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"Os muros são físicos, acabam por ruir. Mas o amor, esse, nunca vai ruir"

Pedro Abrunhosa lança esta sexta-feira o seu oitavo disco. 'Espiritual' promete ser uma viagem à volta de 15 histórias de preocupação, revolta e muito amor. O músico do Porto esteve à conversa com o Notícias ao Minuto, contando tudo sobre o seu novo trabalho e revelando o que pensa sobre o momento histórico que vivemos.

"Os muros são físicos, acabam por ruir. Mas o amor, esse, nunca vai ruir"

Pedro Abrunhosa dispensa apresentações. A já longa carreira, os oito discos editados, as dezenas de prémios ganhos, a postura inconfundível e resiliente e a escrita poética falam por si. Mais do que músico, Pedro Abrunhosa, que faz no dia 20 de dezembro 58 anos, descreve-se como “um escritor de canções que conta histórias”.

E esta sexta-feira, dia 30 de novembro, o músico do Porto vai contar mais 15 histórias através do lançamento do seu oitavo álbum - ‘Espiritual’. Um trabalho que transborda amor e preocupação pelos outros, como relata Pedro Abrunhosa ao Notícias ao Minuto, mas que também está recheado de momentos de inquietação e de revolta com o que se passa ao redor do mundo.

Casos reais dão o mote a alguns temas, tal como já tinha sucedido em ‘Gisberta’, ‘É Preciso Ter Calma’ e em  muitas outras canções da sua carreira. Pedro Abrunhosa explica que o que muda são as histórias, e o mundo. A paixão e a forma de exorcizar angústias continua neste novo disco. Em ‘Espiritual’ há muros que pretendem acabar com o amor, como acontece no México, fogos que destruíram famílias, como em Pedrógão Grande, e até uma conversa entre Deus e Alan, o menino sírio encontrado morto numa praia da Turquia que se tornou símbolo da crise dos refugiados. Mas há muito mais. Há até uma música dedicada aos Aliados, mas que pretende ser uma homenagem a todo o país.

Além da viagem solitária do músico pela profundidade da palavra e do momento histórico em que vivemos, ‘Espiritual’ conta com outros 'passageiros' especiais como Carla Bruni, Elisa Rodrigues, Ney Matogrosso, Ana Moura e Lila Downs que prometem fazer deste disco, mais um trabalho de sucesso de Pedro Abrunhosa.

Cinco anos depois de ‘Contramão’, lança ‘Espiritual’. Podemos dizer que depois de andar em contramão encontrou o seu caminho espiritual?

[Risos] Todos os discos são um caminho. O espaço que vai de um caminho para o outro, é o espaço para a vida porque os discos são o reflexo de cada caminho. É preciso viver para escrever os discos. É preciso ler, é preciso silêncio, é preciso ouvir-nos a nós próprios.

Daí o nome do álbum? Foi a construção de um caminho espiritual?

A espiritualidade é um diálogo interior e é-nos dada pela religião, proporcionada pela arte e esclarecida pela filosofia e pela ciência. Esta fase, em que o mundo atravessa grandes perigos internacionais, uma intranquilidade interior, em que está doente, esta questão dos populismos, que tem a ver também com a questão da rapidez da informação e da falsa informação, através das redes sociais, tem de ter um contrapeso emocional e espiritual.

Temos de ter tempo para nós, temos de ter tempo para o silêncio, temos de ter tempo para a arte, temos de ter tempo para aquilo que eu digo neste disco que é: o espírito. E o espírito é a força vital da vida, é aquilo que anima a vida, é a força interior que anima cada um de nós. Foi a pensar nisto que dei este nome ao disco.

Acho que as canções devem refletir coisas palpáveis e não serem meros atos de entretenimento

Escrever estas músicas foi como que uma catarse para si?

Toda a obra de arte é um processo catártico porque é sempre autobiográfica, é um reflexo da maneira como nós vemos o mundo. Se não for assim, é apenas entretenimento. Este disco, como todos os meus outros discos, é um disco de amor.

Mas não inventei nada, toda a literatura do mundo, todo o cinema do mundo, todas as pinturas do mundo, todas as esculturas do mundo, toda a arte do mundo fala de amor. O amor é o grande tema da humanidade, é o grande mistério da humanidade. O amor é infinito, nunca se esgota o assunto do amor. Shakespeare escreveu sobre o amor em todos os seus livros, todas as suas peças são sobre o amor, os Lusíadas de Camões estão pojados desse amor, o amor ao país, o amor à sabedoria, o amor às mulheres e o amor romântico também. Além disso, acho que as canções devem refletir coisas palpáveis e não serem meros atos de entretenimento.

