegajosa, que nos é vendida de manhã à noiteSomos, hoje, uma sociedade muito resignada?
Não. Acho é que é pregada a resignação. Antes do 25 de Abril, era pregada a partir da escola primária, em que as meninas e os meninos eram ensinados a ser carneiros desde que nasciam. Hoje, temos a pregação dessa resignação de outra forma. São os discursos do ‘não há alternativa’, de que isto é assim e inimputável. Uma espécie de missa hipnótica, mais ou menos pegajosa, que nos é vendida de manhã à noite, pelos grandes órgãos de comunicação social, em larga medida pelas redes sociais, pelas universidades. Do pensamento dominante que visa desarmar as pessoas de uma ideia fundamental, que é a de que temos de ser nós a construir o destino com as nossas próprias mãos.
Veja-se onde conduz, sobretudo num país como o nosso, a pertença à União Europeia e ao euro. Somos um país com potencialidades gigantescas, desde logo devido à sua localização geoestratégica e ao seu mar, e esse debate é completamente silenciado. Somos um país que praticamente importa tudo aquilo de que necessita, e um país que importa tudo o que necessita é um país necessariamente sempre endividado.
Transformaram o nosso país num terciário, quase todo de baixa qualificação, totalmente dependente do exteriorComo é que se rompe com essa política?
Rompendo-se. É preciso retomar o debate do que é a pertença de Portugal à União Europeia. Pagamos nove mil milhões de euros de uma dívida que não foi contraída pelo povo português, nem foi contraída em seu benefício, mas que resulta desta circunstância em que a capacidade produtiva do país, em vez de ter sido modernizada e aumentada, tem sido toda destruída, porque a agricultura é para a França, a indústria para os países do Norte… Transformaram o nosso país num terciário, quase todo de baixa qualificação, totalmente dependente do exterior, numa política de permanente submissão ao estrangeiro, desde esta vergonha de o Governo português ir a correr apoiar Castela contra a Catalunha, negando ao povo catalão o direito à sua autodeterminação e independência, que dura há séculos, e que muito contribuiu para a nossa restauração da independência em 1640. Somos um país, neste momento, totalmente dependente e não temos de ser, porque temos condições naturais e recursos riquíssimos.
Relativamente à Catalunha, no referendo de 1 de outubro, apenas cerca de 40% dos catalães votaram, numa votação que também foi condicionada por Madrid. Nestas condições, é legítimo a Catalunha declarar a sua independência?
É perfeitamente legítimo e corresponde a uma aspiração antiquíssima. Este é um povo que ensinou aos seus filhos, na clandestinidade, o catalão, que foi proibido no regime franquista. O célebre arquiteto Gaudi foi preso depois de ter sido interrogado em castelhano e ter respondido em catalão. Um povo que aguenta décadas a ensinar nas caves, às escondidas, uma língua aos seus filhos, e que depois é completamente preservada, mostra uma identidade própria que é impossível destruir. Estão muito enganados aqueles que pensam que assustando o senhor Puigdemont, metendo mais ou menos tanques, mais ou menos polícias, na Catalunha, conseguem abafar aquela aspiração. Ela virá ao de cima, mais tarde ou mais cedo. Quem vê resistentes a beijarem o boletim de voto [no referendo de 1 de outubro] percebe que aquela luta é imparável. A questão está em saber quem se põe do lado dos que querem impor um domínio completamente ilegítimo, mas que tem a força do seu lado, ou os que querem estar do lado justo da história.
Quando chegamos a questões vitais, como a dos fogos, o atual Governo mostra que não tem nenhuma diferença relativamente ao anteriorO Governo português já completou mais de metade da legislatura. Que avaliação faz desta solução governativa?
É uma avaliação profundamente negativa. No fundo, prossegue a mesma política do [governo] anterior, com uma forma mais elegante. Temos a aceitação da mesma lógica da integração europeia, da pertença ao euro, do pagamento sem bufar da dívida. É muito elucidativa a posição que o Governo toma relativamente às leis laborais da troika, em que não tenciona mexer uma vírgula, designadamente aquelas que corresponderam a uma lógica de um ideário violentamente anti-operário e anti-popular, consistente na facilitação dos aumentos do tempo de trabalho e na diminuição das cláusulas de conteúdo remuneratório, com a facilitação dos despedimentos e da contratação precária. É muito significativo que um Governo que se diz de Esquerda tenha deixado logo claro que nisto não vai mexer uma vírgula. Depois, a obsessão pelo défice e utilização da lógica das cativações mostram que, no essencial, temos aqui a mesma política.
Quando chegamos a questões vitais, como a dos fogos, o atual Governo mostra que não tem nenhuma diferença relativamente ao anterior. Aquilo que causou a morte de cerca de uma centena de pessoas, e em duas vezes, primeiro o aviso e depois reincide-se, é o resultado que passou por coisas aparentemente pontuais, como a extinção de guardas florestais, a desativação de torres de vigilância, o impedimento de que a Força Aérea tivesse um papel a desempenhar no combate aos fogos. O SIRESP é um exemplo típico. É uma negociata para dar à SLN um negócio de milhões. O contrato é assinado já depois das primeiras eleições que foram vencidas pelo engenheiro José Sócrates, e a três dias da posse. É um governo de gestão que assina aquilo e quando o atual primeiro-ministro é ministro da Administração Interna, no primeiro governo [liderado por José Sócrates], o que faz é pegar e mandar para a Procuradoria-Geral da República (PGR) para esta dar o seu parecer. A PGR diz que não pode. O que é que António Costa fez? Agarrou no parecer e foi esgrimi-lo como às de trunfo nas negociações com a SNL para obter um ‘descontozinho’ no valor. A troco desse desconto no preço do SIRESP, foi anulado o período experimental.
Em 2013, o governo [de Passos Coelho] aprovou uma lei que permite que a chamada reflorestação possa ser feita por qualquer espécie [de árvore]. Quais são as espécies que passam a ser florestadas? Precisamente as mais combustíveis e mais rentáveis para as grandes indústrias com interesses nesta área, o eucalipto e o pinheiro. Qual foi a posição que este Governo teve em relação a esta lei? Manteve-a em vigor. Manteve em vigor toda a negociata em termos dos meios aéreos, em torno das comunicações pelo ar, com cabos suspensos em postes de madeira, em zonas de incêndio. Isto não é apenas um erro, é criminoso. O atual Governo não representa nenhuma alteração de fundo relativamente ao anterior.Se há força política que devia estar calada no meio disto tudo é o CDS, porque [Assunção] Cristas foi ministra da Agricultura e é responsável por grande parte das medidas de facilitação da ocorrência e propagação dos fogosImagina a presença do PCP e do BE num futuro governo liderado pelo PS? O que seria diferente?
Acho difícil, porque para estes partidos, de forma a não serem completamente desmascarados perante as bases do respetivo eleitoral, é-lhes mais convivente não fazer parte do Governo. Assim, mantêm a posição dúplice relativamente às questões mais gritantes para fazerem, aparentemente, críticas ao Governo de que não fazem parte, embora o suportem. Este jogo dúplice é mais facilmente jogado se não fizeram parte de um governo do que se estiverem lá dentro. A solução mais conveniente para esses partidos continuarem à mesa do Orçamento é exatamente essa: viabilizarem a solução governamental, e com isso estão de acordo quanto ao fundamental e quanto à política do Governo, mas terem um espaço de manobra que lhes permita fazer aparentes críticas quando as coisas se tornam particularmente escandalosas. Quando se dá Pedrógão Grande, vimos alguns desses partidos aparecer com uma censura veemente relativa ao Governo? Não vimos. Não digo que fossem votar a moção de censura do CDS, porque se há força política que devia estar calada no meio disto tudo é o CDS, porque [Assunção] Cristas foi ministra da Agricultura e é responsável por grande parte das medidas de facilitação da ocorrência e propagação dos fogos, mas a verdade é que deveriam ter uma posição de crítica demolidora em relação ao Governo e não têm. Este é o melhor dos mundos para esses partidos. Continuam a comer à mesa do orçamento, apoiam o Governo mas não fazem parte dele, quando as coisas esticam muito põem-se um pouco de lado e fazem umas críticas, mas mantêm-no de pé.