E quis transmitir isso aos seus fãs…

O ‘Viagens’ é um disco que tem 25 anos e tem uma canção que se chama ‘É Preciso Ter Calma’ que é uma carta de amor de um individuo para outro indivíduo que vai morrer de Sida. Já o ‘Talvez Foder’, uma canção que deu bastante polémica, é sobre a situação política que se vivia no mundo na altura. Basta ouvir a letra da música para perceber que a coisa menos obscena que lá está é a palavra foder.

Portanto, eu não mudei nada na minha escrita, continuo a falar daquilo que está à minha volta e, infelizmente, aquilo que está à minha volta não é tudo bonito. Quando olho para a questão dos muros, os muros que se constroem neste momento, pergunto se podemos compactuar com isto. Há uns anos eu escrevi uma canção que dizia ‘ninguém sai de onde tem paz’ e é isso mesmo, as pessoas só saem de onde há guerra, de onde há dor. E há um sujeito nos EUA e outro na Hungria que constroem muros para elas não passarem, mas que espécie de cristandade é essa?! Em que Deus é que acreditamos afinal?! É por isso que o meu disco se chama ‘Espiritual’, são estas questões que me preocupam.

Um disco precisa de caminho, precisa de vida, é como um livro. Nós precisamos de viver. Não faço discos para cumprir calendários

Disse que é preciso tempo e viver para fazer um novo disco. Foi por isso que demorou cinco anos a lançar 'Espiritual'?

Um disco precisa de caminho, precisa de vida, é como um livro. Nós precisamos de viver. Eu não faço discos para cumprir calendários. O ‘Viagens’ demorou 33 anos a fazer [risos]. Claro que podia ter editado outros discos antes dos 33 anos, mas achava que não estava preparado, tinha coisas a viver, portanto fui retendo o meu ímpeto e só falei quando achei que as coisas estavam suficientemente maduras para falar. A partir daí tenho editado discos com uma média de três em três anos e esse é o meu ritmo. É um ritmo interior, não é um ritmo de calendário.

Fale-nos um pouco da música ‘Amor em Tempo de Muros’. Como construiu a letra, qual o objetivo da música, que mensagem quer passar através dela?

Nós como cidadãos ocidentais estamos muito confortavelmente sentados no nosso ocidente, se tivermos um problema de saúde, temos um hospital aqui ao lado que, bem ou mal, funciona. Contudo, apesar de viver neste conforto, estou atento à realidade, estou atento aos outros. Qual de nós pode dizer que é crente, ou qual de nós pode dizer que acredita no bem, se não tem empatia com a dor dos outros?! É que não adianta ir à missa ao domingo, é preciso fazer. E fazer é olhar para os outros.

Há 11 anos escrevi uma canção sobre uma transexual que foi assassinada no Porto, chamada Gisberta. Não a conhecia, ela morreu no Porto, morta por três ou quatro miúdos que a espancaram e que a atiraram para um poço onde ficou três ou quatro dias. Com esta canção de homenagem à Gisberta não mudei o mundo, mas mudei o meu mundo. E eticamente sinto-me em paz comigo próprio porque a Gisberta não morreu em silêncio, morreu sozinha, mas não morreu em silêncio.

E, perante o drama dos refugiados, também não posso ser cego. Eles vivem em condições deploráveis. Não posso cooperar com este silêncio. Por isso, a canção ‘Amor Em Tempo de Muros’, uma metáfora ao livro de Gabriel Garcia Márquez, ‘Amor em Tempo de Cólera’. Para mim, amor e muros são coisas antagónicas e acho que a letra dessa canção fala por si. Além disso, tivemos no México, e acompanhámos, para o videoclipe, uma família que estava a passar o muro e é essa história que lá está retratada. Uma história real.

E o que acha que fazem os muros ao amor?

Eu colocaria a pergunta ao contrário. O que é que o amor faz aos muros? Acho que o amor é uma edificação. Não precisamos de tijolo para construir o amor, nem de nenhum instrumento. Construímos amor com a nossa própria bondade e a história tem provado que não há muro que resista ao amor.

Um muro é uma coisa física e tudo o que é físico acaba por ruir, um dia, mas o amor, aquele que juntou Gilgamesh com Enkidu, aquele que juntou o Ulisses à Penélope, aquele que juntou Romeu a Julieta, aquele que junta milhões de pessoas em todo o mundo, isso nunca vai ruir. É a única coisa que se calhar vai continuar em pé.