Não é difícil alguém aparecer como pessoa de afetos sucedendo no cargo onde esteve durante dois mandatos uma múmia paralítica como Cavaco Silva
Marcelo Rebelo de Sousa tem sido apelidado de ‘Presidente dos afetos’. Este mandato está a surpreendê-lo?
Não me surpreende nada, até porque conheço o professor Marcelo há muitos anos. Está exatamente a corresponder àquilo que pensava que ia acontecer. Não é difícil alguém aparecer como pessoa de afetos sucedendo no cargo onde esteve durante dois mandatos uma múmia paralítica como Cavaco Silva. A questão que devemos colocar é se queremos um Presidente da República simpático ou um Presidente da República capaz de tomar as medidas que se impõem. Em relação aos incêndios, a não adoção de medidas é absolutamente criminosa. Um Presidente da República, nestas circunstâncias, quando um governo incumpre desta forma grave nas suas obrigações para com o povo, obviamente só tem uma medida a tomar.
Mas o Presidente não poderia estar a imiscuir-se em funções que não são da sua competência?
O Presidente da República pode perfeitamente dissolver o Parlamento e demitir o primeiro-ministro. O governo sai da Assembleia da República e é constituído na base de um conjunto de promessas eleitorais e de programa de governo, e não o está a cumprir quando deixa centenas de cidadãos à morte. Um Governo desses não pode permanecer.
O Presidente deveria ter dissolvido a Assembleia da República após Pedrógão Grande?
Acho que sim. Porque acho que aquilo demonstra não apenas irresponsabilidade, como também o compadrio de todos os interesses que estão por trás da situação que conduziu à tragédia que aquilo foi.
Marcelo pode dar muitos beijinhos, mas relativamente à política criminosa prosseguida por este Governo pactuou com ela e foi cúmpliceDissolver a Assembleia e um Governo em plena época de incêndios não traria maiores consequências?
Não dissolveu e veja as consequências. O Presidente, presenciando um governo que foi eleito com base num programa eleitoral, constituído por forças políticas que obtiveram o voto dos cidadãos porque se comprometeram a aplicar uma determinada política, e que se está a comportar com violação completa dessas promessas eleitorais e com violação completa dos interesses do povo português, só tem uma atitude a tomar, que é a de utilizar os mecanismos que estão previstos na Constituição para uma situação como esta. Não o fazendo, torna-se cúmplice. Pode dar muitos beijinhos, mas relativamente à política criminosa prosseguida por este Governo pactuou com ela e foi cúmplice dela.
Além da questão dos incêndios, que balanço faz do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa?
Marcelo Rebelo de Sousa é um jogador emérito. Evidentemente que quem pensasse que ele iria ficar naquela lua de mel com o Governo é porque não o conhece. No primeiro momento que visse que continuar muito próximo o arrastaria para críticas e para uma perda de popularidade, imediatamente o largaria e faria o número que fez. O que se exige a um Presidente da República não é que seja um Presidente de afetos, mas sim que defenda e faça defender a Constituição e os princípios democráticos fundamentais. Desse ponto de vista, também faço um balanço negativo.
Nunca deixarei de tomar as atitudes e de dizer as coisas que entenda que devem ser ditasJá concorreu por duas vezes às eleições presidenciais. Imagina-se a concorrer uma terceira?
Nos tempos mais próximos não me imagino. Mas as decisões têm de ser tomadas em função das situações políticas que existem em cada momento. Neste momento, não perspetivo um desenvolvimento de uma atividade política a esse nível, o que não quer dizer que daqui a cinco, 10 15 ou 20 anos, se lá chegar, o faça. Tudo depende das situações que se criarem e das condições que existam. Uma coisa posso dizer, nunca deixarei de tomar as atitudes e de dizer as coisas que entenda que devem ser ditas. Desse direito, que entendo simultaneamente como um dever cívico, nunca abdicarei.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.