O que salva as pessoas da infelicidade é o amor. É a capacidade de pensarem, quando estão no seu trabalho, quando apanham o autocarro, quando têm de apanhar o metro debaixo de chuva ou passam quatro horas no trânsito, saber que ao fim do dia, no fim da linha, há amor e são amados. Há alguém que os ama. E quem passa por este tipo de situações como as que acontecem no México e na Hungria tem de saber que alguém se preocupa com eles, que o amor está aqui para os receber, há quem se preocupe com elas.

Já a música ‘Porque não fui eu’ é mais específica. Apesar de ser também sobre refugiados, é dedicada a Alan Kurdi, certo? Quando é que a escreveu? Foi quando viu aquela foto duríssima da criança morta na praia? E porque sentiu necessidade disso?

Quando vi aquela foto não pude guardar o que sentia. Acho que o mundo inteiro ficou chocado. Aquela criança de bruços numa praia parecia o meu filho e, ainda hoje, comovo-me ao ver aquela fotografia. Não deixo de me comover, estou comovido agora que estou a falar consigo. O Alan é uma espécie de mártir desta causa porque tornou visível a questão. Caramba que coisa! Por causa da maldade das pessoas, que culpa tinha aquela criança?!

O Alan simboliza o desprezo pela condição humana  e a canção ‘Porque não fui eu’ é uma conversa entre Deus, seja ele qual for e Alan. E esse Deus que se coloca no lugar da criança, que é o que devem fazer os deuses, que foi no fundo as palavras de Cristo: ‘Venham a mim as crianças’.

Quero é contar histórias. Um escritor de canções que conta histórias. Não estou aqui para entreter, eu não sou entertainerE quanto à música ‘Meu querido filho, tão tarde que é’? É sobre os fogos que abalaram Portugal em 2017? Inspirou-se em algum caso específico?

É uma metáfora. Quero é contar histórias. Um escritor de canções que conta histórias. Não estou aqui para entreter, eu não sou entertainer. É claro que a minha música tem também um lado de celebração, nós estamos aqui a falar deste lado trágico e a verdade é que, à medida que se tira do próprio interior isso, a vida fica mais fácil. Muito mais aliviada. Esta música foi inspirada na realidade de três pessoas que não veem regressar os seus entes queridos. Uma mãe que não vê o filho regressar, uma mulher que não sabe onde está o seu marido e um marido que não vê a sua companheira. Escrevi esta canção após um incêndio, há seis anos, na zona da Sertã, em que morreu uma bombeira. Depois fui revê-la e achei que fazia ainda mais sentido agora depois dos fogos de 2017.

A globalização na cultura é sempre má porque a globalização é sempre o abafar de todas as outras culturas em detrimento de uma cultura dominante Como já falámos, desde o ano em que começou a atuar com os Bandemónio até agora, muita coisa mudou seja no país, no mundo como na música. O que acha que melhorou e o que acha que está pior?

A vida é um processo e portanto está sempre a mudar, porque esse é o caminho da vida. Pode ter retrocessos ou aparentes retrocessos, como os que estamos a viver neste momento. Esta coisa de ter um Bolsonaro, um Trump, um Putin, Kim Jong-un, todos ao mesmo tempo. Nós tivemos um na Europa e já foi a confusão que foi. Agora temos quatro, quatro doidos. Isto é estranho, mas é assim a História, a humanidade já nos ensinou que vai em frente. Porque se não fosse em frente vivíamos na idade da pedra.

Portugal não é exceção. Estamos melhor em muitas coisas. E musicalmente estamos numa fase em que se faz música com muita facilidade, há uma democratização dos computadores. O que se faz em termos musicais é demasiado parecido, é demasiado homogéneo. Há um fascínio pela tecnologia e isso tem vantagens, produz-se muita coisa, mas tem também desvantagens porque produz-se muita coisa igual.

Carregar num botão do computador faz o mesmo barulho aí, aqui, na China, na Somália e em Nova Iorque. Contudo se pegarmos numa guitarra ou num piano, vai ter sempre um som diferente. Há uma globalização da música, no mau sentido. Não toda, atenção! Há música muito boa que usa o computador como instrumento. Mas a globalização na cultura é sempre má porque a globalização é sempre o abafar de todas as outras culturas em detrimento de uma cultura dominante.

Acha que há pressão das editoras, das modas, do público, para isso?

Os meus espetáculos são momentos de grande celebração, de muita gente, de milhares de pessoas e eu ganhei essa identidade, tenho uma maneira de estar na música que é, digamos, a minha assinatura. Agora, aqueles que estão a aparecer, para singrar acreditam que têm de se juntar a essa massa quando juntar-se à massa é o seu fim. Se somos mais uns qual é a nossa relevância?! Ao anularmos a nossa própria voz, estamos a perder qualquer hipótese de fazer sucesso. São muito raros aqueles que mantêm a sua voz e que triunfam porque acham que têm de ser iguais aos outros.

Depois de anos de reivindicações, o IVA na cultura vai baixar já no próximo ano, de 13% para 6%. Acha que isto é um incentivo importante para as artes, para o espetáculo e para a cultura portuguesa?

Acho que é fundamental que isso aconteça. Já devia ter acontecido há mais tempo. A cultura é muito penalizada e a cultura é um bem imaterial e absolutamente vital para o país. Por exemplo, Cabo Verde é um país geograficamente pequenino, mas qual é a grande razão para todo o mundo falar sobre Cabo Verde? A música. Espanha é um país poderosíssimo a nível de cultura para o mundo. E não é graças à grande engenharia espanhola, não é graças a terem ido à lua, não é graças a grandes feitos políticos, é graças à cultura. A cultura é fundamental para um país ter uma imagem digna, de dignidade no mundo.

E como olha para a questão de dar nomes de empresas a espaços culturais? Acha que o marketing pode trazer benefícios para a cultura ou acha que pode prejudicar?

Se é uma questão de sobrevivência dos espaços, prefiro que tenham o nome de uma marca se a marca tiver, efetivamente, dado um apoio financeiro. Estou a lembrar-me por exemplo do Pavilhão Rosa Mota, para mim será sempre Pavilhão Rosa Mota, mas entendo que se há uma marca que investe ali uma soma considerável de dinheiro que haja uma recompensa na visibilidade. Aquilo estava a cair de podre, ninguém pegava naquilo. Não acho que venha daí mal ao mundo, desde que não se perca a identidade do local. Não vamos agora batizar a Torre dos Clérigos, torre qualquer outra coisa, ou a Torre de Belém.

E o Pedro? Mudou durante estes anos? Ou era capaz de se acorrentar novamente ao Coliseu do Porto se este estivesse para ser vendido à IURD?

Eu também mudei. Estou com 57 anos, vou fazer 58, tenho cuidado de mim. Os meus espetáculos são muito dinâmicos, muito enérgicos, são muito físicos e portanto eu tento tomar conta de mim para que isso continue a acontecer. Se me acorrentava outra vez? Agora há outras maneiras de me acorrentar, metaforicamente, mas se for necessário, escreva-me, diga-me onde é que é e eu vou lá [risos].

Falta-me fazer literalmente tudo. O momento em que eu disser que não me falta fazer nada é porque vou estar muito doente Com tantos anos de carreira, oito discos lançados. O que falta fazer?

Falta-me fazer literalmente tudo. O momento em que eu disser que não me falta fazer nada é porque vou estar muito doente. O espiritual é o que faz mexer a humanidade, é força vital, força que nos anima. Haja espírito e eu continuarei a ter forças para fazer canções e para estar em cima dos palcos. Tenho muita coisa para fazer.

Escrevi uma música para este disco, que está gravada, com a Ana Moura e que não saiu porque não fiquei contente com o meu trabalho de escrita

E o que vai fazer com as outras 15 músicas que escreveu durante os últimos cinco anos? Já está a pensar num novo trabalho?

Sim, já tenho em vista o que vou usar, o universo que vou usar, digamos assim, nenhuma das músicas que ficaram para traz faz parte deste álbum, portanto, vou partir do zero, mas sei onde quero ir. Escrevo muito mais canções do que as que publico. É um defeito porque quando chego ao piano, escrevo com alguma facilidade, a letra não, isso demoro três, quatro meses. Vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a um colega seu. Escrevi uma música para este disco, que está gravada, com a Ana Moura e que não saiu porque não fiquei contente com o meu trabalho de escrita. Assim como esta, tenho algumas centenas de canções que, seguramente, não vou editar.

E quando é que o público vai poder ver ao vivo este seu último trabalho?

Começamos já 13 e 14 de dezembro em Leiria, dia 18 vamos estar em Lisboa e dia 31, na passagem de ano, na Avenida dos Aliados, no Porto.

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